Não há outra solução senão a contínua busca de fins que forneçam sentido à nossa vida: dedicação a indivíduos, coletividades, causas, trabalho intelectual, criador, diz Beauvoir.
Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
em que todos se debruçavam
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.
Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes
e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
que rebentava daquelas páginas.
(Os mortos de sobrecasaca, Carlos Drummond de Andrade)
Nesta segunda parte do primeiro momento de nossa série de textos sobre velhice e felicidade, continuarei na companhia, em especial, de Simone de Beauvoir. No fim da primeira parte, eu havia apresentado a necessidade de conversarmos sobre o envelhecimento e a velhice sem tabus, tal como nos convida a autora. Somente quando incorporarmos essa postura é que teremos a possibilidade concreta de construirmos uma sociedade efetivamente mais digna para velhas e velhos.
Um ponto que tangenciei na primeira parte, e que possui relevância incontornável para Beauvoir e sua filosofia existencialista, é a ideia de projeto. De acordo com a autora (2018), a noção de projeto tem relação direta com o problema do tempo, bem como nossa relação com o tempo se altera com a idade: “ao longo dos anos, nosso futuro encolhe, enquanto nosso passado vai-se tornando pesado”. Ou, em outras palavras, para a filósofa, podemos definir a pessoa idosa “como um indivíduo que tem uma longa vida por trás de si, e diante de si uma expectativa de sobrevida muito limitada” (p. 379).
Por outro lado, apesar do futuro encolhido, o projeto existencial que a velha ou o velho se coloca – a partir, claro, de sua situação concreta, com suas possibilidades mais ou menos limitadas – pode lhe abrir, por exemplo, toda uma gama de experiências ainda não vivenciadas no seu longo passado cronológico. Em seu conto A idade da discrição (BEAUVOIR, 2019, p. 58), numa conversa entre a personagem principal, seu marido e sua sogra, cujo tema era a vida, a personagem principal, insatisfeita com a existência, pergunta: “por que não a bomba, por que não o Nada? Que tudo se exploda e se acabe.” Seu marido, por sua vez, menos insatisfeito, mas também sem maiores ambições, responde: “Às vezes fica-se tentado a desejar isso. Mas prefiro sonhar que poderia haver vida sem dor.” Por fim, a sogra – uma senhora bastante idosa, mas muito ativa, em especial por seu engajamento na política, com uma causa de vida maior que si mesma – simplesmente comenta, com ar firme e combativo: “Vida, para se fazer com ela alguma coisa” (p. 58). A vida, pois, é para se fazer algo, inclusive na velhice.
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A existência humana, conforme Beauvoir, é um temporalizar-se, o que significa que, situados no presente, nós temos em vista o futuro por meio de projetos que transcendem ou ultrapassam o nosso passado, revivido e atualizado no presente. Não é fortuito, pois, que sem um senso de futuro, isto é, de projeto, resta-nos ou a inércia no presente (uma perpétua imobilidade), ou a nostalgia (uma vida de lembranças). O indivíduo nostálgico normalmente transita entre um ou dois caminhos: o apego à personagem que mais lhe agrada (por exemplo, o “antigo combatente” ou a “mãe admirável”) ou o relembrar do “frescor da adolescência”. Ademais, corre-se o risco desse contínuo retorno ao passado produzir apenas decepção: “nós o vivemos como um presente rico do futuro para o qual ele se lançava; só resta dele um esqueleto” ou o futuro “desmentiu nossas expectativas” (BEAUVOIR, 2018, p. 384); ou, ainda, alguém “descontente de seu estado só encontrará ali [no seu passado] um alimento para sua amargura” (p. 387). Em relação às promessas e imposições que nossa sociedade coloca às pessoas, mas sem lhes oferecer as condições para alcançá-las ou para as alcançar sem ser às custas dos outros, Beauvoir é direta: “Fui ludibriada” (1982, p. 130).
Em que pese sua atitude crítica sobre a atitude nostálgica, Beauvoir não tem a intenção de fazer uma condenação da rememoração do que fomos ou vivemos, claro. [1] Trata-se, antes, de apontar que uma vida sem projetos tendencialmente será refém de uma vida que já foi e não há como ser novamente, ainda mais se considerarmos o duplo aspecto de finitude que a velhice carrega consigo: sabe-se que os anos vindouros não serão muitos, e os poucos restantes serão vividos num corpo sem a força de outrora.
Nesse sentido, uma forma que Beauvoir encontrou de viver tanto sua não aceitação da finitude, como sua própria velhice, foi se colocar na perspectiva do Outro e do Todo, quer dizer, da humanidade e do mundo mesmo: “Incapaz, como todos, de conceber o infinito, não aceito a finitude. Tenho necessidade de que se prolongue indefinidamente essa aventura na qual minha vida se inscreve. Amo a juventude; desejo que nela continue nossa espécie, e que esta última conheça tempos melhores. Sem essa esperança, a velhice para a qual eu me encaminho parecer-me-ia inteiramente insuportável” (BEAUVOIR, 2018, p. 430). Em outras palavras, nós começamos e continuamos nos outros. [2] Obviamente, trata-se de minha vida, ou seja, tenho a necessidade de sentir que ela possui um sentido e que seja reconhecida. No entanto, tal reconhecimento é uma jornada de reciprocidade: o nosso chamado ou apelo de liberdade deve ser acolhido pelos outros ao mesmo tempo em que acolhemos o chamado ou apelo de liberdade destes.
Voltando ao tema do projeto, Beauvoir afirma que é a partir de nossos projetos que o mundo se descobre. Contudo, não há motivos para nos enganarmos sobre a evidência de que, para a pessoa idosa, ao menos do ponto de vista cronológico, o futuro se retrai: há menos anos potenciais de vida restantes: “Digo frequentemente: há trinta anos, há quarenta anos. Não ousaria dizer: dentro de trinta anos” (BEAUVOIR, 1982, p. 43); assim como, com o passar dos anos, “o progresso continua, porém mais lentamente” (p. 21). Além disso, Beauvoir não é ingênua sobre quais as possibilidades de trilharmos “caminhos inéditos” ou de criarmos para nós mesmos novos “interesses e prazeres”, especialmente na velhice, quando “[a] ausência de curiosidade do velho e seu desinteresse são reforçados por seu estado biológico” (2018, p. 472). Por outro lado, e o que é de considerável importância para a reflexão aqui desenvolvida, essa tendência, indica Beauvoir, é menos intensa e menos provável naquelas pessoas idosas com “interesses polivalentes”. Afinal, alguém que tenha desenvolvido múltiplas habilidades ao longo da vida, ou que tenha adquirido o gosto por atividades diversas, seguramente terá mais chances de adaptação diante dos obstáculos que a velhice traz, ou quiçá mais recursos para se propor novos projetos.
Todavia, o “perigo” maior e mais cruel de uma velhice sem interesses talvez seja outro: o tédio. Como diz Comte-Sponville (2003, p. 582): “Entediamo-nos quando o tempo parece vazio: porque nada acontece, porque não temos o que fazer ou porque não conseguimos nos interessar pelo que há a fazer”. E, para Beauvoir (2018, p. 478), frequentemente “os velhos não têm remédio contra o vazio de sua existência”, e não possuindo as ferramentas para se inserirem e participarem do mundo, acabam condenados justamente ao tédio. [3] É como se a existência não se ultrapassasse em direção a fins, ou seja, como se não houvesse projetos, de modo que ela, a existência, termina recaindo inerte em si mesma. Beauvoir usa de expressões contundentes aqui: “não há nada que possa arrancá-lo de sua melancolia”, “abismo vertiginoso”, “a ausência de objetivo torna sombria sua vida” (p. 479). E notem, não se trata, obviamente, de uma situação que apenas as velhas e os velhos estão sujeitos, a própria Beauvoir comenta sobre a relação mais ou menos frequente entre jovens e tédio. A autora, inclusive, cita os seguintes versos do jovem Baudelaire: “Nada iguala o arrastar-se dos trôpegos dias,/ Quando, sob o rigor das brancas invernias,/ O tédio, taciturno exílio da vontade,/ Assume as proporções da própria eternidade.”
Assim sendo, uma das defesas mais típicas de que se vale o idoso, para Beauvoir, é precisamente o hábito. Todos nos valemos de hábitos, e não há forçosamente mal algum nisso, pois: “O hábito é o passado enquanto é, não representado, mas vivido por nós sob a forma de atitudes e comportamentos; é o conjunto das montagens e dos automatismos que nos permitem andar, falar, escrever etc.” (2018 p. 485). O problema surge quando o hábito, de automatismo natural, começa a se tornar rotina, e a rotina, por sua vez, começa a nos enclausurar em regras já estabelecidas, em caminhos já percorridos, de modo a nos afastar do novo, do desconhecido, ou, como diz com perspicácia Beauvoir: terminamos buscando respostas antes mesmo de fazer perguntas. Não por acaso a suspensão do hábito se apresenta como uma ameaça à própria existência, ele é o seu porto seguro. Ideia semelhante podemos encontrar em Ailton Krenak (2020, p.6), quando no contexto da pandemia de COVID, e refletindo sobre nossas ações, este filósofo e militante indígena afirmou:
Alguém com formação objetiva, voltada para a científica lógica do cotidiano, quando sofre uma ruptura do cotidiano, pode até adoecer. Muitos podem adoecer não pela covid, não pelo contágio, mas porque sentem-se obrigados a parar suas vidas. A rotina é como uma monocultura. Uma monocultura dentro da vida. Ora, em nenhuma situação a monocultura é boa. Nem quando é no interior de si, sozinha, porque ela tira nossa conexão com todos os outros sentidos de estarmos vivos.
Beauvoir concorda que a vida não é um projeto cuja finalidade se vai constituindo e ao fim se realiza, se completa: não caminhamos para um fim. Entretanto, a vida pode se voltar para fins. De posse de algum grau relativo de liberdade e lucidez, às velhas e velhos caberia fazer um bom uso seu com planos: “elas [a liberdade e a lucidez] têm um grande valor se ainda somos habitados por projetos”, se “o mundo ainda está povoado por fins” (p. 511). Por outro lado, se sua vida não possuir projetos ou condições de realizá-los, as fragilidades esperadas para essa fase da vida muito provavelmente se agravarão, tornando ainda mais complexa e complicada a retomada ou construção de uma vida digna e com sentido. Além disso, o que está em jogo, para Beauvoir, não é suportar a idade, suportar corajosamente o estado de “declínio” que a velhice tende a trazer: “A moral prega a aceitação serena dos males que a ciência e a técnica são impotentes para suprimir: a dor, a doença, a velhice” (p. 560). Suportar não é um projeto, isso seria fazer da velhice uma paródia de nossa vida.
E o que fazer, então? Veremos mais sobre isso no segundo momento desta série, quando conversaremos a respeito da felicidade na companhia de Comte-Sponville. Mas, no que lhe cabe, Beauvoir não hesita em responder: não há outra solução senão a contínua busca de fins que forneçam sentido à nossa vida, quais sejam: “dedicação a indivíduos, a coletividades, a causas, trabalho social ou político, intelectual, criador” (BEAUVOIR, 2018, p. 561). Necessitamos, portanto, de uma vida engajada, justificada, que carregue consigo um sentido que nos mantenha juntos dela. Isso não implica um abandono do passado, de nossa própria história; projetar-se pode até ser ruptura, e muitas vezes o é, mas não apagamento: “É ele [o meu passado] que define minha situação atual e sua abertura para o futuro. Ele é o dado a partir do qual me projeto e que devo ultrapassar” (BEAUVOIR, 1982, p. 39). Conforme apontam Teixeira e colaboradores (2015), em nossa sociedade, as pessoas idosas tendem a ser silenciadas e frequentemente consideradas um problema social, o que as leva, amiúde, a chegarem “ao fim de suas vidas sem aspirações próprias (…), sem experenciar autenticamente as possibilidades que ela [a velhice] oferece”. É no sentido de superação desta situação que as considerações de Beauvoir sobre a velhice me parecem ainda muito potentes, especialmente por sua verve provocativa, reflexiva e propositiva, tudo isso sem perder a sensibilidade e a serenidade que esse tema exige.
Por fim, não é o caso, necessariamente, de se buscar viver, intempestiva e repentinamente, uma velhice repleta de novidades e aventuras mirabolantes. Nas próximas partes teremos a oportunidade de ver que uma velhice feliz – apesar de poder sim se encontrar numa viagem exuberante, ou num outro evento de grandes proporções, o que deveria ser um direito de todas e todos – reside, muito mais, em outro lugar. E é isso o que Beauvoir nos sugere, tanto com sua própria voz, quanto pela voz de sua personagem:
Por seu ritmo, pela natureza de minhas ocupações e de meus convívios, meus dias se assemelham. No entanto, minha vida absolutamente não me parece estagnante. A repetição é apenas um fundo onde se inscrevem novidades permanentemente. Leio diariamente: mas não o mesmo livro. Escrevo diariamente: mas escrever me traz, permanentemente, problemas imprevistos. E acompanho com ansioso interesse o desenrolar dos acontecimentos que jamais recomeçam e que atualmente pertencem à minha própria história. (BEAUVOIR, 1982, p. 44)
Surpreendo-me, mas o fatoé que ele não aceita ter passado dos sessenta anos. A mim, mil coisas ainda me divertem, a ele não. Antigamente, ele se interessava por tudo, agora é um problema levá-lo ao cinema, a uma exposição, à casa de amigos.
— Que pena que você não gosta mais de passear — disse-lhe. — Os dias estão tão bonitos! Pensava há pouco que gostaria muito de voltar a Milly e à floresta de Fontainebleau.
— Você é surpreendente — disse-me sorrindo. — Conhece a Europa inteira e deseja rever os arrabaldes de Paris!
— Por que não? A igreja de Champeaux não é menos bela porque subi à Acrópole. (BEAUVOIR, 2019, p. 15)
Notas
[1] “Descobri a doçura de ter atrás de mim um longo passado. Não tenho tempo de contá-lo a mim mesma, mas às vezes, de improviso, eu o percebo em transparência ao fundo do momento presente: ele lhe dá sua cor, sua luz, como as rochas e as areias se refletem na cintilação do mar.” (BEAUVOIR, 2019, p. 16)
[2] Ecléa Bosi (1994, p. 75), numa bela e lúcida constatação semelhante a essa postura de Beauvoir assevera: “Os projetos dos indivíduos transcendem o intervalo físico de sua existência: ele nunca morre tendo explicitado todas as suas possibilidades. Antes, morre na véspera: e alguém deve realizar suas possibilidades que ficaram latentes, para que se complete o desenho de sua vida.”
[3] E por mais que seja no indivíduo que o tédio faça morada, e que por vezes possa haver uma dose considerável de responsabilidade da própria pessoa, estamos falando de um problema social. Não se trata do caso de uma ou outra pessoa, mas quase de uma forma de vida socialmente construída. Infelizmente, o tédio se apresenta como um dos principais motivos de suicídios entre pessoas idosas (MINAYO; TEIXEIRA; MARTINS, 2016), o que torna ainda mais importante enfrentá-lo.
Referências
BEAUVOIR, Simone de. Balanço final. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
______. A velhice. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
______. A mulher desiludida. 6ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
COMTE-SPONVILLE, André. Dicionário filosófico. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
KRENAK, Ailton. A vida é selvagem. Publicação digital: Dantes Editora, 2020.
MINAYO, Maria Cecília de Souza.; TEIXEIRA, Selena Mesquita de Oliveira; MARTINS, José Clerton de Oliveira. Tédio enquanto circunstância potencializadora de tentativas de suicídio na velhice. Estudos de Psicologia (Natal), v. 21, n. 1, p. 36–45, jan. 2016.
TEIXEIRA, Selena Mesquita de Oliveira et. al. Reflexões acerca do estigma do envelhecer na contemporaneidade. Estud. interdiscipl. envenlhec. Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 503-515, 2015.
* O presente trabalho é resultado parcial de pesquisa que foi selecionada pelo Edital Acadêmico 2022: envelhecer com futuro, promovido pelo Itaú Viver Mais e Portal do Envelhecimento e Longeviver.
Foto destaque de Mehmet Turgut Kirkgoz/pexels.
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