As relações familiares no envelhecimento carregam histórias, memórias e pactos silenciosos que moldam o cotidiano. É preciso explicitar o óbvio.
Suhaila Harati das Neves (*)
Este relato reflexivo aborda a convivência de duas irmãs que, após o falecimento da mãe, mantiveram a mesma divisão de responsabilidades construída no período de cuidado materno. A manutenção desse arranjo trouxe tensões diante de novas demandas, evidenciando a necessidade de repactuação, pois o óbvio não havia sido dito.
O envelhecimento é um processo complexo, em que a saúde física, vivência emocional e o contexto social marcam mudanças que exigem reorganização de papéis familiares e redefinição de vínculos. Muitas vezes, pactos de cuidado estabelecidos em contextos anteriores permanecem ativos, ainda que as condições de vida tenham se transformado. Esse fenômeno pode gerar sobrecarga emocional, apoios desajustados e dificuldades de comunicação — elementos centrais no campo da gerontologia.
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Retrato de uma convivência
Duas irmãs passaram a morar juntas após o falecimento da mãe, reproduzindo o arranjo que haviam estabelecido no período de cuidado materno: uma assumiu a rotina doméstica e de cuidados, enquanto a outra se ocupava da gestão financeira e administrativa.
Esse pacto, que outrora funcionava de forma harmônica, começou a se fragilizar diante de novas situações. O conflito emergiu quando a irmã mais nova propôs alugar o apartamento da mãe, espaço carregado de memórias para a irmã mais velha. A ausência de elaboração do luto e a falta de diálogo (sobre o luto) potencializaram o sofrimento psíquico. O que desencadeou várias consultas terapêuticas individuais e atendimento familiar.
Do ponto de vista da gerontologia, trata-se de um exemplo de reprodução de padrões relacionais sem atualização para o novo ciclo de vida – existe uma tendência de repetição de padrão. Esse processo, embora funcional em fases anteriores, pode levar ao desgaste das relações familiares, dando origem a decisão pouco integradas e desconectadas entre si – ainda que bem intencionadas, porém equivocadas.

Olhares da gerontologia
O caso evidencia aspectos fundamentais da convivência no envelhecimento:
– A necessidade de repactuação: acordos implícitos entre familiares, muitas vezes herdados de contextos passados, que necessitam de novos diálogos.
– Sobrecarga do cuidador: mesmo que as tarefas estejam divididas, a dimensão afetiva do cuidado pode recair de forma desigual, gerando desgaste emocional que exige atenção e cuidado.
– Comunicação familiar: o não-dito dificulta a construção de projetos comuns e aumentam o risco de conflitos. Nesse relato, em específico, o óbvio precisou ser explicitado.
A necessidade de repactuação e o olhar mais atento ao outro permitiu que este enxergasse o que estava obscuro.
Importante ressaltar que, nesse caso, em específico, a rede de apoio formal foi acionada, proporcionando suporte enquanto a mãe estava sob os cuidados das irmãs. Isso facilitou a adaptação delas e reduziu os tensionamentos nos momentos mais delicados do cuidado com a mãe.
Esses elementos são recorrentes em famílias envelhecestes e apontam para a necessidade de mediação profissional, seja por meio de atendimentos em saúde mental, grupos de apoio ou intervenções comunitárias (Terapia Comunitária Integrativa).
Algumas considerações
A história dessas irmãs revela como o envelhecimento exige mais do que continuidade de pactos anteriores: demanda repactuação consciente, comunicação clara e reconhecimento das mudanças físicas, emocionais e sociais que acompanham essa etapa da vida.
Fica claro que o atendimento à pessoa idosa deve ser diferente do adulto, exigindo um olhar ampliado que correlacione os aspectos que constituem aquela pessoa – sua história de vida, suas conquistas, seus desafios, seus medos, suas qualidades, composição familiar, rede de apoio, capacidade de resiliência, suas potências e fragilidades. Ou seja, as partes que compõe o todo daquela pessoa. Juntar essas partes e integrá-las faz parte da abordagem em gerontologia.
Portanto, a gerontologia, ao integrar olhares da saúde física, saúde mental, aspectos sociais, espiritualidade, econômicas, entre outros, pode oferecer recursos para que famílias revisitem seus acordos e encontrem novos equilíbrios. Afinal, no processo de envelhecer, cuidar não é apenas manter, mas também reinventar formas de convivência.
(*) Suhaila Harati das Neves – Terapeuta Ocupacional, mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP, pós-graduação em Terapia Ocupacional aplicada e neurologia pelo Einstein, atuante no SUS. E-mail: su_to2002@yahoo.com.br
Foto de Pavel Danilyuk/pexels.
