Áurea acredita que os velhos têm muito a ensinar e a deixar um legado. É preciso que mostrem isso.
“Tenho duas lutas: levanto a bandeira contra o racismo e o preconceito à velhice”
(Áurea Martins)
Se me pedissem para resumir como foi o momento de conversa com Áurea, eu classificaria como um fenômeno télico¹, de presença marcante e suave, com palavras de luta e esperança.
Ainda em seu lema eu acrescentaria “potente e encantadora”, pois é tudo o que ela traz em seu sorriso e expressões. Por um instante fui plateia ouvindo a melodia de uma história de muito protagonismo de vida.
E no palco…a vitalidade de Áurea Martins!
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- 22/12/2023
Silmara: No dia 13 de junho você completou 84 anos. O que da vida celebrou nesse dia?
Áurea: celebrei a tranquilidade da humanidade, sem guerras e sem o sofrimento que o povo gaúcho está passando.
Vi em seu Instagram a frase: “83 anos, firme e forte”. Vamos dar voz às palavras “firme e forte”?
O firme: estou em ação. Quando eu estava na juventude eu não tinha a visibilidade que estou tendo agora. Estou trabalhando, estou em ação e produzindo. O forte: resistência ao racismo e à rejeição ao velho.
E agora aos 84 anos permanece esse slogan?
Sim, o slogan permanece o mesmo: “firme e forte!”
Você assumiu o papel de cantora aos 8 anos de idade com seus tios que, juntos, formavam um trio. Além da música, o que ficou de aprendizado nessa relação?
Eu era pequena e meus tios já tinham uns 40 anos aproximadamente. Sou muito grata a eles por terem me iniciado na carreira, foram muito importantes. Crescer com a música dentro de casa foi maravilhoso. Minha mãe era soprano e cantava no coral da igreja. Sempre a acompanhava. Eu era contralto. Mais adiante, eles seguiram a carreira que eles já tinham desenvolvido e eu fui cantar no rádio. Aprendi com eles a escolher as músicas e a montar meu repertório. Além disso, a ter o bom humor e caráter.
Tens uma carreira de mais de 60 anos, reconhecida com muitos prêmios, sendo um deles o de melhor cantora da MPB com o álbum “Até Sangrar”. Fazendo uma alusão a este título, como foi a lida com as emoções, dores e curativos que podem ter surgido durante a vida?
Eu me pus dentro de uma redoma para não me machucar, olhando o que estava acontecendo do lado de fora, tentando ajudar meu semelhante e eu mesma. Estar na redoma era não me deixar machucar pelo racismo e nem me deixar afetar por ele com sentimentos rancorosos e magoáveis. Procurei fazer ações de bondade para não entrar em guerras e nem me tornar rancorosa. Acho que isso me trouxe longevidade.
Esse disco foi muito importante. O produtor Hermínio Bello de Carvalho é um incentivador da cultura brasileira. Ele trouxe a Fernanda Montenegro para narrar a apresentação do DVD “Iluminante” e ainda as participações do Chico Buarque e Vidal Assis.
“Não me divulga porque sou velha?”. Esse foi seu questionamento referente a uma revista que observou não divulgar diversos artistas na sua faixa etária. Você considera que na mídia acontece a prática do preconceito etário?
Essa revista é a revista “Raça”. Ela deveria ter a Alaíde Costa, que completou 88 anos, como capa para ilustrar aos jovens. Não reclamei com raiva, mas chamando a atenção, para que dessem destaque às pessoas que deixaram um legado. Acho que esse é o papel deles, quase uma obrigação, ainda mais por ser uma revista de negros.
O projeto “80 Homenagens Áureas” lhe fez revisitar o repertório musical de uma vida inteira. Quais recordações estiveram presentes?
Me vieram diversas recordações de quando cantava na noite, o que para mim foi uma escola. Nela fiz graduação, mestrado e doutorado. Cantei com Alcione, Emílio Santiago e Djavan. Participei também de programas como “A grande chance”, do Flávio Cavalcanti, onde em 1969 ganhei o prêmio no Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
A minha história começou com o Paulo Gracindo, meu padrinho musical. Ele e Mário Lago me batizaram como Áurea Martins, pois meu nome original tem uma pronúncia difícil, Áldima. Tenho outros padrinhos, como: Maysa Matarazzo, Elizeth Cardoso e Zezé Gonzaga. Quando completei meus 80 anos tive duas homenagens: “80 homenagens Áureas”, do Paulo Bambu Cunha, e “Áureos Tempos”, do Alcides Sodré.
No álbum “Senhora das Folhas” você foi convidada a fazer os cantos de rezadeiras. Na música “O ramo / Incelença da chuva” você canta: “Salve salve a fé no amor / Que cura todo o mal, a dor / Salve salve o Ramo sagrado / A natureza foi quem gerou”. Qual é a relação entre essas canções e sua fé?
Minha relação com a fé é muito grande. Se não fosse ela, eu não estaria viva e cantando. Tenho fé no Universo. Acredito que temos uma mão protetora que nos leva. Esse álbum me levou a uma indicação ao Grammy Latino.
Você diz que a canção “Retrato em Branco e Preto” de Tom Jobim e Chico Buarque retrata sua história. Por quê?
Essa canção representa a minha história de amizade com a Daniela Spielman. Ela é uma judia, saxofonista e ex-integrante da banda do “Altas Horas”. É minha afilhada e juntas fizemos um arranjo diferente para esta canção.
O que sentiu ao ver sua biografia “Áurea Martins – A invisibilidade visível”, publicada em 2017?
Senti muita alegria por ver que eu tinha uma história bonita. Foi a Lúcia Neves, quem assistia os meus shows, que num certo dia teve a ideia de escrever sobre mim. Se juntou ao meu amigo José Maria Rocha, por ele conhecer muito de minha história.
Quais são os próximos projetos?
Estou trabalhando com o João Senise (35), o álbum “Áurea Martins e João Senise celebram Sinatra & Jobim – 65 anos de Bossa Nova”. Uma parceria um tanto interessante, pois ele tem 49 anos de diferença para mim, mas quem nos vê no palco diz ser uma “química perfeita” e é assim que sinto.
Como sou musicalmente eclética, há 15 dias participei de uma roda de samba comandada por Marcos Sacramento. Estou concorrendo ao Prêmio da Música Brasileira como melhor intérprete com o samba “Luz do candeeiro” de autoria de Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro.
A nova geração tem pedido sua participação em shows e gravações. O que você pensa sobre essa interação?
Sim, tenho mais de 100 participações e me sinto muito honrada com cada um dos convites. Algumas dessas parcerias são: Grupo Casuarina, Tereza Cristina, Fabiana Cozza, Moysés Marques, Renato Braz, Mônica Salmaso, Nina Wirti, entre outras.
Áurea, sabendo que cada um tem a sua velhice, mas que o espelho do outro pode nos refletir alguma imagem, qual mensagem poderia passar aos jovens sobre o caminhar da vida?
Cuidem da saúde física e mental. Em nenhum momento da minha vida fumei ou bebi, mas hoje tenho uma rouquidão por ter aspirado fumaça dos outros em boates que cantei durante 50 anos. Mesmo assim, tenho o milagre disso sumir enquanto canto. Entretanto, faria tudo de novo, pois a TV inviabiliza determinados tipos de pessoas, preferindo os jovens.
Acredito que os velhos têm muito a ensinar, deixam um legado e é preciso mostrarmos isso. Meu irmão, Elizio de Búzios, veio fazer sucesso agora aos 82 anos. É isso, prezar pela qualidade e não se submeter.
Temos exemplos como Alaíde Costa (88 anos), que está em plena atividade e se tornou uma artista midiática super requisitada, e o cantor e compositor Johnny Alf (teria completado 95 anos este mês), que depois de morto está sendo homenageado e reconhecido como um dos criadores da bossa nova.
Nota
(1) Tele é um laço que é construído nos dois sentidos, para ambos envolvidos, se percebendo e se relacionando como de fato são, não havendo transferência como empecilho de se ver no real (PERAZZO, S.; Psicodrama: o forro e o avesso. São Paulo: Ágora, 2010).
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