A próstata e a masculinidade

A próstata e a masculinidade

O câncer de próstata é tão comum em homens quanto o de mama em mulheres.


Por Sergio Vilas-Boas (*)

Farei uma prostatectomia, cirurgia de remoção da próstata. O diagnóstico de câncer evidenciou três certezas para mim: já percorri mais da metade do meu caminho no mundo; o primeiro sinal concreto de finitude é inesquecível; e a próstata e a masculinidade estão diretamente ligadas.

Sim, o câncer de próstata é tão comum em homens quanto o de mama em mulheres. Sim, os prognósticos são muito positivos. Sim, a probabilidade de eu morrer disso, tendo apenas 58 anos de idade, é bem próxima de zero. De qualquer forma, desde que a biópsia comprovou os dois tumores, reduzi os ritmos e as ambições e entrei em compasso de espera.

Atitude mental

Sou marinheiro de primeira viagem. Nunca fui internado nem operado. Nos primeiros dias, tive dificuldade de lidar com a aparente fatalidade da notícia. Durante toda a minha vida adulta, na grande maioria das vezes, fui eu quem decidiu embarcar nesta ou naquela aventura. Desta vez, não há muito que eu possa fazer com minhas próprias mãos para resolver o problema. Meu grau de controle efetivo sobre os fatos é mínimo.

Mas adotar uma atitude mental que me afaste da alienação, do catastrofismo e da autopiedade está plenamente ao meu alcance. Fugi de elucubrações como “por que diabos isso foi acontecer com um cara legal como eu?” ou “o que será de mim daqui a dois, cinco, dez anos?”. Isso apenas geraria mais ansiedade e dificultaria a aceitação. [Aceitação é diferente de conformismo.]

Dr. Google

Resisti bravamente à tentação de buscar alguma forma de amparo no dr. Google. Pesquisei o suficiente apenas para me situar cientificamente dentro do problema. A cada dia tento aprender uma informação nova e relevante. [Um dado interessante, mas não surpreendente: os depoimentos de homens sobre suas experiências com o câncer de próstata são raros (falarei sobre isso mais adiante). As mulheres, ao contrário, são mais abertas sobre seus enfrentamentos com a mastectomia.]

Em vez de afundar no caos espiralado do dr. Google, dei o melhor de mim para construir dias agradáveis, priorizando atividades (sociais e unilaterais) que me trouxessem sentido e leveza, sem falsas ilusões. Bobagens como “pense que está tudo bem e tudo fica bem” nem passaram pela minha cabeça. Esses positivismos tolos, para não dizer tóxicos, me fazem rir. Até porque uma dose de medo e insegurança é necessária (e recomendável). No momento, para mim, estar bem é não ter câncer.

Educação e contexto

Consegui encontrar tempo para refletir sobre como nós, homens, chegamos aonde chegamos. Minha geração foi educada para esconder emoções, principalmente as “negativas”, como se a vida fosse um menu de vitórias constantes e alegrias permanentes. Para homens previsíveis, vulnerabilidade é fraqueza, fraqueza é uma vergonha e as dificuldades pessoais têm de ser ocultadas no fundo do porão.

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A cultura ocidental é muito injusta com mulheres, indivíduos LGTBQQIAA e pobres em geral (independentemente da cor da pele), que sofrem preconceitos e violências diariamente. No atual contexto de valorização da feminilidade e de autoafirmação das minorias, os héteros viraram vilões. Héteros brancos pior ainda. Filmes, romances, séries e mídias tendem a nos retratar hoje em dia como eternos opressores e abusadores, ou como imaturos (e imprestáveis) ou como fracotes que piram por qualquer dorzinha.

Falar de si

O homem tipicamente masculino não fala de si. Fala de política, de economia, de trabalho, de máquinas e, principalmente, de mulheres e esportes. Mas não se abre sobre seus verdadeiros sentimentos. Conversando com minhas amigas, descobri que sou um raro exemplar de homem que expõe seus problemas, seus medos, sua masculinidade, seu câncer. Me orgulho de fazer parte dessa estranha espécie de “homem meio anti-homem” (risos). E eu nem sabia para que serve uma próstata.

Perguntei a vários homens mais ou menos da minha idade qual a função dessa glândula e onde ela se localiza. Nenhum soube me responder. Incrível… Os homens produziram as leis vigentes (redigidas para favorecer a eles mesmos, principalmente os brancos) e se autoatribuíram poderes superiores, mas desconhecem o próprio corpo. Faz sentido. O capitalismo – aliás, inventado por homens – sempre nos tratou como robôs produtivos e nos iludiu com efêmeras ilusões de poder e controle sobre os mais fracos e vulneráveis; e quanto mais ignorantes em relação a si mesmos, melhor para o sistema que criaram.

Masculinidade

A remoção da próstata toca necessariamente no assunto mais inviolável do universo masculino tradicional: a “masculinidade” (conceito cada vez mais difícil de definir). O processo cirúrgico tem como efeitos colaterais principais uma perda considerável – às vezes temporária, às vezes definitiva – da capacidade de ereção e do autocontrole sobre a saída de urina da bexiga. E sem próstata não há ejaculação – consequentemente, nada de esperma e espermatozoides.

Tente imaginar o impacto disso na mente de homens “pintocêntricos” (não é o meu caso), identificados com estereótipos de virilidade e fertilidade… Essas considerações superficiais sobre a próstata e a masculinidade estão mais ligadas ao pós-operatório. Ainda não cheguei nessa fase. Procuro viver um dia de cada vez. O fato é que mudanças irão ocorrer em meu corpo e terei de me adaptar a elas.

(*) Sergio Vilas-Boas é Jornalista, escritor e professor. Apaixonado por artes e psicologia. Autor de vários livros, entre eles “A Superfície Sobre Nós”, “Perfis: o Mundo dos Outros”, “Biografismo” e “Repensando atitudes: saúde mental na maturidade). Doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP. Mora na Itália desde 2016. Extraído do Blog Repensando Atitudes – autoconhecimento para que não confia em gurus.

Foto de Suleyman Seykan/pexels.


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