Família, Síndrome de Down, velhice e a magia do cinema

Família, Síndrome de Down, velhice e a magia do cinema

Família, filme, cuja trama é formada por três filhas e um filho, que tem Síndrome de Down.


Família (Netflix) é um filme mexicano cuja trama é conduzida pelo experiente ator Daniel Giménez Cacho, 62 anos, no papel de patriarca de uma família formada por três filhas e um filho, Benny, que tem Síndrome de Down. Considerando netos e agregados, tem de tudo em Família, o que dá um bom caldo. A mãe é falecida e o pai namora uma bela mulher que pode se passar por mais uma de suas filhas.

Todas vivem suas vidas. Uma vive às turras com o marido, separa não separa, é mãe de uma pré-adolescente que adora o avô; outra, tem um casal de adolescentes e é casada com um gringo, são bilingues; a mais nova, grávida de um oponente do pai, que não sabe da gravidez nem vem ao caso, está decidida a ser mãe solo e namora uma fotógrafa que se envolve na história da família em um momento crucial: o patriarca recebe a todos e todas para um almoço na fazenda com o intuito de revelar que está disposto a se desfazer de tudo em prol de uma multinacional chinesa e cada uma pegar sua parte da bolada.

E Benny?

Todas as críticas e comentários sobre o filme Família deixarão Benny de lado. Ele está longe de ser o centro das atenções da trama que, em primeiro plano, discute as relações familiares entre pai e filhas, passando de raspão pelos netos e netas e tendo Benny apenas como bobo da corte. As acaloradas discussões existenciais, as cobranças, brigas, toda a roupa suja lavada sobre a mesa do almoço ao ar livre não respinga em Benny, mesmo assim ele tem uma atuação ativa, com tiradas graciosas, bem-humoradas, picantes e espirituosas. Mas quem vai parar para prestar atenção em um adulto com Síndrome de Down no meio daquela bagunça? Ninguém, sabe por quê? Porque Benny não é levado a sério.

Benny está o tempo todo presente, chamando a atenção, ajudando, interagindo com todos. É o xodó do patriarca, seu confidente. Quando a proposta de venda da fazenda é revelada, por exemplo, apenas Benny sabia com antecedência. Nem com a namorada o patriarca compartilhou seu drama. Aliás, na divisão da bolada, o patriarca declara que administrará a parte do filho, que seguirá com ele, como se não houvesse outra alternativa. Benny estaria de acordo com a venda da fazenda? Ele se declara fechado com os projetos do pai, no qual, evidentemente, se vê incluído. E surpreende as irmãs quando diz que vai acampar no próximo verão. Elas questionam o pai, como se o irmão não existisse, mas Benny declara que a ideia é dele, porque quer ser mais independente.

Entre tantas histórias que se cruzam, a de Benny chama a atenção por uma razão: na ausência do pai, quem cuidará dele?

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Sim, porque apesar de toda a independência demonstrada pelo irmão, autonomia total ele nunca terá. Na ausência do pai, ou se este se tornar incapaz, alguém terá que se responsabilizar por ele, deduzem as irmãs. A que pretende se mudar para Chicago, declara-se naturalmente responsável. É a mais equilibrada, tem uma família afinada, porém a discussão não é simples e elas vão trocar algumas falas sobre o futuro do irmão antes de mudar de assunto, mas a preocupação com o futuro de Benny está colocada.

O filme é extraordinário, sensível, cheio de nuances especiais, mas aqui vamos focar em Benny. Com naturalidade, ele assedia e é assediado pelos familiares durante todo o filme. O sobrinho mostra, na tela do celular, uma porção de mulheres nuas para saber a preferência de Benny; alguém quer saber se ele está namorando ou se tem alguma garota em vista etc. Coisas do dia a dia, que ocorre com quem tem Síndrome de Down, são exploradas com maestria pelo roteirista. Benny reclama com o pai que não percebe as irmãs como tais, pois se comportam mais como tias. Ou seja, reclama uma relação igualitária, não infantilizada, como é a tendência geral.

O que é a Síndrome de Down? Você já deve ter ouvido falar que é a trissomia do cromossomo 21, ou seja, em vez de um par de cromossomos, o down apresenta três cromossomos 21. De orelhada, sabemos que a síndrome não vem sozinha, traz como bônus problema de audição, visão, coração, tireoide, diabetes, epilepsia… Melhor parar e afinar nossa audição e visão para uma nova realidade de quem carrega a trissomia do 21. O down, como todo o mundo, tinha uma expectativa de vida menor. Os nascidos nas décadas de 1960 e 1970 dificilmente passariam dos 40 anos. Vítimas de preconceitos no seio da própria família, abandonados à própria sorte, acumulavam problemas e sucumbiam a eles. Essa realidade foi se alterando pouco a pouco e, hoje, o Down – quando bem amparado – tem uma vida normal, estuda, trabalha, apresenta poucos problemas de saúde e supera os 60 anos se encontra condições para tal. A maioria, porém, acaba por apresentar envelhecimento precoce e, muitos, desenvolvem Alzheimer depois dos 50 anos. Mas cada caso é um caso.

No entanto, não vamos esperar para ver, a preocupação das irmãs é legítima e necessária. O patriarca deveria pensar o mesmo, porém, aos 65 anos, cheio de vigor, apaixonado por uma mulher mais jovem, prestes a enfiar a mão numa bolada que vai garantir sua aposentadoria, não tem tempo para pensar num processo de curatela e nomear as filhas, mais jovens, curadoras do irmão. O filme não chega a tanto, mas planta uma semente, não usa o down apenas por usar: que tal pensarmos com seriedade na velhice desse segmento da sociedade, em inclusão real, em parar de infantilizá-lo?  

   Fotos: divulgação


Mário Lucena

Jornalista, bacharel em Psicologia e editor da Portal Edições, editora do Portal do Envelhecimento. Conheça os livros editados por Mário Lucena.

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