Percebemos, ao caminhar, como os moradores participam, contribuem, fazem parte de todo o Caminho.
A Asociación de Concellos del Camino Inglés (em galego), formada em 2019, reúne 16 municípios que lutam para tornar o Caminho mais seguro, atraente e confortável, com o objetivo de atrair cada vez mais peregrinos. Todos esses municípios, pelos quais passamos (Coruña, Abegondo, Betanzos, Cabanas, Carral, Fene, Ferrol, Mesía, Miño, Narón, Neda, Ordes, Oroso, Pademe, Pontedeume e Santiago de Compostela), pertencem a uma única província, La Corunha. É o único Caminho com esta peculiaridade. Os outros envolvem mais de uma província e mesmo mais de um país. A outra singularidade é que pode ser feito de barco a partir de um país do Norte da Europa, por isso mesmo se chama Caminho Inglês, pois acredita-se que os restos mortais do profeta vieram exatamente dessa forma, pelo mar.
O gestor da associação tem entre suas atribuições promover e preservar os recursos patrimoniais vinculados ao Caminho (artísticos, culturais, paisagísticos e enogastronômicos). Graças ao trabalho da associação, nesses últimos anos houve um salto de qualidade e uma maior conscientização entre os moradores dessas localidades sobre a importância de acolher bem os peregrinos, pois são eles que trazem divisas que se tornam subsídios para incrementar políticas de melhorias nas comunidades.
Percebemos, ao caminhar, como os moradores locais participam, contribuem, fazem parte de todo o processo. Ficam felizes ao interagir com os peregrinos, conterrâneos e estrangeiros, desejam Bom Caminho (Buen Camino) a quem passa, são solícitos e amáveis. Alguns, bons samaritanos, colocam garrafões com água nas portas de suas casas para matar a sede dos peregrinos. Outros montam verdadeiras barracas com frutas, bolos, bolachas, sucos, sanduíches, refrigerantes, cervejas, café e chá à disposição a quem passa, não colocam preços, mas deixam uma caixinha para quem quiser contribuir com moedas. Há quem procure ganhar, claro, deixando bugigangas à venda, especialmente a concha, símbolo do Caminho, broches, tiaras, brincos, magnéticos etc., estabelecem valores, mas nunca está presente, fiscalizando, o peregrino pega e paga se desejar.
Existem exceções, pois o galego, especialmente o comerciante da cidade, pode vir a ser bronco no trato com as pessoas. Numa taberna (bar, restaurante, bodega), por exemplo, costumam ser rígidos, dão broncas, se recusam a atender se percebem que o cliente não se enquadra às suas regras. A premissa de que o cliente tem sempre razão não funciona na Galícia. Em alguns estabelecimentos não se pode chegar e tomar assento. Se quer ser bem atendido, precisa perguntar se há lugar (plazas), mesmo o restaurante estando vazio, e esperar ser encaminhado a uma mesa. Outro exemplo, não espere que o dono do estabelecimento (gerente ou funcionário) carimbe sua Credencial de peregrino, esta função é sua, mas desde que o local disponha o carimbo à vista, sobre o balcão ou uma mesa. Do contrário, solicite o carimbo e abra a Credencial para recebê-lo.
CONFIRA TAMBÉM:
Armadilhas na demência
- 06/04/2024
E se o fim for amanhã?
- 12/02/2024
Terceira etapa do Caminho
A terceira etapa do Caminho Inglês, de Pontedeume a Betanzos, tem 21 km e é classificada como difícil. Nossa programação é fazê-la completa, mas há a possibilidade de ser feita em duas etapas, parando em Miño. Ou seja, 10 km em um dia e 11 km no outro. Seguimos nossa programação, mas não contávamos com tanta subida. Depois de dois quilômetros de rampa, mesmo com o clima ameno, o corpo ferve, sai fumacinha por todos os poros. No alto da rampa, paramos e olhamos para trás, a recompensa é divina, a vista panorâmica da ria de Ares y Cabanas é única, é preciso sorvê-la gota a gota, fotografá-la, eternizá-la. Energizados, bastão em punho, enfrentamos mais um quilômetro de subida até começar a alternar senderos entre bosques ao som das ribeiras. Desperta a festa dos sentidos, pássaros a cantar, o trinar das gralhas, o cheiro de mato, de pinus, do limão siciliano que mais parece laranjas de tão grandes, hortênsias de todas as cores, margaridas, flores do campo.
Entramos em Miño. Uma placa enorme aponta para o Albergue Municipal de Peregrinos. O corpo pede descanso, mas a razão o ignora, temos uma programação. O Miño tem dois lados, o português e o espanhol. São todos galegos, mas se uma mulher do lado português do rio tomar um barco e cruzar para o lado espanhol ganha, de brinde, mais três anos de vida. Entre as mulheres, a expectativa de vida do lado português é de 82,1 anos, o que já é bastante, mas do lado espanhol chega a 85,1. Na média geral, os galegos espanhóis têm uma expectativa de vida dois anos maior que os galegos portugueses. Estas cifras são puxadas pelas galegas de Ourense, que alcançam 86,1 anos de vida, especialmente as mulheres de Castrelo de Miño, tão longevas quanto as mulheres escandinavas e japonesas; Dados levantados pelo Anuário de Estatísticas Galicia Norte de Portugal. O fato é que na Galícia, seja de um lado ou do outro, uma pessoa idosa, depois de aposentada, viverá em média mais 20 anos.
Seguindo o Caminho, na fronteira entre Miño e Pademe, nos deparamos com uma praia belíssima, a Praia da Alameda, e ali ficamos a descansar. Trata-se de uma reserva ecológica, um cantinho idílico com barquinhos entalados na areia, fazendo a sesta enquanto aguarda alta da maré. Sobre esse encontro de rio e mar, por onde passam milhares de aves migratórias, vista em bandos, está a Ponte do Porco e um cruzeiro erguido em memória a Roxín Roxal, um bom homem que, segundo a lenda, fundou sete hospitais e ergueu sete pontes sobre rios caudalosos. O porco, na verdade, é o javali que tirou a vida de Roxín. Ou seria um símbolo celta da fertilidade como os que encontramos em outras cidades?
Descansados, seguimos por mais 6 km até avistarmos Betanzos. Como Pontedeume, a cidade está na outra margem de um rio (Mandeo) e se espicha morro acima, anunciando mais subidas para a manhã seguinte.
Cruzamos a ponte e entramos por uma das cinco portas da cidade murada. É uma surpresa. Estamos no interior de um casco viejo (centro antigo ou histórico). Seguimos as indicações que nos levam para fora das muralhas, do outro lado, e uma nova cidade se revela. No centro de uma imensa praça (Praza dos Irmáns García Naveira, em galego), destaca-se a Igreja de Santiago de Betanzos. Fazemos a volta nela e continuamos subindo até a pensão. Um quarto para três, banheiro compartilhado e uma cozinha coletiva bem equipada.
Muitas pessoas idosas nas ruas. Representam 25% da população. Em Betanzos não existem as comodidades encontradas em outras cidades da Espanha, como elevadores, escadas e esteiras rolantes para ajudar o pedestre a vencer subidas. As pessoas ao sair de casa enfrentarão obrigatoriamente ladeiras. Então, quem tem dificuldade, evita sair. Identifica-se, assim, o fenômeno chamado Solidão não Desejada (Soledad no Deseada), visto como um problema a ser enfrentado. Para tal, implementa-se o programa Betanzos Acompanha (Betanzos Acompaña), que envolve equipes multiprofissionais que já atuam no território e voluntários, maiores de 16 anos, que passam a receber um salário. O programa está na sua terceira fase que consiste em conscientizar os vizinhos e os comerciantes (lojas, mercados, cabeleireiros), para estabelecer contatos semanais, quinzenais ou mensais, de acordo com a disponibilidade de cada um, mantendo os responsáveis pelo programa informados sobre as condições dos idosos de seu território. Por último, as farmácias, para que controlem os medicamentos para saber se a pessoa idosa está administrando bem aquilo que é prescrito pelos médicos.
Há ainda, desde a pandemia, um número de telefone para o qual a pessoa idosa pode ligar para solicitar auxílio ou simplesmente conversar. Sem contar o programa da Xunta de Galicia e já consagrado, o Axuda no Fogar (em galego), que consiste em cinco mil euros ao ano (416 ao mês), para auxiliar nas despesas de uma pessoa dependente (não importa o grau de dependência nem a renda da pessoa).
De acordo com o Instituto Galego de Estatística, existem, em Betanzos, 3.354 pessoas maiores de 65 anos (1395 homens e 1959 mulheres). Destas, 801 (24%) são classificadas como vivendo em Solidão não Desejada, 245 homens e 556 mulheres. Mas esse desafio não é exclusivo de Betanzos, a projeção feita pelo Instituto para toda a Galícia é que, em breve, três de cada dez lares sejam formados por pessoas idosas. São essas pessoas que, ao nos ver passar, sorriem e nos desejam Buen Camino.
E o Caminho continua…
Fotos: arquivo pessoal