Embora nada saiba sobre Deus, vida eterna e reencarnações, imagino que as redes sociais celestes, que devem ser isentas de ódio, enaltecerão os quatro heróis.
Por José Roberto Castilho Piqueira (*)
Hoje há uma luta constante opondo fabricantes de ignorância às pessoas dedicadas ao estudo cuidadoso dos fatos. É comum alguém transformar-se em autoridade em propagação de doenças porque assistiu a um podcast que apresenta argumentos não consistentes e falsos sobre os perigos da vacinação.
Doenças controladas reaparecem, originárias na negligência em relação à vacinação e outras, de extrema gravidade, recrudescem pelo uso indevido do solo, que origina forte contato entre parasitas, animais e seres humanos.
Até mesmo o ódio, originário das frustrações da vida diária, emerge das redes sociais pela renovação de preconceitos dirigidos à manutenção de privilégios e de antiquadas visões sectárias sobre a vida no planeta.
Como não sou especialista em epidemiologia, não tenho formação em medicina e nem conheço os dados estatísticos sobre pandemias, não vou opinar sobre essas questões, seguindo a máxima de um velho amigo: “conheço um picareta quando ele fala do que eu entendo”.
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Isto é, quando não entendo de um assunto, calo-me e, muitas vezes, ouço barbaridades sobre tópicos de meu domínio, levando-me a desacreditar no restante das afirmativas proferidas.
Assim, não sei opinar sobre políticas para redução dos danos da recente pandemia, mas sei de alguns amigos que se foram, por ela ou por outras razões.
Para afastar possíveis ódios, vou falar de três pessoas que se foram por razões não ligadas à Covid-19: um grande amigo, um artilheiro e o gênio Maradona.
O amigo era carioca, morava em São Paulo, e era fanático pelo Vasco da Gama. Lecionávamos na mesma escola e ele era um renomado autor de livros didáticos. Apaixonados pelo futebol, íamos sempre aos estádios ver o Vasco ou o meu time, com estádio atrás da igreja e próximo ao córrego de Lava-pés.
Fiquei vascaíno e ele azulão. Várias vezes ele sofreu comigo as agruras de acompanhar o azulão em jogos pelo campeonato paulista. Bons tempos aqueles em que, apesar de todo esforço contrário que a cidade de origem fazia, o santo de camisas azuis teimava em disputar os principais campeonatos do país.
Eu também aprendi a acompanhar o time da cruz de Malta. Um dia fomos ver Vasco e Palmeiras, no Morumbi. Era o primeiro jogo na volta de Roberto Dinamite ao Brasil, depois de frustrada passagem pela Europa.
Os torcedores do Palmeiras vociferavam: refugo, perna de pau e outros qualificativos impublicáveis eram dirigidos ao consagrado artilheiro. O jogo seguiu, a bola rolou e, em certo momento, houve uma falta a ser cobrada da meia lua, contra o gol do Palmeiras.
Roberto ajeitou a bola com carinho. A barreira formou-se em desespero. A torcida do Palmeiras ficou em silêncio, aterrorizada. Uma mosca poderia ser ouvida no estádio.
O artilheiro cobrou com maestria e a bola, para alívio dos palmeirenses, chocou-se contra o travessão. Desse momento em diante, poucos se atreveram a xingar o craque, com medo de que ele transformasse a ira em gols.
Meu amigo, então, ensinou-me uma máxima futebolística: “você conhece um craque quando ele joga contra seu time”.
Ao lembrar disso, Maradona veio às minhas memórias. Sempre torci contra e sempre tremi quando ele pegava na bola em jogos da Argentina contra o Brasil. Era gênio e dos seus pés jogadas inesperadas podiam sair.
Era a copa do mundo da Itália, em 1990. Brasil e Argentina se enfrentavam em jogo eliminatório. O time do Brasil não era dos melhores, mas era superior ao da Argentina, principalmente porque Maradona entrou em campo no sacrifício, com forte contusão.
Jogava com chuteiras dois números acima do normal para caber o pé inchado. Entretanto, cada vez que pegava na bola produzia pânico na torcida canarinho.
Lá pela metade do segundo tempo, pegou uma bola, enganou a defesa do Brasil e colocou Caniggia na cara do gol, mandando nosso escrete de volta para casa e frustrando nossa torcida.
Eles se foram. O professor vítima de uma cardiopatia, deixando saudades nos amigos, familiares e alunos. O gênio da bola, vítima de um conjunto de doenças, deixando gols, passes e alegrias no imaginário popular.
O grande artilheiro vascaíno também nos deixou recentemente, depois de lutar contra um câncer. De seu legado, além de gols, constam amor ao clube que defendeu e honesta atuação política.
Nos tempos atuais em que sentimentos extremos e efêmeros dominam as relações humanas, esses três heróis seriam duramente criticados, detratados e cancelados em redes sociais, com seus supostos defeitos colocados em evidência exagerada.
Talvez, até um possível leitor deste texto considere-me objeto de ódio, pois exalto pessoas que ele considera altamente nocivas. Pode ser, até, que pense, em um rasgo de bairrismo, que esqueci do gênio maior do futebol, que também nos deixou recentemente.
Claro que o gênio maior nunca será esquecido e também tem detratores ferrenhos.
Embora nada saiba sobre Deus, vida eterna e reencarnações, imagino que as redes sociais celestes, que devem ser isentas de ódio, enaltecerão os quatro: professor, artilheiro e os dois gênios da bola.
Por lá criar-se-ão podcasts com a Geografia brilhante e bem humorada do professor, com jogadas geniais de Maradona e Pelé, além dos gols do Roberto. Possivelmente, o Vasco da Gama e o Azulão não serão campeões ou rebaixados, pois todos os jogos terminarão empatados, para a alegria dos que amam o futebol autêntico, sem guerras de torcidas.
(*) José Roberto Castilho Piqueira é engenheiro
Foto destaque de Tracy Le Blanc/pexels