Número que esconde uma tragédia silenciosa nos centros urbanos portugueses e o retrato de uma sociedade que precisa despertar para o abandono e solidão dos seus idosos.
Um número, cru e despojado, esconde uma tragédia silenciosa que se desenrola atrás das portas fechadas dos centros urbanos portugueses. “Morreram 757 idosos sozinhos em casa nos últimos três anos”, na mais completa solidão. A estatística, citada pelo escritor Luís Galego, recusa-se a ser apenas um dado e transforma-se num suspiro gélido que interpela a consciência coletiva. São 757 histórias terminadas em silêncio, 757 vidas que se apagaram na descrição de uma casa intacta, com o televisor como testemunha muda e o correio acumulado na caixa.
Em seu texto, Luís Galego descreve estas almas que partem “quase pedindo desculpa por ainda existirem”, num retrato doloroso de uma sociedade que parece ter esquecido os seus mais velhos. O autor assinala que “a miséria de um velho não interessa a ninguém”. No entanto, cada vida que se extingue deixa um vazio que é, no fundo, um espelho da nossa própria falha coletiva. Segundo Galego, “os alertas sobre estes óbitos, quando surgem, provêm de vizinhos atentos, de cães que não cessam de ladrar ou de amigos que não esqueceram”, constituindo “ressonâncias frágeis de uma presença que a cidade já não acolhe”.
Perante este cenário, uma leitora com o pseudónimo de Leonor reflete no blog do escritor: “O estado social de um país no que concerne aos idosos é um dos melhores indicadores do seu grau de desenvolvimento”. A frase, partilhada nos comentários à publicação de Galego, sintetiza a dimensão civilizacional do problema. A mesma leitora acrescenta, de forma poética e contundente: “Quando morre um idoso, arde parte de uma biblioteca”. Cada vida que se vai leva consigo um arquivo único de memórias, sabedoria e experiência, um incalculável patrimônio imaterial que se perde para sempre.
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A culpa e o arrependimento emergem nos testemunhos de quem vivenciou de perto esta realidade. Isabel, outra comentadora, partilha um desabafo comovedor: “O texto trouxe ao de cima o fardo que trago comigo e o arrependimento tardio”. A sua voz ecoa o sentimento de muitos que se interrogam sobre o que poderiam ter feito diferente, sobre os momentos em que a sua presença poderia ter feito a diferença.
Mas da denúncia é urgente passar à ação, que respostas podemos construir coletivamente? Nos comentários à reflexão de Galego, surgem várias propostas e dilemas. Um comentarista que assina como Rui defende modelos alternativos de habitação: “Acho que não devemos ser fardo para ninguém. Já se começam a ver comunidades de idosos a aparecer pessoas que vendem as suas casas nas cidades e constroem comunidades para que possam viver próximo aos amigos”. O cohousing surge como uma solução atraente para combater a solidão através da proximidade e da partilha.
Por outro lado, Marta, outra participante na discussão, levanta um dos dilemas sobre o desejo profundo do idoso de permanecer no seu próprio espaço. “A minha experiência profissional diz-me que as pessoas querem envelhecer na sua casa”, afirma, defendendo a necessidade de “repensar todo o modelo de proteção social” e investir em “serviços de apoio domiciliário mais qualificados e mais teleassistência”.
A resistência em aceitar ajuda externa é outro obstáculo, como nota Carla: “Muitos idosos recusam ir para centros de dia para combater o isolamento”. Ela lembra iniciativas positivas, como os programas da GNR que fazem visitas a idosos identificados pelas juntas de freguesia, mas questiona: “Falta a interligação de instituições? Falta mudar mentalidades?”
Em um registo de esperança, surge a menção a projetos inovadores como a plataforma UNI-IDADES, que promove a convivência intergeracional, ligando jovens estudantes que precisam de alojamento a idosos que vivem sozinhos. São tentativas de tecer novos fios de conexão numa sociedade cada vez mais fragmentada.
Noemia, outra voz nos comentários, sonha com “aldeias de idosos com jardins, pássaros, rios ou lagos e cuidadores, onde ficar não fosse apenas esperar o que todos sabemos inevitável”. O seu desabafo, ela complementa: “às pessoas com a minha idade não são rentáveis”.
Enquanto se debatem políticas e soluções, a realidade descrita por Luís Galego mantém-se a solidão, “silenciosamente imposta, é a última iniquidade que reservamos aos velhos”. Os números 258 em 2022, 237 em 2023, 262 em 2024 não são apenas estatísticas.
São o testemunho final de vidas que terminaram sem testemunhas, num silêncio que deve ecoar como um alerta para toda a sociedade. O desafio que se coloca é o de humanizar o fim da vida, transformando o isolamento em cuidado, a solidão em companhia, e o abandono em dignidade.
Nota: Os depoimentos utilizados nesta reportagem foram extraídos de comentários públicos na rede social do escritor Luís Galego. Para preservar a identidade dos autores, todos os nomes foram substituídos por pseudônimos, mantendo-se o conteúdo original das mensagens.
Referência
Une.idades. Une.Idades – intergeracionalidade e partilha de habitação entre idosos e estudantes. disponível em: https://www.une-idades.pt/. acesso: 22/10/2025
Luís Galego. diário de um gallego. disponível em: https://www.facebook.com/100002390181281/posts/24868661762796819/?rdid=jda2ct31qhdlapep#. acesso em: 22 out. 2025.
Expresso. morreram 757 idosos sozinhos em casa nos últimos três anos. expresso, lisboa, 6 abr. 2025. disponível em: https://expresso.pt/sociedade/2025-04-06-morreram-757-idosos-sozinhos-em-casa-nos-ultimos-tres-anos-fa413f0d. acesso: 22/10/2025
(*) Sob orientação de Beltrina Côrte – Jornalista, CEO do Portal do Envelhecimento. E-mail: beltrina@portaldoenvelhecimento.com.br
Foto de urtimud.89/pexels.
