Invadido pelos sonhos, envolvido por uma vida ainda possível, Jean-Louis vê uma tal portinha que será a sua grande fuga, em direção ao passado, rumo à Anne. Um lugar onde não o proibiriam de nada.
Já dizia Fernando Pessoa: “Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?”
Sobre o sublime, lembrava o poeta persa: “No momento mesmo em que ouvi a primeira história de amor, comecei a procurar-te… não sabendo como isso era cego. Não há lugar onde os amantes possam se encontrar. Um está no outro o tempo todo” (Rumi citado por Hollis, 2002, p. 54). Desde que me entendo, que penso que sei alguma coisa, as palavras do poeta me fazem refletir sobre a mais pura expressão do amor.
Cresci, talvez tomada por minhas fantasias românticas, idealizando uma relação plena que contemplasse atenção, bem querer, generosidade, respeito, admiração e, claro, que não poderia deixar de falar em corpo colado e muita troca de bons fluidos, se é que me entendem.
Quando de verdade a vida começa, vemos que essa plenitude não é bem assim. Tropeços e escolhas equivocadas, muitas sem qualquer remediação, tornam a vida dos afetos quase impossível de realização.
É aquele momento em que dizemos: “aposentei do amor”. O desejo se vai e com ele a percepção do próprio corpo, restando apenas uma extensa melancolia… até o dia em que o passado bate à porta, assim, sorrateiramente, de um jeito ingênuo.
E parece que a esperança volta a dar seus primeiros sinais, ares de vida a ser vivida.
Esse entendimento controverso sobre o amor representa, na minha visão, a trilogia do cineasta francês Claude Lelouch, na história contada de “Um Homem, uma Mulher” (1966). Ele, um piloto de corridas festejado pelas mulheres e ela, uma roteirista cinematográfica sofrendo as dores do luto.
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Viúvos, ambos com filhos pequenos, eles se encontram em um certo dia, em uma certa hora. Sabe aquele exato momento que define tudo o que virá? A troca intensa de olhares é instantânea, eram apenas Jean-Louis Duroc e Anne Gauthier, vividos pelos belos e expressivos Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée.
O tempo passou, e aqui estão os mesmos “Um Homem, uma Mulher: 20 Anos Depois” (1986). Por que tudo parecia tão complicado? Pois é, o amor não é propriamente uma equação matemática. Nesse caminho trilhado pelos sentimentos, chegam as inseguranças, a falta de coragem, os estímulos paralelos que nos roubam o amor.
Ah… o que poderia ter sido e não foi.
Os ponteiros do tempo são implacáveis, e nessa história, eles deixam seu registro em “Os Melhores Anos de Uma Vida” (2020), 50 anos após o drama original.
Será que tudo teria sido diferente se esse homem, galã incorrigível, e essa mulher tivessem entendido seus sentimentos, a vida a dois de outra maneira?
Nunca saberemos. Eu prefiro pensar (consolo de quem ama) que se assim foi, era porque o percurso não poderia ser outro e mesmo que voltássemos no tempo, talvez fizéssemos as mesmas escolhas.
Agora Jean-Louis, já bem doente, vive em uma casa de repouso. O campeão das pistas de corrida, enfrenta muitas dificuldades, mal consegue se movimentar sozinho (ironia da vida), além da luta contra a perda da memória.
O que restou nos resquícios dessa memória?
Apenas a lembrança de Anne, seu olhar, seu jeito de mexer nos cabelos, a intimidade partilhada. Sensível ao fato, Antoine, filho de Jean-Louis, vai em busca do grande amor de seu pai, Anne. Entre tantas mulheres, apenas ela ainda vive nas memórias do outrora homem tão cobiçado pelo mundo feminino.
Na Normandia, bem de saúde, ativa, ela segue a vida na companhia da filha e da neta.
Surpresa e ao mesmo tempo comovida, lá está a visita inimaginável, Antonine Duroc: “a senhora é a melhor memória de meu pai”.
Les plus belles annés d’une vie sont celles que l’on n’a pas encore vécues. (Victor Hugo)
Assim, ela decide visitar o homem que marcou sua vida.
“Por que não ficamos juntos? Era perfeito demais, lindo demais, mas me deu um pouco de medo”, pensa Anne. Essas são as incoerências revisitadas 50 anos depois, a memória preservada pelo sentimento que realmente importava. “Nunca imaginei que um homem tivesse me amado tanto”.
No reencontro, Jean-Louis não é capaz de reconhecer seu grande amor, a paixão de sua vida. “Você é nova aqui?” Alguns fragmentos de lembranças ainda escapam, quem sabe um resgate…
Ela ainda tenta: “não, vim dar uma olhada no lugar”.
Irreverente, ainda ousado, Jean-Louis não deixa por menos: “Não se mora aqui, espera-se a morte. A morte é o preço que se paga pela vida. A noite tenho pesadelos ou sonhos maravilhosos com mulheres. Eu sempre adorei as mulheres, especialmente uma parecida com você”.
“Que gesto lindo… Ela fazia o mesmo, esse gesto com o cabelo. É um gesto lindo, adoraria ficar falando com você sobre ela.”
Invadido pelos sonhos, envolvido por uma vida ainda possível, Jean-Louis vê uma tal portinha que será a sua grande fuga, em direção ao passado, rumo à Anne. Um lugar onde não o proibiriam de nada. “Quer fugir comigo?”.
A memória de Jean-Louis oscila com poucos momentos de lucidez que fazem Anne refletir: “Era ele e não era ele. Isso me comoveu. Uma parte dele que ainda é ele, é a vida”. Ela resume “Perdemos tempo, não deveríamos ter nos separado”.
E na suposta fuga, ele ainda pergunta “Quem é você?”
“Sou Anne.”
Ele, eterno sedutor, responde com o charme que, aliás, é sua principal característica “Se fosse a Anne, eu teria casado com você”.
Nesse breve encontro, na fuga ao passado, no lugar sem volta, eles sentem que algumas vidas podem ser vividas intensamente em um único dia. No hotel, reservado aos amantes, a lembrança “Foi aqui que tudo começou entre nós”.
Como morrer sem experimentar o fervor do amor, com todas as suas dores, alegrias, fracassos, sucessos e até mesmo os ciúmes daqueles que amam enlouquecidamente?
Em “A dor de amar”, J.D. Nasio lembra que “O que dói não é perder o ser amando, mas continuar a amá-lo mais do que nunca, mesmo sabendo-o irremediavelmente perdido” (2007, p. 41). Como ousas, então, abandonar-me?
O homem de muitas mulheres acredita que “temos sempre que correr riscos quando estamos apaixonados”. É a urgência do amor que atropela os amantes em velocidade máxima.
Então, para aqueles que querem e desejam a entrega, ao meu amor eu proponho “Vamos fugir… se tivermos sorte, veremos um lindo pôr do sol” …
… porque “A medida do amor é amar sem medida”. (Victor Hugo)
Referências
NASIO, J.D. A dor de amar. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
HOLLIS, J. O Projeto Éden. São Paulo: Paulus, 2002.