O caminho do cuidado na sétima arte

O caminho do cuidado na sétima arte

Será que estamos nos abrindo para olharmos mais para o cuidado e a velhice, e a sétima arte está nos possibilitando ter uma ampliação para esse olhar?


Por Silvana Lavechia (*)

Este filme – Como Ganhar Milhões Antes que a Vovó Morra – explora as complexas e dinâmicas relações familiares, ambivalências que surgem em momentos delicados de vida, a maneira como se vive a velhice em determinada cultura, aborda também o tema da solidão, cuidados de final de vida, choque de geração, atribuição cultural ao papel feminino no cuidado ao velho, mudança de paradigma cultural, dentre outros.

“Cuidar está na origem do ser humano” (Leonardo Boff)

Apesar da velhice não ocupar um espaço central na temática cinematográfica, são inúmeros os filmes que geram, em luz e sombra, múltiplas imagens a respeito do envelhecimento humano. Apenas um filme, como será abordado neste trabalho, não esgota a imagem da velhice, com suas dimensões heterogêneas, mas passear por filmes de diferentes nacionalidades e gêneros, como este de origem tailandesa, possibilita uma  interessante reflexão de como a velhice é vista em outras culturas.

Faz-se necessário uma breve explanação da obra cinematográfica “Como Ganhar Milhões Antes que a Vovó Morra” (título original Lahn Mah, que significa Neto da Vovó), sendo a adaptação do título em português um tanto questionável, pois a trama é singela e cheia de significados.

Este filme explora as complexas e dinâmicas relações familiares, ambivalências que surgem em momentos delicados de vida, a maneira como se vive a velhice em determinada cultura, aborda também o tema da solidão, cuidados de final de vida, choque de geração, atribuição cultural ao papel feminino no cuidado ao velho, mudança de paradigma cultural, dentre outros.

Foi lançado em abril de 2024, na Tailândia, tendo por diretor Pat Boonnitipat, de 35 anos, que é um diretor de televisão e cinema tailandês que trabalha principalmente com o estúdio de cinema GDH 559. Foi um sucesso de bilheteria na Tailândia e em outros países da Ásia, tornando-se um dos filmes tailandeses de maior bilheteria de 2024, e já bateu na porta dos US$ 100 milhões de faturamento global. Um fato importante a destacar é a estreia de Usha SeamKhum, no papel de Mengju (a avó, e protagonista do filme), aos 78 anos de idade.

jovem carrega um carrinho ao lado d senhora de idade-cena do filme Como ganhar milhões...

O filme foca na história de um neto, M., distante emocionalmente de sua avó materna, Mengju (no filme a protagonista também se apresenta com 78 anos de idade), que se encontra focado em ser um gamer, porém o mesmo está bastante desmotivado e com problemas financeiros.

A primeira cena do filme se passa em um Cemitério, onde Mengju faz uma oração numa sepultura de uma pessoa desconhecida “toda glória ao Sublime, ao Digno, ao Totalmente Iluminado”, num ritual que celebram uma vez por ano onde reverenciam os mortos. Ela está ali, reunida com seus 03 filhos (o mais velho Kian, casado, 01 filha pequena e bem-sucedido financeiramente), a filha Suen, mãe solteira de M. ao que tudo indica, e o filho caçula Soei, alcoólatra, desempregado, e grande preocupação dessa mãe e também o neto M. Ali ela expressa aos filhos seu desejo de adquirir uma sepultura semelhante, porém o custo é muito alto (01 milhão). Sofre uma queda e é hospitalizada. Nesta ocasião, é diagnosticada com câncer de intestino avançado (grau 04) e o médico lhe dá 01 ano de vida.

Percebendo uma oportunidade em ficar com a herança, o neto M. se reaproxima da avó, e para tanto precisa ser considerado por ela o neto preferido, e faz de tudo para agradá-la, com “segundas, por que não dizermos primeiras intenções”. O enredo do filme se dá nesta busca de Mengju (a avó) em realizar seu último desejo (em adquirir essa sepultura) e essa relação entre avó e neto, vai sendo apresentada no desenrolar da trama, e de como a intenção de M. foi se transformando a partir do contato com e reaproximação com sua avó, e de sua experiência que os cuidados com ela foram afetando M. que a partir de um desejo de ganho financeiro inicial, vai descobrindo outras coisas em seu processo de amadurecimento.

Encontramos em Mengju (a avó) um certo grau de valentia e ação, presente em seus aspectos de animus, e essa sua espécie de masculinidade está registrada e atuante na maneira harmônica com seu ser feminino, e é expressa em sua atitude ativa, corajosa, quando ela vai até a casa de seu irmão mais velho que ficou com toda a herança dos seus pais (fazendo parte da cultura tailandesa) para requerer sua parte e exigir dele uma divisão justa, tendo em vista que foi ela quem cuidou dos pais na velhice, o que lhe foi estupidamente negado, e ela sai da casa dele com a seguinte frase: “aos homens fica os bens, às mulheres o câncer”, uma triste realidade por que passam muitas mulheres velhas neste país.

Podemos pensar que Mengju, nesta ocasião, mordeu a maçã, ou seja, acabou o paraíso da submissão à natureza e à inconsciência, e ela faz todo um empenho para a realização de seu desejo. Não parece que aconteceu com ela uma possessão do arquétipo do animus, pois quando a necessidade de função espiritual não é assumida pela consciência, a libido, ou seja, sua energia psíquica, determinada para isso, cai no inconsciente e lá ativa o arquétipo do animus, que se torna autônoma e tão poderosa, que pode subjugar o eu consciente e dominar toda a personalidade, tornando-a rude. Não é o que acontece com ela, pois a mesma continua manifestando seu desejo e busca outras formas de realizá-lo, sem perder sua delicadeza.

Há uma cena interessante em que M. dá banho em sua avó (não nos mostra sua nudez), ressalta a intimidade que os dois reativam nesta relação, mesmo sendo ele um homem e ela uma mulher (o que não é nada comum numa cultura onde é atribuído unicamente à mulher o papel de cuidadora), mostra-nos o auge do cuidado e da intimidade entre ambos, e o contato do neto com a anima de sua avó despertou-lhe seu olhar consciente, cuidadoso e humano.

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De acordo com o autor Leonardo Boff (1999) em seu livro Saber Cuidar, alguns estudiosos derivam cuidado do latim cura. Esta palavra é um sinônimo erudito de cuidado, usada na tradução de Ser e tempo, de Martin Heidegger. Em sua forma mais antiga, cura em latim se escrevia coera, e era usada num contexto de relações de amor e de amizade. Expressava a atitude de cuidado, de desvelo, de preocupação e de inquietação pela pessoa amada ou por um objeto de estimação.

Outros derivam cuidado de cogitare-cogitatus e de sua corruptela coyedar, coidar, cuidar. O sentido de cogitare-cogitatus é o mesmo de cura: cogitar, pensar, colocar atenção, mostrar interesse, revelar uma atitude de desvelo e de preocupação. O cuidado surge somente quando a existência de alguém tem uma importância para o cuidador, onde há uma dedicação, disposição de participar de seu destino, de suas buscas, de seus sofrimentos e de seus sucessos, enfim, de sua vida. Podemos pensar que na expressão do cuidado com o outro, estamos diante de um modo de ser mediante o qual a pessoa sai de si e centra-se no outro com desvelo e solicitude. Também pode provocar preocupação, inquietude e sentido de responsabilidade.

O filme apresenta a mudança de atitude do neto M. frente à sua relação de cuidados com sua avó, à medida que ele vai se transformando em seu processo de amadurecimento e com os aspectos sênix de sua avó (sabedoria, afeto) vai o afetando, evocando nele um sentimento profundo e deixa-lhe marcas permanentes, ao ponto de usar o recurso financeiro que ela guardou para ele, para atender seu último desejo, que é comprar um túmulo para ela, da forma como ela tanto desejava, e ele buscou atender seu último desejo. Ele conseguiu desenvolver um olhar mais humanizado e cuidadoso, o que foi despertado em sua relação de cuidados com sua avó, e ser conduzido a partir de então, mais para a lógica do coração, da cordialidade e da gentileza, do que a lógica da conquista e do uso utilitário das coisas, tal como o seu desejo egocêntrico de apenas ficar rico, manifestado inicialmente.

Podemos refletir que quando a vida das pessoas velhas aparece nas telas de cinema, a morte aparece com frequência, como um dos marcos do tempo do envelhecer, e este filme não fugiu à regra. No fundo, a questão que está por trás disso é mesmo da morte, e a velhice torna-se assim indesejável, porque ela nos aproxima da morte e nos confronta com sua inevitabilidade. Resta-nos questionarmos: será que estamos nos abrindo para olharmos mais para a velhice, nossa e do outro, e esta sétima arte está nos possibilitando ter uma ampliação para esse olhar?

Também essa obra cinematográfica traz a questão da relação intergeracional, e como ela pode ser desafiadora e ao mesmo tempo, fonte de grande aprendizado, para ambos os lados, e segundo Carl Gustav Jung nos diz que o encontro de duas personalidades assemelha-se ao contato de duas substâncias químicas; se alguma reação ocorre, ambos sofrem uma transformação”.

Um filme belíssimo que vale a pena conferir!

Referências
Boff, L. Saber Cuidar (Editora Vozes, RJ, 1999)
Jung, C.G. A Prática da Psicoterapia (OC XVI/1) Editora Vozes, RJ, 1991.
Jung, E. Animus e Anima (editora Cultrix, SP, 2006)

Serviço
Filme: “Como Ganhar Milhões Antes que a Vovó Morra”
Sinopse: Um homem deixa o trabalho para cuidar de sua avó moribunda, motivado pela fortuna dela. Ele planeja conquistar seu carinho e favor antes que ela faleça.
Ano: 2024
Duração: 2h 9m
País: Tailândia
DiretorPat Boonnitipat
PrêmiosBest Film for Young Audience in the PLUS Program
IndicaçõesBandung Film Festival for Imported Film, Asian Film Award de Melhor Revelação
GênerosComédia, Drama
Plataforma: Netflix

(*) Silvana Lavechia – Psicóloga Clínica, Especialista em Psicologia do Envelhecimento (HC-FMUSP), Especialista em Gerontologia pela SBGG-SP, Analista Junguiana em formação pelo IPAC (Instituto de Psicologia Analítica de Campinas). E-mail: silvanalavechia@yahoo.com.br

Fotos: Paris Filmes/Divulgação


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