Comunidades compassivas no Brasil: uma nova forma de lidar com o envelhecimento tardio?

Comunidades compassivas no Brasil: uma nova forma de lidar com o envelhecimento tardio?

Uma comunidade compassiva emerge do reconhecimento que a perda e a finitude são “responsabilidade de todos”.


Lucas Faial Soneghet (*)

A abordagem chamada “comunidade compassiva” emerge no início do século XXI como resposta para dois grandes problemas. Primeiro, com o aumento na expectativa de vida, possibilitado por avanços na medicina e pela propagação de direitos básicos como saneamento básico, alimentação e moradia, entre outros (Roser, 2020), mais pessoas vivem por mais tempo. Segundo, o aumento na expectativa de vida vem acompanhado de uma transição epidemiológica. A “quarta onda” que Olshansky e Ault (1986) descreveram há quase três décadas, é uma realidade mundial, não exclusiva de países ricos. Doenças crônico-degenerativas de longa duração vêm se tornando cada vez mais presentes na vida de muitos brasileiros e brasileiras, seja como pessoas enfermas, como parentes ou entes queridos de pessoas adoecidas, ou como cuidadores.

Diante dessas transformações, o envelhecimento, especialmente o mais tardio ou fragilizado devido a problemas de saúde, ganha novos contornos. Ser idoso não significa estar doente, mas significa lidar, em alguma medida, com transformações corporais e sociais relativas a questões de saúde. A era das doenças crônico-degenerativas exige novas soluções. Nesse intuito, Allan Kellehear (2005), sociólogo australiano, propõe uma abordagem de saúde pública baseada em cuidados paliativos para lidar com a morte, o morrer e a perda. Uma comunidade compassiva emerge do reconhecimento que a perda e a finitude são “responsabilidade de todos” (Kellehear, 2013) e não somente do Estado, dos hospitais, dos médicos e das famílias.

A abordagem tem dois pilares: o programa Cidades Saudáveis da Organização Mundial de Saúde (OMS) e a filosofia de cuidado denominada cuidados paliativos. Com o programa da OMS, a abordagem compassiva partilha um enfoque holístico e sensível aos atravessamentos socioculturais e políticos da saúde. Os cuidados paliativos emergem na década de 1960 como uma abordagem que visa prover qualidade de vida para pessoas com doenças graves limitadoras da vida. Considerando o indivíduo em sua multidimensionalidade – composto por dimensões física, social, espiritual e emocional –, os cuidados paliativos não prezam pelo adiamento nem pelo adiantamento do fim de vida, mas priorizam o controle dos sintomas, a manutenção do bem-estar e a dignidade no processo de adoecimento até a morte. Com os cuidados paliativos, as comunidades compassivas partilham, dentre outras coisas, uma visão do morrer como processo multidimensional, o que significa uma abordagem multidisciplinar. Em outras palavras, não é um assunto só de médicos, mas de outros profissionais da área da saúde e das famílias, que figuram como alvos e agentes do cuidado. Para além disso, a comunidade compassiva alarga o círculo da responsabilidade, tirando o foco de famílias e hospitais, e pensando na sociedade como um todo como um grande arranjo de cuidados.

Por que compassiva?

A palavra “compaixão” evoca a qualidade de ter simpatia e sensibilizar-se com o sofrimento do outro. Diferente da empatia no sentido estrito, que diz respeito ao afetar-se e identificar-se com o sentimento alheio, a compassividade implica no sentimento em ação. Assim, a compassividade na abordagem das comunidades compassivas implica diretamente no reconhecimento da universalidade da perda e da morte, que acarreta uma responsabilização. Embora não surja explicitamente como iniciativa voltada para o envelhecimento, é inegável a conexão entre envelhecimento populacional, envelhecimento tardio e condições crônico-degenerativas. Afinal, o envelhecimento também é um tema universal, pois mesmo quando não experimentado pessoalmente, afeta-nos diretamente pelos laços sociais. É inegável também que nem todas as pessoas idosas padecem dessas condições e permanecem membras ativas de suas comunidades até o fim da vida.

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A conexão entre envelhecimento e comunidade compassiva se mostra, por exemplo, nas comunidades compassivas brasileiras. A Favela Compassiva, organização atuante nas favelas Rocinha e Vidigal na cidade do Rio de Janeiro, começou como iniciativa de Alexandre Ernesto da Silva, enfermeiro paliativista, mas deslanchou e permaneceu graças à atuação das “agentes compassivas”. Este é o nome das voluntárias moradoras dessas favelas, em sua maioria mulheres, muitas com idade entre 50 e 70 anos, que se dedicam aos cuidados de pessoas, em sua maioria idosas, acometidas por doenças crônicas limitadoras da vida.

Na Favela Compassiva, pessoas idosas estão dos dois lados da relação de cuidado: prestadoras e destinatárias. O que diferencia a abordagem compassiva e como ela pode dizer algo sobre o envelhecimento hoje? Diferente da configuração de cuidado predominante no século XX – na qual famílias, Estado, mercado e instituições médicas eram as peças principais, com alguma predominância do Estado ou do mercado a depender do país, e com forte presença das famílias –, a abordagem compassiva é sobre o reforço dos laços sociais no sentido amplo. Escolas, associações de bairro, organizações da sociedade civil, igrejas… Todos estão implicados e a responsabilidade não para, nem começa, com o processo de morrer, a perda e o luto. Um dos maiores desafios do século XXI é o envelhecimento frágil, isto é, acompanhado de um conjunto de condições debilitantes, mas não necessariamente limitadoras da vida, que dificultam significativamente a vida cotidiana de pessoas idosas. Não é fortuito que as comunidades compassivas foram incluídas nas diretrizes da Política Nacional de Cuidados Paliativos, instituída em maio de 2024. Nas favelas compassivas cariocas, o cuidado voluntário é complementar àquele oferecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que se faz presente principalmente pelas Clínicas da Família e postos de saúde.

À exemplo de iniciativas como os condomínios de idosos em São Paulo (Monteiro, 2012; Longhi, 2024) ou as redes de vizinhança na Inglaterra (Bimpson et al., 2023), iniciativas comunitárias que favoreçam o trabalho voluntário, a convivência e o suporte mútuo têm o potencial de responder aos desafios do envelhecimento no mundo contemporâneo. Tais iniciativas e organizações preenchem a lacuna deixada pela ausência de uma rede de suporte familiar, de suporte institucional por parte do Estado e de recursos para pagar por serviços privados no mercado. Pelo reforço e capacitação da comunidade, suas relações e potências, é possível pensar outro futuro para o envelhecimento, seja ele acompanhado do adoecimento crônico ou não.

Referências
Bimpson, Emma et al. Evaluation of the Leeds Neighbourhood Networks. Centre for Ageing Better, 2023.
James, Nicky; Field, David. The routinization of hospice: Charisma and bureaucratization. Social Science & Medicine, v. 34, n. 12, p. 1363-1375, 1992.
Kellehear, Allan. Compassionate Cities: Public health and end-of-life care. Nova Iorque: Routledge, 2005. 
____. Compassionate communities: end-of-life care as everyone’s responsibility. Q J Med, n. 106, p. 1071-1075, 2013.
Longhi, Marcia Reis. Cuidados, velhice e pandemia: algumas questões para pensar o cenário brasileiro. Interface-Comunicação, Saúde, Educação, v. 28, p. e230180, 2024.
Monteiro, Luiza Cristina Antoniossi. Políticas públicas habitacionais para idosos: um estudo sobre os condomínios exclusivos. 2012. 156f. Tese (Doutorado). Universidade Federal de São Carlos, 2012.
Olshansky, S. Jay; Ault, A. Brian. The fourth stage of the epidemiologic transition: the age of delayed degenerative diseases. The Milbank Quarterly, p. 355-391, 1986.
Roser, Max. The short history of global living conditions and why it matters that we know it. Our World in Data, 2020. Disponível em: https://ourworldindata.org/a-history-of-global-living-conditions-in-5-charts Acessado em 13 mai. 2021. 

(*) Lucas Faial Soneghet – Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutorado-sanduíche na University of Michigan. Pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (PPGS/UFPE). É pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-UFRJ). Atua no grupo de pesquisa Sociofilo, sediado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, e no grupo de pesquisa Metamorfoses da Sociologia (CNPq). Pesquisador selecionado no  4º Edital Acadêmico de Pesquisa: Envelhecer com Futuro, promovido pelo Itaú Viver Mais e Portal do Envelhecimento e Longeviver, com a pesquisa “Envelhecimento, cuidado e comunidade: o projeto Favela Compassiva”. E-mail: [email protected].

Foto extraída do site da organização Favela Compassiva Rocinha e Vidigal.


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