Ante a pergunta: qual cena da velhice negamos fotografar? Claudio responde: “A gente mesmo, na nossa velhice!”.
Claudio Feijó, um mestre da fotografia, é também psicólogo e pedagogo. Mais do que suas qualificações profissionais, ele é o idealizador do laboratório Descondicionamento do Olhar. De 1972 a 2000, fundou e liderou a Escola de Fotografia Imagem-Ação.
O descondicionamento do olhar não se trata de tirar a melhor foto ou ter o olhar certo, mas, sim, de um convite para sair do condicionamento de um olhar automático, com crenças e valores cristalizados.
Entrar em contato com Feijó, desde o início, me fez pensar como descondicionar o olhar em nosso contexto social. Em um mundo capitalista, isso significa desafiar e desconstruir a forma como o sistema molda nossa percepção, associando felicidade e status a bens de consumo. Além disso, valoriza a juventude como um estado, e não como um ciclo de vida, favorecendo o etarismo.
Feijó destaca o quanto nossa sociedade é imagética, o que me fez lembrar dos símbolos que moldam opiniões e instruções. Por anos, o pictograma da pessoa idosa curvada e com bengala dominou nosso imaginário. Somente em 2023, a sinalização foi oficialmente reformulada na cidade de São Paulo, apresentando uma imagem de postura ereta e sem bengala. Essa representação anterior, focada em perdas e fragilidade, ignorava a pluralidade da velhice e a natureza contínua das perdas ao longo da vida.

CONFIRA TAMBÉM:
Envelhecer com Futuro
- 05/10/2024
Será que é mesmo Alzheimer? Não parece!
- 23/11/2024
Descondicionar o olhar também passa por estarmos atentos a tudo o que nos rodeia, principalmente às cenas do dia a dia, que enquadram as diversas fotografias registradas em nossa história de vida.
Nosso entrevistado traz um olhar sensível sobre condicionar e descondicionar, transformando-o em um fluxo de vida. Com altivez, bom humor e contestações, a conversa se desenrolou, revelando seu protagonismo e brilhantismo.
Silmara: Você abre os seus cursos falando como você é incrível, inteligente e tem orgulho de si e que todos somos potentes. Como percebe esse amor-próprio no fortalecimento de si na fase da velhice?
Claudio: O amor-próprio é interessante para olharmos para a nossa história. Quem envelheceu tem um passado muito grande, nem sempre muito rico, mas ele pode olhar para trás e ver o quanto fez e se apropriar disso. Se você tem um capital de vivência, olha para aquilo com orgulho, mesmo que nem tudo tenha sido maravilhoso. Isso tudo é amor-próprio, quando consegue se perceber outra vez. Hoje vejo na internet notícias de pessoas que falecem na juventude e me vejo com quase 80 anos ainda com muitos projetos na cabeça.
Você cita que o ser humano é imagético. Focando na velhice, o que predomina são retratos de vulnerabilidade e fragilidade – em filmes, na TV e na fotografia. Como você descondiciona o olhar e promove uma visão mais diversa da velhice?
Eu lembro que o meu pai catava lixo e guardava para não deixar na rua e eu comecei a fazer isso também. Você pode me perguntar: É só sobre o lixo? Não, é que o exemplo de eu catar lixo na rua e alguém vendo, pode levar alguém a fazer de maneira semelhante. À medida que eu converso com as pessoas elas vão entendendo como sou. Em um workshop que ministrei dias atrás, uma participante falou: “Nossa, você tem muita energia, quero ser igual a você quando envelhecer!”. E ela disse que desejava se tornar igual a mim.
Você precisa ter um norte e acreditar em algo. Não podemos nos entregar a um roteiro pré-fabricado, que seria uma “forma de ser”. Funciona mais ou menos como os pensamentos comuns de que tenho que casar porque já tenho 30 anos, ou tenho que ter filhos porque já tenho tantos anos, e por fim, morrer porque já tenho mais tantos anos. Não! A morte vem, aceite, mas viva enquanto há vida! Tem momentos que não me sinto tão enérgico, mas não é pela idade, mas pela minha psique.
Aos 60 anos você foi cursar Psicologia. Como foi assumir o papel de aluno nessa fase da vida?
Pois é, tive a oportunidade de interação com a molecada de 17 anos, tive a coragem de enfrentar cinco anos de estudos e ainda fazer especialização. Isso porque estou vivo até o último dia. Eu fiz Pedagogia e trabalhei muitos anos com escola. Quando abri a escola de fotografia comecei a perceber que o pessoal gostava muito do equipamento e faltava linguagem, e foi aí que comecei o Workshop do Descondicionamento do Olhar. Trouxe a minha experiência da formação de teatro e laboratório para a sala de aula. Naquele momento percebi que precisava fazer Psicologia porque tocava no mundo interno das pessoas, um lugar sensível. Muitos amigos me questionaram sobre a escolha de me graduar naquela idade. Me formei e trabalho há quase 20 anos como psicólogo clínico, ganho a vida com isso. Vejo como uma profissão interessante e que quanto mais velho, melhor vou ficando. Nos contatos com os pacientes jovens e com vizinhos, vou me percebendo um “polietário”, com muitas idades.
“Desconstruir o olhar é se desafiar a não fazer o mesmo, sair da repetição e rever valores e crenças”. Nos ciclos de sua vida, qual desconstrução julga ter sido marcante?
Ao longo da vida tive atos marcantes. Trago meu pai sempre como um exemplo de explicação e de fala, pois ele foi professor. Era inteligente, exercia cidadania, um ser muito participativo no coletivo. Eu não tive uma virada. Há 11 anos, fui diagnosticado com câncer de pâncreas. Seis meses de vida era a expectativa. Foi uma ameaça de morte, não só a do criador, mas a fisiológica, a de morrer rapidamente. Mas, hoje estou aqui falando com você. Isso não me fez mudar. Muitas pessoas ficam mais amorosas. Eu continuei muito parecido como eu era, trabalhando muito e com casamento indo muito bem. Todos os dias tenho gratidão por estar aqui ainda. A vida é sempre ameaçada pela morte, mas vejo que é ela que dá sentido para a vida. Se não tivéssemos o sentido da morte ficaríamos nos enganando, sem nos dar conta que hoje pode ser o último dia.

“Morri e renasci. Pensei: Se estou vivo, então tem um sentido maior”. Nessa sua frase, o que pode compartilhar conosco?
Talvez a exemplo do meu pai, sempre tive isso do coletivo, uma preocupação com o maior. Eu sinto que estou aqui para fazer alguma coisa pelo outro, como auxiliar as pessoas a encontrarem os seus “eus internos”, apoderando-se disso. O descondicionamento do olhar tem muito dessa proposta de libertação: tirar a autocrítica, sair desse modelo tido como “maravilhoso social” que ninguém alcança e que buscamos incessantemente. A coisa do ser mais rico, é um exemplo. Enquanto, na verdade, a riqueza é ter arroz e feijão na mesa, que hoje eu comi. A riqueza também é estar com você aqui e agora e não ter morrido ainda. Pode querer consumir, mas não de forma compulsiva. Um olhar para essa manga que estou vendo aqui no meu quintal e saber que ela era a última que eu ia pegar, mas caiu.
Existe uma ansiedade muito grande em se viver uma vida que nem existe, num potencial muito intenso, pois somos bombardeados por demandas externas. Durante o carnaval ficou a impressão de que todo mundo estava correndo e nós estávamos parados. Teria que sair correndo para fazer algo? Não, não precisava! Os outros não podem ser nossa medida.
“O fotógrafo é um objeto da cena que pede: Me fotografe!”. Em qual cena de sua vida você percebeu esse chamado?
Aos meus seis anos de idade ganhei minha primeira câmera fotográfica. Pequeninha! Estava no meu museu com 500 câmeras e foi furtada. Depois, consegui comprar uma parecida num leilão. Também tive outra que ganhei de meu padrinho de presente quando crismei. Minha irmã começou a fazer um curso técnico de fotografia e fiz questão de apoiá-la, uma vez que não tínhamos uma estrutura de família com a mãe. E assisti ao filme Blow-Up – Depois Daquele Beijo. Nele tem uma cena em que, à medida que ele vai ampliando a foto, Blow-Up descobre um crime, ou seja, o que ele não sabia, a foto contou.
A foto é um elemento muito rico, principalmente para as pessoas mais velhas. Isso posso dizer agora. Aquilo que eu chamava de nostalgia, é uma sensação muito rica e traz para mim o mesmo sentimento que senti naquela época. Tenho um filho de 52 anos e fiquei imaginando, quando eu o vi pela primeira vez na maternidade, a moça veio penteando o cabelo dele com um pente carioca, parecia ser um esquimó com tanto cabelo que ele tinha. Essa lembrança me trouxe um alento, como se ele tivesse nascido ontem.
Acho que nessa minha idade é como se eu estivesse num coquetel, saboreando as minhas experiências, sem ficar preso no que não fiz ou pensar que poderia ter sido diferente. Agora é só solver o que foi maravilhoso, como as relações afetivas, os amores e a experiência de saúde. Eu tive sorte, muita sorte por estar aqui. Como disse uma colega: “Foi um milagre! Passou da sorte”.
Você considera a fotografia como um ato político, transgressor e de transformação. Pensando nisso, qual cena da velhice negamos fotografar?
A gente mesmo, na nossa velhice! É muito difícil! Eu brinco que todas as manhãs vejo um velho. Depois que eu o vejo, eu me despeço dele no banheiro e aí não me sinto mais aquele velho. É interessante porque naquela hora eu vejo o cabelo branco, olheira, um monte de barba. Uso barba há 60 anos e nem sei mais como é meu rosto sem ela. Reflito: Quem é esse cara que ainda tem desejos e vontades e ao mesmo tempo é um velho? Também é interessante o olhar do outro sobre nós. Eu tenho uma imagem mais solta, até por vestir camiseta. Um vizinho falou que pareço um hippie. Devolvi pra ele afirmando que nem usamos mais essa nomenclatura.
Não sei o que sou, todos os dias me sei um, me sei um diferente todos os dias.
Se tenho dores? Sim, a minha mão dói. Nas juntas tenho reumatismo clínico desde moleque. Tomo remédio e fico bem. Eu tenho caído muito, mas tenho fortalecido a minha perna e isso tem ajudado. Sou um pouco responsável por isso usando botas sem meias. Aqui em casa tem uma escada esquisita, um quintal de chácara com 4 mil metros quadrados, onde meus quatro galgos passam por entre minhas pernas. Eu não tenho que mandar os meus galgos embora, o que preciso é ficar esperto com eles.
Outro dia caí num restaurante, parecia que não estava vivo, mas nada aconteceu. Vieram ver como eu estava. Na minha percepção parecia o Tom Cruise na queda, de tão lindo. Caí e me levantei rapidamente na cena. Qualquer degrau de um centímetro, para mim, hoje é um degrau. Antigamente um degrau de vinte centímetros, não era degrau, agora é degrau!
Você conhece muito da origem das palavras e não gosta de ser chamado de idoso. Muitos autores na Gerontologia debatem que algumas palavras surgem para mascarar a velhice (terceira idade, melhor idade, etc.). Por que não gosta desse adjetivo?
Eu não gosto de carimbos, isso tudo já vem com uma carga de estigmas. As palavras são muito ricas. Você sabe, como terapeuta, que ajudar o cliente a dimensionar a palavra ajuda demais a ele. Quando estou no ônibus e me oferecem o lugar, fico aflito, aí eu acordo que sou esse idoso e aceito a oferta, assim ele não deixará de oferecer para uma próxima pessoa. Se estou sentado e vejo uma outra pessoa carregando sacolas, mesmo que seja mais nova, dou o meu lugar.
Vou desmascarando isso sem prejuízo social, essa é a questão. As palavras velho, idoso e aposentado, vão sendo muitas vezes ruidosas. Normalmente são relacionadas a objetos, como aquilo que é velho. Elas dizem até do podre, que o bolo está velho, que está mofado, que o velho estoura, como eu estou agora com meu braço estourado. Tomei 60 quimioterapias, sendo um sobrevivente e tenho que ter orgulho disso.
Você tem um papel consultivo no reality show Arte na Fotografia e sempre que faz a leitura de uma foto agradece ao autor por ter feito você descobrir algo sobre si. Como esse movimento te leva a um novo condicionamento do olhar?
Eu vejo como um fluxo, como um movimento de vida. Como a sístole e diástole, o coração se espreme e se expande. Acho que a vida é assim também. Passamos por fases em que ficamos mais recolhidos e outras mais expansivas. Vejo na internet velhos que dançam e pessoas que riem disso. É louco isso! Quisera eu olhar um homem da minha idade dançando. Antes eu dançava, agora não mais. Admiro muito a dança. Eu vivo através de muitas coisas. O velho não pode parar de ler, pois a leitura abre o horizonte. Não pode parar de conviver, não pode parar de levantar argumentos e nem de contestar. Eu sou contestador!
Embora você cite que a câmera e a técnica são secundárias, ao fazermos um paralelo com a composição da vida, qual enquadramento você escolhe para registrar sua velhice?
Eu gosto muito de avião e outro dia escolhi uma cena final de vida, que seria essa foto. Seria como um vídeo, um caça jato saindo da pista e decolando. Queria que na hora que fosse me cremar fosse projetado e as pessoas batessem palmas. Como se eu tivesse saído do grande teatro da Terra, uma despedida. Estou indo embora, mas volto de alguma forma, sei lá. Tem um filósofo que diz: Sabe o que vem depois da morte? Igual ao que veio antes de nascer. Você era nada, ficou gente e vai virar nada. Cada religião depois explica do seu jeito.
Eu quero ser esse avião, ter essa sensação. Toda a vez que entro num avião e ele vai decolar, eu abro as mãos para pedir para o fenômeno universal. Sou ateu. Peço licença para eu sair da minha natureza, que não é voar, mas se por um instante voo, tenho que pedir licença.
Esse é o enquadre da minha vida, fechado num caixão, cinza, fogo e um avião partindo. Um filme que eu queria assistir.
Fotos: arquivo de Claudio Feijó
Atualizado em 21/03 às 9h15
