Alguns anos depois, lá está a árvore, bem na esquina, grande, bonita, a ofertar sombra e beleza a quem por ali passa, sem saber da confusão armada pela senhora.
Garatujas do Cotidiano (*)
A principal via de acesso do bairro estava fechada em função de uma obra na pista. Por uma rua lateral, bem menor, foi escoado um volume grande de carros, ônibus, motos. A rua substituta era pequena para o fluxo intenso de veículos, de modo que as buzinas e impaciências estavam soltas. Num dos acessos, porém, o breque. Um carro mal estacionado, um ônibus, uma curva a fazer, a falta de amplitude e eis que o ônibus estaca.
Não havia como chegar a única via disponível de acesso porque de um lado estava a imprudência do motorista que parou o carro bem próximo da esquina e do outro lado, na frente do ônibus, estava uma árvore, pequena ainda, rodeada por uma tênue cerca que visava lhe proteger das colisões.
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Era uma árvore miúda, folhinhas verdes ainda em botão. Postada na frente da árvore estava uma senhora idosa. De chinelos, vestidinho florido, cabelos brancos presos num coque discreto, a senhora estava de pé, parada na frente da árvore. O motorista do ônibus desceu do veículo e começou a falar:
– Senhora, o único jeito de fazer esta curva é subindo um pouco na calçada e derrubando essa planta. Olha o caos que está esse trânsito. Já fiz de tudo, não tem como fazer esta curva.
– Por cima da árvore o senhor não passa. Vai ter que passar por cima de mim para fazer essa curva.
– Mas senhora, veja a confusão, como é que vou fazer para virar essa curva? É só uma plantinha à toa, depois bota outra aí…
– Não é uma plantinha à toa, como se uma plantinha, qualquer que seja ela, fosse sem importância. É uma árvore, eu plantei, e ninguém vai arrancá-la daqui.
As buzinas e impaciências não a demoviam do lugar. Juntou gente, formou-se um círculo em torno da mulher.
– Pode chamar a polícia, chamar quem o senhor quiser. Não vou sair daqui. O senhor vai ter que passar com seu ônibus por cima de mim. Aí é o senhor quem sabe. O problema não é a árvore. É o carro estacionado. Não vou deixar que ninguém arranque a planta. Posso ficar aqui o dia todo, estou aposentada, não tenho pressa.
A confusão ficou armada, o trânsito corria ruas e ruas, o buzinaço tomava conta do bairro. A exasperação de todos não abalava a determinação da idosa. Era o caos, para os outros, não para ela. A cena durou um tanto. Postada diante da árvore ela estava e postada permaneceu.
Por fim, o motorista imprudente apareceu e retirou o carro mal estacionado, que impedia a passagem do ônibus. A cena se desfez e hoje, alguns anos depois, lá está a árvore, bem na esquina, grande, bonita, a ofertar sombra e beleza a quem por ali passa. Quanto à senhora, não se sabe, parece que vicejou e renasceu nas folhas e sombras da árvore.
(*) Garatujas do Cotidiano é uma página do facebook e, ao mesmo tempo, uma hastag por meio da qual uma das integrantes publica histórias do cotidiano.
Foto destaque de Markus Spiske/Pexels