Uma sem-teto idosa não é o tipo de vizinhança que a classe média quer ver no seu quintal

A velha rabugenta e sem-teto que pilota a van é vista como bruxa e acumuladora de lixo que horroriza os moradores que a desejam longe.


A Senhora da Van é um filme de 2015 e estrelado por Maggie Smith, que você conhece como a professora Minerva McGonagall dos filmes da série Harry Potter ou como a condessa Violet Crawley da série de TV e do filme Downton Abbey. O filme é baseado em uma história “quase” real. De fato, na década de 70 surge uma van caindo aos pedaços no tranquilo bairro de Camden Town, na capital londrina. Estaciona ora aqui, ora acolá, para o tormento dos seus pacatos moradores. A velha rabugenta sem-teto que pilota a van é vista como bruxa pelas crianças, e a falta de higiene – uma acumuladora de lixo – horroriza os moradores que a desejam longe. Se crianças tem medo da bruxa, rapazes assustam a velhinha batendo na lataria do carro, ameaçando tombar o veículo e coisa do tipo. E um policial, periodicamente, aparece para achacá-la. 

Um dia, o escritor e dramaturgo Alan Bennett, um homem perturbado, de dupla personalidade, resolve protegê-la, mas por interesse, porque encontra nela inspiração para escrever uma peça teatral, um monólogo apresentado por ele mesmo. Alan a usa como compensação por não estar presente na vida da mãe, que tem a mesma idade da senhora da van e vive em uma casa de repouso.

Quando a prefeitura, pressionada pelos moradores, resolve expulsar a velha da van do bairro, espalhando faixas de proibido estacionar por todas as vias, Alan oferece sua vaga de garagem, acreditando que em três meses terminará sua obra e ela se canse e desapareça. Ou que não dure muito mais por conta da idade avançada e da falta de cuidados.

Prognóstico errado, à lá Puttin, Miss Shepherd permanece no local até o fim da vida, ou seja, por mais 15 anos! Durante esse tempo, Alan se aproxima cada vez mais da moradora da van e acaba descobrindo seu passado e seu maior pecado.

No filme, a senhora da van tem um irmão em Broadstairs, na charmosa Ilha de Tanet. Temos, então, duas vistas especiais, a de um bairro londrino tradicional e a de um dos locais de veraneio mais procurado pelos londrinos. O contraste das locações é gigante. Talvez esta cidade faça parte do “quase” real do filme e o diretor a tenha escolhido apenas para jogar uma luz nas sombras, porque é bem isso que acontece, o bairro soturno e a ilha solar. Broadstairs, para quem não sabe, é a cidade escolhida por Charles Dickens para escrever alguns dos seus livros como Break House.

Mas quem é de fato a misteriosa moradora da van?

O escritor acaba por descobrir que Miss Shepherd foi uma grande pianista, aluna do célebre maestro Alfred Cortot, e que tinha como sonho ser freira. No convento, descobre que para seguir a vida religiosa deve abandonar o piano. Ela o faz a contragosto, pois a superiora não a convence de tal incompatibilidade. No confessionário, num surto de sinceridade, diz se sentir melhor tocando piano do que rezando. Diante de tamanho sacrilégio, sua vida se torna um inferno, e literalmente os religiosos tiram seu juízo. Fora do convento, não se adapta mais ao convívio social e se torna uma sem-teto. O irmão a coloca em um manicômio. Depois de anos, consegue escapar, adquire uma van e já não confia em mais ninguém, mas em nenhum momento abandona a religião, e só no final da vida se reconcilia com a música. Esta, sim, nunca a abandonou. Por isso você terá o filme abrindo e fechando com um concerto de piano.    

A verdadeira Miss Shepherd era uma pessoa amarga, incapaz de sorrir, mas no filme a atriz suaviza o papel com um toque de humor ácido. Por exemplo, quando o escritor – que procura não se afetar de maneira alguma por ela – em dado momento baixa a guarda e oferece uma xícara de café, ela responde que não deseja dar muito trabalho, por isso aceita apenas meia xícara.

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A cena dela descendo a ladeira numa cadeira de rodas sem freio, e ele correndo atrás preocupado, é impagável. E a desconfiança dela em relação às visitas noturnas recebidas pelo escritor? Eu sei o que eles são! Alan fica tenso. Quem assiste imagina que suas desconfianças serão confirmadas. Ahan! É agora! Mas a conclusão da velha da van e sem-teto é um alívio para o dono da casa: são comunistas!

A grande frustração do escritor é não ter sido ele a encontrar Miss Shepherd morta, mas uma assistente social que aparece só de três em três meses e insiste em tratá-lo como cuidador. Não, eu não sou cuidador!

Serviço
Título original: The Lady In The Van, 2016
Direção: Nicholas Hytner
Roteiro Alan Bennett , Alan Bennett
Elenco: Maggie Smith , Alex Jennings , Jim Broadbent

Fotos: divulgação


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Mário Lucena

Jornalista, bacharel em Psicologia e editor da Portal Edições, editora do Portal do Envelhecimento. Conheça os livros editados por Mário Lucena.

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