‘Boa Noite, outra vez’: nunca estamos velhos demais para aprender

‘Boa Noite, outra vez’: nunca estamos velhos demais para aprender

A série ‘Boa Noite, outra vez’ narra a jornada que um guarda ferroviário queria fazer ao se aposentar, pois tinha como propósito pagar a dívida com ele mesmo.


A série taiwanesa Boa noite, outra vez (Netflix, 2019), contendo 20 episódios, é uma “ode” à Tawian, mas ao mesmo tempo um chamado à humanidade para o cuidado com o meio ambiente, o ser humano e as relações intergeracionais. Também é uma homenagem a Po-lin Chi (1964-2017), um documentarista, fotógrafo e ambientalista taiwanês, conhecido por seu filme de 2013, Beyond Beauty: Taiwan from Above, que ganhou o prêmio de Melhor Documentário no Golden Horse Awards de 2013. O documentário mostra a beleza natural de Taiwan, mas também chama a atenção do mundo para os efeitos das atividades humanas e da urbanização em nosso meio ambiente.

A série Boa Noite, outra vez’ narra a jornada que Dai Jia He (Bo Zheng Chen) – um guarda ferroviário humilde, cheio de sabedoria -, queria fazer ao se aposentar, pois tinha como propósito pagar a dívida com ele mesmo. Para isso ele traçou um mapa para revisitar antigos lugares e pessoas que deixou para trás, todos narrados em um diário. Mas sua jornada termina justamente em sua primeira viagem, interrompida por um ataque cardíaco dentro de um trem. Sua filha adotiva, Dai Tian Qing (Cindy Lien) e Cheng Nuo (Nicholas Teo) decidem então fazer a viagem que o velho guarda da estação ferroviária não conseguiu completar.

A viagem dos dois jovens é uma homenagem ao velho Dai Jia He, como o reconhecimento de sua sabedoria sobre a vida, fazendo uma analogia ao documentário Beyond Beauty: Taiwan from Above, que empresta uma frase a cada episódio que se inicia. Foi assim que descobri este belíssimo documentário e pude viajar por Taiwan sem nunca ter pisado o pé em suas terras, como também conhecer pratos exóticos e históricos, como ovo de chá. Enfim, a jornada dos jovens é uma homenagem ao homem que mudou o destino deles.

O casal percorre o interior de Taiwan, dando-nos a conhecer um país que para muitos de nós é desconhecido. Nessa jornada eles vão descobrindo os laços afetivos de Dai Jia He e nos mostram possibilidades de cuidados com nós mesmos, com os outros e com o planeta. Além de aproximar gerações, fortalecer relações e darem continuidade ao legado deixado pelo velho guarda ferroviário, como a importância do enraizamento, das memórias, do lar, dos afetos…

Os saberes encontrados nessa jornada são muitos, levando-nos a muitas reflexões a respeito da existência humana integrada ao planeta. Compilei alguns deles, agrupados em algumas categorias, e os apresento a seguir. Espero que vocês gostem e que possam refletir tanto quanto eu. Afinal, a gente aprende coisas diferentes em idades diferentes e em filmes diferentes.

Sobre os velhos e as velhices

– Quando se envelhece, as suas jornadas não devem levá-lo a algum lugar, mas fazê-lo ter aonde voltar.

– A conta chega quando ficamos velhos

– Já estamos velhos, não acompanhamos os tempos. O futuro está nas mãos de jovens. Pessoas velhas como eu só podem tentar aprender coisas novas e acompanhar vocês.

– Ultimamente, ando meio sentimental. Sinto que as pessoas estão sempre à procura do novo. Ficam cansadas das coisas velhas e querem substituí-las. Não pensam nas consequências. Os mais velhos aqui também dizem que os jovens de hoje estão sempre à procura do novo.

– Quando meu pai era jovem, provavelmente não queria enfrentar as coisas. Então ele fugiu. Mas, com o passar do tempo percebeu, ao ficar velho, que não há nada do que fugir que não possa ser enfrentado. É preciso muita coragem para enfrentar os arrependimentos.

– Não podemos viver no passado. Precisamos encarar e esquecer as coisas, só então seguimos em frente. Só assim podemos abraçar o futuro. Nós todos criamos nosso futuro.

– Nunca estamos velhos demais para aprender

Nunca vou deixar a idade me vencer. Mesmo que não seja mais jovem, é importante ficar ativo para viver a vida ao máximo.

Memórias

– O papai dizia que nossas memórias de infância são claras como a água na nascente. Quando ficamos mais velhos, nossas mentes são corrompidas pela fama e riqueza, assim como a água na foz. Quanto mais pessoas, mais óbvios os vestígios de uso humano. Não é tão clara quanto antes.

– Todo rio é um sistema complexo. Não importa quantos afluentes sejam formados, no fim, toda a água deságua no mar. Assim como a vida.

– Mães não podem ficar com os filhos para sempre. O que elas deixam aos filhos são os sabores das comidas que preparam. É uma memória coletiva de uma família. Isso ampara os filhos, não importa para onde forem. Seja lá onde estiverem, aconteça o que for, é só achar os ingredientes e seguir a receita da mamãe. Eles recuperam as energias depois de comer isso. Memórias guardadas nas papilas gustativas. É impossível esquecer essas memórias familiares durante toda a vida.

Sua memória nunca te abandona. Ela está sempre lá, mas seu coração pode estar longe.

Relações

– Relações interpessoais são todas iguais. É difícil desvendar os segredos até de alguém próximo a você. São necessárias duas pessoas para brigar. Poder brigar significa que ainda estão vivas. Não é suficiente para ficar grato? Não aprecie as coisas apenas depois de partirem. Só traz arrependimentos. Não podemos controlar como tudo funciona no mundo adulto.

Sobre o luto

– A vida é cruel. Não temos segunda chance. Todo mundo sofre na vida. Ser humano é superdifícil.

– A morte não significa desaparecer. Ser esquecido, sim. Tal qual bem nos mostra Viva – A Vida é uma Festa, filme da Pixar dirigido por Adrian Molina e Lee Unkrich. Se ainda não assistiu, recomendo bastante.

– Todo mundo precisa de tempo e processa a tristeza de modos diferentes. A tristeza tem sua própria linha do tempo. Não há um padrão para “se sentir melhor”. O luto pode sempre estar presente. Só precisamos aprender a viver com ele.

– Mesmo que as pessoas se vão quando morrem, os espíritos e memórias permanecem como a existência de vocês.

– As feridas em nossos corações podem ser curadas com o perdão. As cicatrizes vão sumir com o passar do tempo. Como as montanhas caídas, elas não precisam de reconstrução, mas de descanso. Dê tempo à terra para ela se recuperar aos poucos.

Espere que o amanhã nos ajude a esquecer a dor de hoje.

– Não há circunstâncias desesperadoras neste mundo, somente pessoas que se desesperam com as circunstâncias.

Sobre o cuidado e o afeto

Transcrevemos a seguir parte de um diálogo entre um dos velhos amigos do guarda ferroviário, o sr. Lian, com Jason, filho de outro amigo, cujo pai tem a doença de Alzheimer. Diz Jason:

– Ele se esqueceu de tudo. Só me dá trabalho.

– Quem disse que ele esqueceu tudo? Pergunta o amigo de seu pai, entregando-lhe um caderno preto e diz:

– Dê uma olhada. Mesmo que seu pai não esteja bem, acredito que os pais nunca se esquecem do quanto amam seus filhos.

No caderno está escrito o que o pai de Jason lembra do filho, das suas visitas, o nome da mulher, coisas que ele nunca quer esquecer.

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– Mas agora ele é como uma criança e não consegue fazer nada sozinho.

– Você precisa ter compreensão. Cuide dele. Não o abandone. Pois o destino aproximou vocês como parentes. Precisa apreciar esse laço.

– Apreciar? Ele vai saber? Já é tarde demais.

– Desde que se esforce, ele vai sentir.

A família precisa ter paciência quando há uma pessoa doente em casa. Ainda mais as que têm demência. A bondade é inerente às pessoas.

– Para as pessoas da nossa geração, não importa o que aconteça, sempre tentamos consertar tudo. Seja no trabalho ou na amizade, as pessoas se aproximam por causa do destino. Então precisamos apreciar nossos laços. Não podemos desistir deles facilmente.

Esperança

– Você não tem perseverança porque vê esperança. Você vê esperança porque tem perseverança. Gotas de água conseguem desgastar uma pedra não por seu poder…, mas por sua perseverança ao longo do tempo. Para ir longe, você precisa dar um passo de cada vez. Uma jornada de mil quilômetros começa com um passo.

Seguir o coração

– Não importa o que planta. O que importa é onde seu coração está. Hoje em dia, todo mundo se preocupa com eficiência e economia. Há menos coisas que tocam nossos corações. As pessoas daqui dizem que a realidade destrói sonhos, mas sonhos também destroem a realidade. Se quer fazer algo na vida, deve fazer, não importa o custo. Se estiver no lugar certo, mesmo se virar camponês, terá um future brilhante. O que outras pessoas acham não é importante. O importante é entender seu coração.

Enraizamento

– Buscando um lugar de pertencer. Quero ter a sensação de pertencer a algum lugar que posso cultivar no coração.

– Árvores são como pessoas. Seja criando raízes ou soltando folhas, elas estão sempre aprendendo a se apegar e a largar.

– As raízes das pessoas estão na cidade natal delas. A cidade natal é passado e futuro. Não importa aonde vamos ou o quão longe estejamos, sempre estaremos ligados à nossa cidade natal. Não é algo que nos deixa amarrados, estar preso e sem liberdade. É um laço emocional. É como uma marca no corpo. Aonde você vá ela te segue. Está dentro de você. Está na sua alma. Não pode se livrar dela. Algumas pessoas querem jogar fora, mas não conseguem. Algumas querem esquecer, mas ainda pensam nela.

– Para algumas pessoas, a cidade natal é uma restrição. Mas para outras, é como uma âncora. Não importa aonde vão, sempre se lembram de onde vieram. E sempre voltarão para lá. Para essa âncora, elas contribuem com o que podem e ajudam com tarefas cotidianas triviais.

O melhor lugar do mundo são nossos lares. Voltar ao lar é algo para se orgulhar.

Reflexões diversas

– O sucesso de hoje vem do trabalho duro de ontem. O sucesso de amanhã depende dos seus esforços de hoje. O sucesso é um processo.

Um pião só roda se você o jogar.

– Diga a você mesmo todos os dias “sou incrível”.

O dom mágico da vida é o que me dá forças.

– Não há nada no mundo que seja exclusive de uma pessoa. As oportunidades não esperam você. É por isso que a indecisão é a assassina mais cruel do mundo.

– As melhores coisas na vida acontecem quando menos esperamos.

Todas as viagens têm um fim. Mas isso não é uma coisa triste. Tudo o que você viver nunca vai desaparecer. Isso é um novo começo.

Sobre o filme ‘Beyond Beauty: Taiwan from Above’

Esse é o primeiro filme a documentar Taiwan por meio de fotografias aéreas, permitindo-nos, como pássaros, voarmos sobre Taiwan, testemunhando a beleza da natureza e a tristeza da sua destruição causada pelo homem na ilha. O sucesso do filme desencadeou uma onda de movimentos socioambientais que levou a várias medidas implementadas pelo governo taiwanês e várias agências ambientais para tomar medidas efetivas para conter a poluição ambiental.

Serviço
Série Boa noite, outra vez
Netflix: 2019
20 episódios

Fotos: Divulgação/prints da tela

Atualizado às 11h55


Beltrina Côrte

Jornalista, Especialização e Mestrado em Planejamento e Administração do Desenvolvimento Regional, Doutorado e Pós.doc em Ciências da Comunicação pela USP. Estudiosa do Envelhecimento e Longevidade desde 2000. É docente da PUC-SP. Coordena o grupo de pesquisa Longevidade, Envelhecimento e Comunicação, e é pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE), ambos da PUC-SP. CEO do Portal do Envelhecimento, Portal Edições e Espaço Longeviver. Integrou o banco de avaliadores do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – Basis/Inep/MEC até 2018. Integra a Rede Latinoamericana de Psicogerontologia (REDIP). E-mail: [email protected]

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Jornalista, Especialização e Mestrado em Planejamento e Administração do Desenvolvimento Regional, Doutorado e Pós.doc em Ciências da Comunicação pela USP. Estudiosa do Envelhecimento e Longevidade desde 2000. É docente da PUC-SP. Coordena o grupo de pesquisa Longevidade, Envelhecimento e Comunicação, e é pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE), ambos da PUC-SP. CEO do Portal do Envelhecimento, Portal Edições e Espaço Longeviver. Integrou o banco de avaliadores do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – Basis/Inep/MEC até 2018. Integra a Rede Latinoamericana de Psicogerontologia (REDIP). E-mail: [email protected]

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