As memórias do acampamento, casa e sítio, revelam que o lugar tem um valor significativo nas narrativas dos sujeitos idosos, expressando a dimensão afetiva entre sujeito e espaço.
O estudo do envelhecimento tem sido abordado na literatura clássica da Gerontologia Social, da Demografia e das Ciências Sociais. No entanto, é importante notar que muitos desses estudos tendem a adotar uma abordagem estatística e epidemiológica, bem como uma perspectiva predominantemente urbana dessa experiência. Nesse contexto, é crucial desenvolver uma leitura geográfica sobre o envelhecimento, que leve em consideração as experiências e histórias de vida dos sujeitos idosos, compreendendo-o como um processo individual, heterogêneo e desigual, que abrange aspectos biológicos, sociais, culturais e psicológicos.
Ao examinarmos a literatura existente, observamos que a Geografia tem tratado o envelhecimento majoritariamente a partir de uma perspectiva demográfica, que considera a velhice como uma fase de vida em oposição à juventude. Essa abordagem nem sempre enfatiza adequadamente a importância dos idosos, suas práticas espaciais e a multidimensionalidade desse processo nas análises geográficas. A fim de avançar nesse debate, é fundamental explorar as múltiplas experiências de envelhecimento na contemporaneidade, levando em consideração as contribuições dos sujeitos idosos e os desdobramentos dessa experiência na sociedade e no espaço.
O presente texto resulta de uma análise geográfica conduzida em um estudo de doutorado[1] que investigou as condições de vida e envelhecimento de idosos em áreas de conflitos agrários no Pontal do Paranapanema, região do interior de São Paulo amplamente reconhecida por sua história de ocupação irregular de terras e pelos frequentes conflitos agrários.
A compreensão da indissociabilidade entre os sujeitos e o espaço desempenhou um papel fundamental na reconstrução das memórias dos idosos que lutam por melhores condições de vida, justiça social e reforma agrária. Foram acompanhadas trajetórias diversas e plurais de envelhecimento, tanto no contexto dos acampamentos, enquanto espaços de luta e resistência, quanto nos assentamentos, enquanto espaços de conquista e reprodução socioterritorial.
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O envelhecimento como categoria de análise geográfica
Autores como Hopkins e Pain (2007); Hardill (2009) e Klima et al. (2014) demonstram que o envelhecimento e a qualidade de vida podem ser compreendidos a partir da dimensão espacial na Geografia. Esses estudiosos argumentam que a trajetória de vida dos idosos, a qualidade de suas vidas e seu impacto no uso do espaço são temas que se encaixam perfeitamente dentro do domínio geográfico. Dessa forma, acreditamos que a natureza do envelhecimento e a relação que os idosos estabelecem com o espaço também podem ser discutidas a partir de uma perspectiva geográfica.
Assumindo o referencial teórico da geografia do envelhecimento, propomos compreender como o conceito de espaço pode ser aplicado nas análises sobre idade e envelhecimento, evidenciando uma abordagem geográfica relacional que considera os múltiplos sujeitos sociais, para além do mundo dos adultos (HOPKINS; PAIN, 2007).
Reconhecemos a relação intrínseca entre espaço, sujeitos e envelhecimento, partindo do pressuposto de que o envelhecimento é uma experiência singular e heterogênea, que varia de acordo com as posições identitárias dos sujeitos, como gênero, sexualidade, cor e raça. Uma das principais contribuições da geografia do envelhecimento foi introduzir uma perspectiva relacional no estudo da idade, analisando as dimensões da qualidade de vida das pessoas idosas e focando na relação que esses sujeitos estabelecem com o espaço doméstico.
Envelhecimento no Espaço Rural: Narrativas de Luta, Memória e Esperança
O envelhecimento no espaço rural é uma realidade complexa e multifacetada, que traz à tona dimensões importantes da vida, do cotidiano e das práticas espaciais de indivíduos que lutaram e ainda lutam por um mundo mais igualitário, por justiça social e pela reprodução socioterritorial na terra.
Ao reconstruirmos as memórias em narrativas autobiográficas dos idosos, somos transportados para momentos de alegria, sentimentos de nostalgia, tristeza, luto e, principalmente, esperança. Essas histórias expressam que a luta por melhores condições de vida se fortalece, mesmo diante de impasses e resistências vivenciadas em contextos de conflito pela posse da terra.
A relação entre o espaço e o envelhecimento é o fio condutor para a reconstrução das lembranças dos idosos em áreas de acampamento e assentamento. Essas lembranças revelam a luta pela terra e a busca por permanecer nela. Através da reconstrução de momentos da vida individual e coletiva, apresentamos diferentes versões de um mesmo acontecimento.
As memórias reconstruídas em campo demonstram que os idosos apresentam outras perspectivas de envelhecimento, alheias à estrutura capitalista. Enquanto a lógica do capital os invisibiliza, retratando-os como incapazes, improdutivos e descartáveis por não contribuírem economicamente para a sociedade, na lógica camponesa, mesmo subordinados ao capitalismo, os idosos têm controle, mesmo que parcial, sobre o tempo de trabalho e a forma de produção no campo.
As estratégias de reprodução evidenciadas no cotidiano do acampamento e assentamento mostram que os idosos do campo estão ativos, levando uma vida independente na velhice, tomando decisões e protagonizando momentos de luta e resistência, mesmo em condições desiguais e precárias. A luta pela terra, na condição camponesa, constrói e continua construindo outras referências espaciais e de memória para a reflexão sobre o envelhecimento.
A passagem do tempo e o envelhecimento das pessoas que lutam pela terra são temas centrais neste texto. Acompanhamos a luta dos mais velhos por melhores condições de vida, sobrevivência e reprodução na terra. Essa luta não se resume apenas à conquista direta, mas representa uma batalha contínua por melhores condições de vida, reconhecimento da cidadania, estabelecimento de vínculos com a terra, entre outras dimensões. Portanto, estamos falando de uma luta dupla: a luta pela terra e pela integração social. Observar essas perspectivas, nas quais a terra é a base, inspira-nos a buscar nossos próprios sonhos.
As histórias reconstruídas confirmam a hipótese de que o espaço desempenha um papel ativo na trajetória dos sujeitos. As memórias dos tempos de acampamento, especialmente na época dos “ranchinhos”, assim como as memórias da casa e do sítio, revelam que o lugar possui um valor significativo nas narrativas construídas pelos idosos, expressando a dimensão afetiva presente na relação entre sujeito e espaço.
Com base nisso, constatamos que os sujeitos e os contextos espaciais não são passivos, pois o espaço pode impactar de inúmeras maneiras as experiências espaciais, influenciando o estilo de vida e o cotidiano dos sujeitos, de forma solidária ou desafiadora. Ambos se constroem mutuamente.
Em resumo, o espaço e suas dimensões ajudam os sujeitos a construir suas memórias, permitindo-lhes criar raízes no lugar em que vivem e fortalecer os laços com as pessoas ao seu redor. Conceituamos a memória como um acúmulo de experiências e aprendizados adquiridos ao longo da vida, em que cada sujeito vivencia eventos e acontecimentos de maneira pessoal e particular. O mesmo fato pode ser lembrado de inúmeras maneiras entre os sujeitos.
Ao considerar o envelhecimento como um fenômeno espacial e relacional, a Geografia tem a oportunidade de oferecer novas perspectivas sobre essa fase da vida. Ao abranger as experiências e histórias de vida dos sujeitos idosos, podemos enriquecer nossa compreensão do envelhecimento como um processo complexo e multidimensional.
Portanto, é essencial continuar a desenvolver pesquisas que integrem a abordagem geográfica na análise do envelhecimento, reconhecendo a importância das múltiplas identidades e práticas espaciais dos idosos na sociedade contemporânea.
Notas
[1] OLIVEIRA, Fernando Henrique Ferreira de Oliveira. O envelhecimento do ser no espaço: memórias de idosos em contextos de luta e conquista da terra no Pontal do Paranapanema – São Paulo – Brasil. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Estadual Paulista. Presidente Prudente, 2022.
Referências
HARDILL, Irene. Introduction: Geographies of Aging. Journal The Professional Geographer. Volume 61, 2009.
HOPKINS, Peter; PAIN, Rachel. Geographies of age: thinking relationally. Area. Vol. 39 No. 3, pp. 287–294, 2007.
KLIMA, Ewa; JANISZEWSJA, Anna; MORDWA, Stanisław. Elderly people and their quality of life – challenges for Geography. Space – Society – Economy. No 13, 2014. University of Lodz. (p.173-189).
Foto destaque de Selim Özgün/pexels.