Livro recém-publicado e fruto de pesquisa aponta que o trabalho do cuidado deve superar a naturalização de ser uma responsabilidade restrita às mulheres.
O livro Velhices, cuidado e cuidadora – Afinidades e particularidades nas políticas públicas argentinas, uruguaias e brasileiras, recém publicado, é resultado de minha pesquisa de pós-doutorado, que teve como pressuposto central que, independentemente da idade, somos seres de cuidado, da infância à velhice, e, sendo assim, o valor da vida não muda em função da dimensão cronológica. Daí a urgência da construção de uma cultura do cuidado numa perspectiva intergeracional e, sobretudo, garantida pelo Estado. A pesquisa foi financiada pelo CNPq e supervisionada pela professora Solange Maria Teixeira, coordenadora da Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí (UFPI), onde realizei meu pós-doutoramento.
Paralelo a essa compreensão, urge também refletir sobre a transformação da sociedade, porém o imaginário coletivo preserva representações de um tempo inconciliável com a contemporaneidade, a exemplo do cuidado ser atribuído como função nata da mulher. Quer dizer, o campo dos cuidados na sociabilidade capitalista, tal como o trabalho doméstico e reprodutivo, é historicamente compreendido como “coisa de mulher”, uma responsabilidade exclusiva do segmento feminino, daí a sua desvalorização, o que torna absurdamente penoso o cotidiano de quem sustenta o mundo, conforme como analisam diversas intelectuais feministas referenciadas no livro.
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Logo, foi de interesse desta pesquisa rever tal determinismo biológico, bem como analisar as configurações das políticas sociais em três países da região mais desigual do mundo, a América Latina, no que concernem ao cuidado voltado à população idosa. Nessa direção, a partir dos contextos da Argentina, do Uruguai e do Brasil, foi relevante identificar em que esses países se assemelham e se distanciam nas relações de cuidado nas suas mais diversas expressões.
Ademais, não menos importante foi apontar a necessidade de ponderar os dois lados da relação do cuidado: quem cuida e quem demanda, debate ainda incipiente no Brasil, exatamente, como já aludido, porque é visto como trabalho natural da mulher e, sendo assim, não foi incorporado devidamente como política de Estado, reconhecimento já solidificado nos outros dois países do estudo, apesar do predomínio da perspectiva familista, coerente com o projeto neoliberal.
Em outras palavras, a atual lógica da acumulação capitalista acarretou a mercantilização de todas as dimensões da vida ao enaltecer o livre mercado em detrimento do Estado democrático de direito, na defesa de uma nova racionalidade contra a justiça social em que conclama a “liberdade individual”, a competitividade e a meritocracia. Destarte, o indivíduo deve se responsabilizar pelo seu futuro.
Face a esta conjuntura, é refletida a preocupação de que o trabalho do cuidado deve superar, definitivamente, a naturalização de ser uma responsabilidade restrita às mulheres. E, além da revisão da divisão sexual do trabalho para corrigir desigualdades em função do gênero, é mister trazer à tona o Estado no seu sentido público, garantidor do conjunto das necessidades sociais, em oposição à mercantilização e ao familismo.
Com a presente contribuição o ensejo é problematizar o trabalho do cuidado como um compromisso coletivo, uma saída essencial para romper com a exploração, opressão e dominação das mulheres, majoritariamente, as negras.
Em síntese, na direção do materialismo histórico-dialético, acolher as orientações dos movimentos feministas e antirracistas é uma forma de desnaturalizar convenções, modos de vida. Enfim, reinventar valores porque foram inventados, construídos historicamente, logo, podem ser transformados rumo a uma sociedade mais igualitária.
(*) Adriana de Oliveira Alcântara – Assistente Social (UECE), Mestrado em Gerontologia e Doutorado em Antropologia Social (UNICAMP). Sua trajetória acadêmica é dedicada a pesquisas na área da Gerontologia, com foco na família, Institucionalização de Longa Permanência para Idoso (ILPI), políticas de cuidado à pessoa idosa e seus imbricamentos nas relações sociais de sexo, raça/etnia e classe social. E-mail: [email protected].
Serviço
Livro: Velhice, Cuidado e Cuidadora – Afinidades e particularidades nas políticas públicas argentinas, uruguaias e brasileiras
Autora: Adriana de Oliveira Alcântara
Ano: 2023
Páginas: 160
Editora: CRV