Manuel, Rita, Flor… são diferentes velhices cheias de memórias, poesia e vida.
Por Cremilda Medina (*)
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O traço e a palavra sempre se unem na expressão artística de Renata Bueno. Quando cria no suporte livro para crianças; quando desenha sua percepção de rostos de idosos; quando ilustra ficções ou cria capas de obras acadêmicas – seja na abstração do tema, seja na produção simbólica de meios corpos humanos, as metáforas carregam em seu bojo um afeto profundo na mediação arte-realidade.
A leitura do recente livro da autora, Manuel, Rita, Flor..., lançado no Brasil pela Companhia das Letrinhas – Renata atualmente mora em Portugal, mas atua também na área artística de sua terra, São Paulo/Brasil – nos envolve em um universo mítico que enlaça todas as idades. Ao desenhar rostos idosos em meio corpos, a eles justapõe breves perfis em que a palavra e o traço descolam do realismo descritivo para o imaginário da intuição sintética.
Assim, se a edição se volta preferencialmente para o diálogo entre a idade madura e espontaneidade da infância, qualquer leitor de qualquer faixa etária pode embarcar nas reticências do título – Manuel, Rita, Flor... Isaías, por exemplo, é um desses navegantes da poética do cotidiano, sorri para a vida, mas a boca não tem mais dentes. (E seu rosto expressivo atesta que palreia animadamente com seu papagaio Jacó.) Se é para Flor conversar com a neta, a face austera parece abrir suas pétalas. O olhar reflexivo de Linda, não dá mais bola para sua lindeza e prefere criar bichos na macarronada, paisagens na sopa, caras no prato com arroz, carne, feijão e brócolis. Mas perdas da morte também comparecem aos enredos dos modelos idosos da artista: Antonieta, com lágrima suspensa pela sua menina ainda nova que se foi, consegue conversar com os passarinhos (…)e quem sabe encontra uma linda andorinha pra chamar de filha. Já Ana, a astróloga otimista, com seus olhos puxados enxerga muitos lindos futuros. E vem Beatriz, a remendadora de histórias compridas, acrescentar que faz pequeninos nós nos sonhos, mas não se lembra nunca de arrematar a vida. Marta, que cuida de animais abandonados, adora esse modo de ser e vive recebendo lambidas ásperas nas bochechas. Tanto a autora quanto seus perfis se conjugam, ao fim e ao cabo, numa interação afetiva culminante. O que aparece no caso da última frase do pai citado nos seus esquecimentos do dia a dia com os filhos: Rui nunca se esquece de dar um abraço apertado neles e de fazer aquela omelete especial que só ele sabe fazer. E como não podia acontecer neste breve álbum de vivências que aqui seleciono, Renata Bueno recupera os mistérios da memória em Irene, que lembra tudinho do dia do casamento e muitas passagens significativas de sua biografia, mas também esquece de outras: Irene não lembra que dia é hoje. Irene não lembra mais de mim.
Embora inúmeros livros para crianças, inúmeras exposições de obras que desenham rostos de idosos já apresentadas no Brasil, na Holanda, em Portugal; embora intervenções artísticas na rua, em museus, em espaços de escultura como o Pó de vir a ser, na cidade lusitana do Alentejo Évora ou oficinas de arte como a que atualmente oferece ao Centro Educacional com Jovens Reclusos e ao Hospital Psiquiátrico com Adultos Reclusos, ambos da cidade do Porto, o livro agora lançado no Brasil devolve à terra natal um delicado laço pictórico e linguístico que abraça leitores de todas as idades.
Folhear Manuel, Rita, Flor... é viajar com estes protagonistas reais transcriados por Renata Bueno em personagens a nós familiares. Tanto faz se o leitor for neto, filho ou parceiro etário destes contemporâneos.
Leitura cultural do livro:
BUENO, Renata. Manuel, Rita, Flor...São Paulo, Companhia das Letrinhas, 2024.
(*) Cremilda Medina – Jornalista, pesquisadora e professora titular sênior da Escola de Comunicações e Artes da USP. É autora de 20 livros e organizou 55 coletâneas nas áreas de comunicação, jornalismo e literatura. Nasceu em Portugal, mudou-se para Porto Alegre na infância, onde se formou em Jornalismo e Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1964. É livre-docente em Epistemologia do Jornalismo pela USP. Tem como principal linha de pesquisa a Dialogia Social e os desafios paradigmáticos do Saber Plural: a perspectiva do ato presencial, abertura à complexidade, signo da relação e pedagogia dos afetos; tendo como finalidade a teoria e prática da reportagem (narrativas da contemporaneidade). É docente do Espaço Longeviver, no curso “Oficinas de Narrativas online: Memórias Lúdicas”.
Ilustrações: Divulgação