A terceira narrativa da velhice que trago para os leitores do Portal é de Júlio, que diz que “da geração que eu venho não é fácil envelhecer” sem trabalhar.
Eu me chamo Júlio e vou contar sobre ser velho na nossa sociedade, mas antes vou contar a minha história. Sou um homem de 78 anos, ativo e apesar de ter alguns problemas de saúde, eu me considero uma pessoa que ainda esbanja saúde sim. O mais difícil durante o meu envelhecimento foi em relação ao meu trabalho. Entrei na Companhia Docas São Sebastião com 18 anos, meu pai era gerente de RH lá, mas ele me disse que não poderia me ajudar a entrar na empresa, que eu precisaria fazer um concurso público para entrar. Estudei noites e noites, tomei muito café para conseguir aguentar trabalhar como patrulheiro entregando cartas o dia todo, ir para a escola de noite e ainda conseguir estudar para o concurso, nunca foi fácil. Mas passei!
Naquela época nós já tínhamos uma condição bacana de viver, nunca passei fome e nem necessidade, nunca tive que correr atrás de dinheiro para colocar o pão na mesa, mas eu sempre trabalhei durante toda a minha vida e é isso o que eu sei fazer de melhor. Entrei em 1962 nas Docas, comecei como mensageiro, depois fiz concurso interno e passei a ser auxiliar administrativo na época em que ainda se usava máquina de datilografar, meus dedos tinham calo de tanto bater naquelas teclas pesadas, tudo era feito na mão, demorou quase 5 anos para eu ter uma sala com um telefone fixo, daqueles enormes que discavam.
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- 08/05/2022
Quando completei 22 anos, eu entrei na faculdade e fiz administração, pois queria alcançar passos ainda maiores dentro da empresa. Prestei novo concurso interno em 1972 e fui promovido para administrador na área de controladoria, nunca vou me esquecer da maravilhosa sensação que eu sentia ao saber que estava alcançando os passos do meu pai. Naquele mesmo ano conheci a mulher da minha vida, a minha Marilene, uma mulher doce e feliz, nos casamos quase um ano depois, meus pais me deram uma ajuda financeira para comprar o nosso primeiro apartamento, e os pais dela nos ajudaram financeiramente para a compra do nosso primeiro carro.
Naquele ano eu me senti completo como a maioria dos homens se sentiam, só faltava um filho para completar a nossa alegria. Infelizmente não tivemos a oportunidade de ter um filho biológico, pois nosso organismo não nos permitiu, e não tínhamos dinheiro e nem esperança em fazer nenhum tratamento que revertesse esse quadro, desta forma decidimos adotar os nossos sobrinhos. Fomos tios extremamente presentes e afetivos ao longo da vida do João, do Lucas e da Mariana. Apesar de todas as pessoas acharem que os casais só são felizes quando se tem filhos, eles estão enganados, o importante é ser feliz ao estar junto de quem se ama.
Passei a minha vida em uma rotina como a do Charles Chaplin em “Tempos Modernos”, todo dia fazer tudo igual, ou como diria Caetano Veloso “todo o dia é o mesmo dia a vida é tão tacanha, nada novo sob o sol”. Só nos finais de semana nos permitíamos apreciar a companhia um do outro, a companhia da nossa família e principalmente aproveitar as crianças. Esses quase 50 anos passaram voando, eu me lembro e ainda me assusto em pensar em como tudo passou tão rápido.
O aposentar-se…
Esse ano foi o ano em que além de eu me aposentar, eu saí da empresa na qual eu trabalhava, não porque eu não poderia sair antes, mas porque não fazia sentido para eu pensar em me aposentar. O que eu vou fazer sem trabalhar? No primeiro mês eu só dormi, no segundo eu só via TV, agora já estou caminhando para o terceiro mês e estou começando a pensar que a vida precisa ir além dessas duas coisas. Marilene já se aposentou faz quase 4 anos, mas pensa em uma mulher ativa, ela sai com as amigas, dança, faz artesanato, assiste séries e parece que faz 24h virarem 48h, mas eu ainda estou um pouco perdido com tudo isso, não estou acostumado a limpar a casa, pois a minha mulher já faz isso com tamanha rapidez… Meus sobrinhos já têm filhos, mas eles estão sempre na escola ou nas telas de celular, quase nunca consigo conversar com eles, até porque eles nunca parecem interessados.
Eu não tenho mais um propósito para me sentir útil, não tenho filhos ou netos para cuidar, minha esposa se vira muito bem sozinha, minha casa está sempre em ordem, eu fico me perguntando: para que é que eu sirvo?
Em um belo domingo, pedi para um grande amigo meu, Pedro, encontrar-se comigo para jogar um dominó na praça perto de onde eu moro. Estava me sentindo extremamente entristecido, avaliando todos esses anos em que passei trabalhando e cuidando da Marilene, todo o carinho que sempre ofereci para os nossos sobrinhos e me perguntando onde tudo isso foi parar, até que ele me disse algo que eu nunca mais esqueci, ele disse:
– Agora a sua vida vai começar de verdade, você não precisa ter um sentido para viver, porque agora você vive por você mesmo, isso não é incrível? Agora você pode fazer tudo aquilo que tem vontade e só fazer, se quiser. Você quer hoje caminhar na praia sem tomar café da manhã? Vá! Você quer sair para viajar numa quarta-feira de tarde para São Roque e voltar só no próximo domingo? Vá! Você está livre para viver, você vai poder apreciar a Marilene enquanto vocês ainda têm saúde, poderá descobrir nela uma antiga namorada, voltar a namorar, descobrir um novo hobbie, aprender uma nova língua. Pare de reclamar e viva!
Eu ainda não sei se estou vivendo do jeito que o Pedro me ensinou, mas tenho certeza de que já não estou mais vivendo como antes, mudei algumas coisas e já venho tentando ver a vida por outro ângulo, admito que foi uma conversa que me fez refletir muito.
Da geração que eu venho não é fácil envelhecer, não fomos nem um pouco preparados para isso, nunca parei um dia sequer da minha vida para pensar em como seria quando eu chegasse nessa idade, até porque nem imaginei se realmente chegaria nessa idade, mas ainda bem que tenho pessoas como o Pedro para me lembrar do motivo de estar vivo.
Espero passar esse resto de tempo que ainda tenho – espero que seja um resto bem longo de tempo – da forma que eu achar melhor e mais leve de se viver.
Foto destaque de Shvets Production/Pexels