Qual papel você assumiria para resgatar um sonho, para desenvolver um papel que já exerce ou, até mesmo, para fazer uma releitura de um papel que exerceu, mas que hoje não desenvolve mais?
Mais um dia se passando e eu no meio do meu trajeto corrido. Quase que de forma automática me desloco, de repente o vejo, lá estava o mesmo senhor: cabelos brancos, postura ereta, trajado com sua farda que representava ali uma alta patente, embora estivesse sentado em uma simples lanchonete fazendo sua refeição. Esta cena foi repetida por algumas vezes quando por ali passava. E por que estaria vestido assim, perguntei-me? Uma amiga comentou “Este velho, sempre sozinho, fica sentado no mesmo lugar e na mesma mesa.”
A declaração de certo modo me impactou. Recordei a cena durante uma aula de psicodrama e resolvi usar a memória como uma oportunidade de encenar, representando-o. Com uma colega de sala, tudo organizei: montei o cenário e fomos praticar a técnica do role-playing[1]. Um xale representava a farda e um nome fictício foi dado ao personagem, será conhecido como “Sr. João”. A professora deu o comando para o início, perguntando-me:
– O que você gostaria de dizer ao Sr. João?
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Neste momento a colega assumiu o Sr. João e eu iniciei o diálogo, indagando-o sobre as lembranças e os papéis que ele um dia exerceu e quais os atuais que ainda exerce, tal como ser pai, filho, marido, amigo, vizinho etc.
Surge aí o “aqui e agora” de Jacob Levy Moreno[2]. E a encenação trazendo “como se”. Foi assim que, ora alternando os personagens com a colega entre o Sr. João e o meu próprio, pude revisitar os possíveis papéis vividos por aquele senhor. Imprevisível foi que, ao assumir o personagem, acabei respondendo à minha própria indagação que questionava o motivo de buscar somente o papel[3] profissional, com aquela farda, se há ainda tantos outros?
A resposta me veio óbvia, como que partilhando dos mesmos pensamentos do Sr. João: “a farda me proporcionou medalhas, obtive crescimento, orgulho e pude ser reconhecido”!
Embalada nesta sensação, a cena foi me levando a lugares imaginários da vida de seu João, quando ao final questionei: “que tal trocar a farda pela roupa da época de vivências com o amigo Pedro[4]? No personagem do Sr. João a resposta foi: Não sei se posso! Lágrimas vieram copiosas, como se esse pedido fosse impossível. Essa interpretação me proporcionou ter a empatia com o Sr. João, então, “como poderia tirar a farda? Quem sou eu sem ela?”, indaguei na pele do Sr. João.
O fato é que os motivos pelos quais o Sr. João se farda só poderiam ser realmente esclarecidos por ele, mas se toda aquela experiência mexeu comigo, algo ali está relacionado aos meus conteúdos internos. Foi quando, durante a encenação, pude ver que aquela história me levou a uma espécie de espelhamento do futuro. Talvez a cena fosse na verdade temida por mim.
Cheguei à conclusão de que hoje dedico e invisto muito em meu papel profissional que me vejo em conflito. E toda a situação me levou a refletir sobre meus papéis e o quanto estes estão desenvolvidos[5] ou não, sendo que a medição de papéis é realizada, levando-se em conta a qualidade dos vínculos estabelecidos nas relações.
Sempre há tempo para as mudanças, tenho pensado no que Moreno afirmou: “Os papéis têm uma grande importância na vida, uma vez que antecedem o “Eu”.
Na teoria Moreniana todo papel só existe se houver o contra papel, também chamado de papel complementar. Ou seja, o Sr. João deixou de exercer o papel de profissional e, mesmo quando fardado, já não tinha como fazê-lo, pois não tinha o seu contra papel (equipe ou pessoas que trabalhavam com ele), o que nos mostra o que Moreno pontuou: “a relação se faz na teoria de papéis[6]”.
Ainda na construção dessa reflexão, quais seriam os novos papéis que tenho interesse em exercer? Quais outros preciso tirar do rudimentar pouco desenvolvido e transformá-los em desenvolvidos?
Para Moreno, o homem saudável é o capaz de tele relações, que vive o aqui e agora, transformando as suas formas de existir de modo criativo, catalisando sua imaginação para transformação da realidade, recriando papéis e valores, a partir das conservas culturais. (NAFFAH NETO, 1979)[7].
Penso, então, que devo ser gentil comigo mesma nessa transformação, mas determinada a desenvolver novos papéis. E para o treinamento de um novo papel Moreno define três fases: role-taking (assumir um papel), role-playing (desempenho do papel) e role-creating (quando um indivíduo utiliza sua espontaneidade).
Um exemplo de papéis
Dona Ivone Lara, a Rainha do Samba, é um exemplo de recriação de papéis. Por mais de 30 anos, foi enfermeira, assistente social e ativista antimanicomial ao lado da médica Nise da Silveira. Após sua aposentadoria dedicou-se exclusivamente à música.
Assim como Dona Ivone, há tempos tenho deixado reservado o papel de cantora em roda de samba para ser desenvolvido em minha aposentadoria, algo que entendo que me trará muito prazer. Agora me questiono o porquê deixar para depois, se como Moreno afirma “quanto mais papéis exercemos, mais saudáveis seremos”.
Independentemente de aposentadoria ou trabalho, qual o nosso caminho?
Imaginando uma conversa com Moreno, talvez ele trouxesse a pergunta ao Sr. João:
– “Para o “aqui e agora”, no seu momento atual, com a sua idade e história, qual resposta você dará para essa sua nova fase de velhice?”
O objetivo seria levá-lo ao desbloqueio de uma resposta adequada a uma nova situação, ou mesmo uma nova resposta a uma velha situação, chamada por Moreno de espontaneidade.
Nesta linha, já pararam para pensar em qual papel você assumiria para resgatar um sonho, para desenvolver um papel que já exerce ou, até mesmo, para fazer uma releitura de um papel que exerceu, mas que hoje não desenvolve mais? Eu, por aqui, continuo a considerar a atuação em boas rodas de samba, muito antes do que eu imaginava.
Notas
(1) (…) “é um método de interação humana que implica o comportamento realista em situações imaginárias.” (Kaufman, 1998).
(2) Médico, psicólogo, filósofo, dramaturgo romeno-judeu nascido na Romênia, crescido na Áustria e naturalizado americano criador do psicodrama e pioneiro no estudo da terapia em grupo.
(3) Para Moreno o papel se define como a forma de funcionamento que o indivíduo assume no momento específico em que reage a uma situação específica na qual outras pessoas ou objetos estão envolvidos.
(4) Nome fictício para representar aquele amigo que por ventura sempre conservamos memórias conosco.
(5) Moreno classifica na regra geral para medição de papéis que um papel pode estar rudimentalmente desenvolvido, normalmente desenvolvido ou hiperdesenvolvido.
(6) MORENO, J.L. Psicodrama.São Paulo: Cultrix, 1975.
(7) NAFFAH NETO, A. Psicodrama, descolonizando o imaginário. São Paulo: Brasiliense, 1979.
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