Não sei se um velho tem menos medo do instante da morte por já ter vivido mais.
Por Ana Laura Moraes Martinez (*)
Minha internação de urgência na noite de 26 de outubro deste ano devido a uma infecção grave por bactéria nos rins, que chegou a atingir o sangue, foi o mais próximo que estive até hoje de experimentar um risco real de morrer. Descobri depois que muitas mulheres são internadas diariamente por pielonefrite com sepse (quando a bactéria atinge o sangue), sendo esta uma das maiores causas de internações e óbitos em UTI´s.
Vivendo esta experiência infeliz, descobri que estar prestes a morrer dá muito medo, apesar de nenhum ser humano admiti-lo abertamente, já que falar sobre a morte é um tabu.
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Não sei se um velho tem menos medo do instante da morte por já ter vivido mais, mas desconfio que não.
Pois, o que entendi do instante final é que o aterrorizante desta situação é simplesmente deixar de existir, o que deve envolver algum tipo de enorme capacidade de desapego egóico, que nas filosofias orientais se costuma exercitar.
Isso obviamente só vale para os que morrem em estado de plena consciência, o que não deve valer para os hospitalizados graves que, quase sempre, morrem sedados e inconscientes da sua situação.
A propósito, rimos à beça disso, eu e um enfermeiro muito engraçado, que me dizia que viúvo mesmo é quem vai, o que eu entendi como a vida terminando mesmo só para quem morre.
Pensei sobre isso ser mesmo compreensível um viúvo ou viúva sentir alívio por não ser ele ou ela o morto, sentimento egoísta que só parece ser superado no amor por um filho. Mas nunca do filho pelos pais.
Outra coisa que aprendi dessa experiência é que o instinto de autoconservação é tão forte em nós que suportamos o inimaginável em termos de procedimentos médicos dolorosos, se isso significar a esperança de um dia voltarmos a ficar minimamente bem.
Foi o que aprendi observando o seu Manoel, que conheci na interminável semana que tive que ir ao hospital três vezes por dia tomar antibiótico endovenoso. Olhando-o de fora, pensava como esse homem suportava a desgraça de sua vida com tão alto-astral e bom humor.
Enquanto ele próprio me explicava que, afinal, tomar mais quarenta e cinco dias de antibióticos pela rejeição da placa de titânio em seu ombro, não era nada perto das oito cirurgias que já tinha feito. O que ocorreu por ter sido atropelado por um carro, em sua moto, quando ia trabalhar de lavador de vidros.
Ou então, D. Marisa, uma aristocrática senhora com quem dividi quarto em minha internação, que suportava com uma elegância estóica sua bolsa de colostomia.
Vendo-os, senti uma admiração profunda pela coragem e bravura dos homens e pensei que a doença e a morte só nos degrada, subtraindo-nos a meros corpos, humilhados por bactérias, cheiro de fezes, pus e células cancerosas que não deviam existir. Por isso minha enorme dificuldade de acreditar em Deus.
Lembro-me que, no dia em que cheguei a este pensamento, a angústia foi quase insuportável, e só cessou um pouco quando ouvi Noturno em Fá menor Op. 9 No. 1 de Chopin, o que me ajudou a me libertar, por alguns instantes, daquele corpo debilitado e fraco, imaginando-me como uns pássaros e um balão que coincidentemente voavam, leves e lindos no céu, bem de frente à minha vidraça.
Disto, compreendi muito melhor a ideia grega de que, sem alguma transcendência, a realidade concreta e primitiva dos nossos corpos, com suas necessidades peremptórias e decadência inevitável, nos humilha e apequena, sendo o ser humano muito mais do que isso. Daí não podermos condenar ninguém por seus vícios.
Não à toa, praticamente todas as religiões e doutrinas filosóficas orientais como o budismo e o hinduísmo, por exemplo, propõem algum tipo de transcendência e superação em relação ao que significa estar aprisionado num corpo, que se degrada a cada dia e caminha paulatinamente para o fim.
Também não à toa é que Deus, na figura de Cristo, só se apiedou dos homens quando experimentou, ele próprio, sentir fome, frio e dor como um deles.
De todo modo, ainda não me recuperei por completo desta visão insuportável, nauseante e odiosa do Real, que me gerou um dolorido estado depressivo, do qual eu sinto que começo a me recuperar só agora.
Finalizando, a única coisa boa que esta experiência me trouxe foi a reaproximação com meu pai, uma pessoa exótica de quem eu herdei muitos traços. Levando-me vinte e uma vezes ao hospital para tomar antibiótico na veia, o que nos rendeu rodar setecentos quilômetros em uma semana, pude sentir, afinal, como é bom ser cuidada por alguém que te ama.
(*) Ana Laura Moraes Martinez é psicanalista, professora e escritora. Publicou o Divã no dia a dia (2011) e Eu, Clarice, de forma independente (2015). Esse post foi publicado inicialmente em Blog de Psicanálise. Site: http://www.psicologiaribeiraopreto.com.br.
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