Estudo mostra que pausas, hesitações e frases interrompidas não são falhas de memória, mas marcas do esforço emocional para reorganizar a identidade após o acometimento da doença.
A doença costuma ser descrita em diagnósticos, exames e limitações físicas, mas raramente observamos o impacto silencioso que ela produz na narrativa que cada pessoa constrói sobre si mesma.
Um estudo realizado com pessoas de 62 a 95 anos, por Ricardo Iacub, Andrea Jambrino, Elisa Urtubey, María Victoria Salamé, Mariana Paz, Claudia González e Eliana Martínez, mostra que, quando o adoecimento chega na velhice, ele não modifica apenas o corpo, ele também altera profundamente o modo como a pessoa consegue contar sua própria história. O estudo, intitulado Descomposición del relato identitario en personas mayores ante la enfermedad y la discapacidad, foi publicado na Revista Kairós-Gerontologia.
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Durante a análise das entrevistas realizadas, os pesquisadores encontraram um padrão recorrente como as pausas longas; frases que não se completam ou que se repetem por hábito para preencher pausas, ganhar tempo para pensar, estruturar a fala ou tornar a conversa mais fluida, como “tipo”; desvios repentinos de assunto; mudanças de tempo verbal e até risos nervosos. Esses elementos apareciam justamente quando a pessoa entrevistada tentava narrar o impacto emocional da doença ou da perda de autonomia.
O estudo mostra que, diante desse tipo de ruptura, a linguagem se torna o primeiro lugar onde o impacto aparece, não porque a pessoa “não saiba falar”, mas porque ainda não encontrou palavras para simbolizar o que está vivendo. A narrativa fica fragmentada porque a experiência interna também está fragmentada. Uma queda, um diagnóstico inesperado, uma limitação súbita reorganizam não apenas o cotidiano, mas também a imagem que a pessoa tinha de si ao longo de décadas.

Uma entrevistada que sempre se viu como autônoma falava com hesitação quando tentava explicar o momento em que precisou pedir ajuda. Um senhor que se orgulhava de ser ativo interrompia continuamente a frase ao tentar contar quando percebeu que já não conseguia caminhar sozinho. Segundo as autoras, não são sinais de deterioração cognitiva, mas marcas do trabalho subjetivo necessário para integrar o que mudou no corpo ao que permanece na história pessoal.
A análise também evidencia que essas hesitações surgem com mais força quando a pessoa tenta costurar passado e presente ao relatar “antes eu fazia… agora não consigo…”, a fala perde firmeza, é como se a pessoa entrevistada buscasse um ponto de ancoragem que ainda não existe, essa narrativa entra em suspensão, porque o sentido ainda está sendo construído. A pausa, nesse contexto, é um espaço de elaboração.
Cada silêncio revela o esforço interno para aceitar uma nova configuração de vida, um novo ritmo, um novo corpo. As autoras afirmam que a desorganização discursiva é, paradoxalmente, um sinal de vitalidade psíquica: é a tentativa de colocar em palavras algo que ainda não foi inteiramente compreendido.
Outro aspecto delicado identificado no estudo é a forma como o corpo aparece na narrativa, não surge apenas como conjunto de órgãos que falham, mas como território simbólico. Não conseguir subir escadas pode significar perder acesso a espaços afetivos, deixar de visitar alguém, modificar o lugar que se ocupa dentro da família.
Não é apenas uma limitação física, é uma mudança na forma de existir no mundo, por isso narrar se torna tão difícil. A doença obriga a pessoa idosa a reorganizar sua identidade, a revisar papéis, a reencontrar um modo possível de continuidade, a fala hesita porque a vida também hesita.
Leia o artigo completo
Os autores argentinos nos convidam a compreender que esse processo não deve ser visto como falha, déficit ou fragilidade cognitiva, pelo contrário, vem como um movimento profundamente humano de reconstrução identitária. Leia o artigo completo em espanhol em: https://kairosgerontologia.com.br/index.php/kairos/article/view/157/81
Iacub, R., Fabiana Jambrino, A., Urtubey, E., Salamé, M. V., Paz, M., González, C., & Martínez, E. D. (2025). Descomposición del relato identitario en personas mayores ante la enfermedad y la discapacidad. KAIRÓS-GERONTOLOGIA, 28(2). https://doi.org/10.61583/kairs.v28i2.157
Foto de Vlada Karpovich/pexels.
