Motti e Whisky, protagonistas de filmes distintos, representam os costumes judaicos, como a finalidade da vida, e as possibilidades de uma existência futura.
No primeiro, um filme suíço, o jovem Motti atinge a idade de casar e a mãe dedica toda a sua energia à tarefa de encontrar uma mulher para o filho. O diretor usa o falso artifício de separar ficção de realidade. Ou seja, Motti, em alguns momentos, ignora a própria cena para explicar ao público o que se passa do ponto de vista do judeu ortodoxo. Se por um lado é didático; por outro, quebra a sequência. Motti explica, por exemplo, como o judeu ortodoxo ignora o imponderável ao programar sua vida: nasce, é circuncidado, aos 13 anos tem seu bar-mitzvá, casa-se com uma garota da comunidade e, para o resto da vida, se dedica a fazer filhos, orar e trabalhar. O próprio filme se encarrega de mostrar que não é bem assim, mas…
No segundo, um filme uruguaio, o velho Jacobo só faz uma coisa na vida, trabalhar na sua modesta fábrica de meias. Lembra muito o Bom Retiro da década de 1970 do século passado, quando os judeus dominavam a moda, o prêt-à-porter tupiniquim que atraía gente de todo o país para a fervilhante José Paulino. É uma viagem no tempo. A rotina domina as primeiras tomadas. Quando Jacobo chega, Marta, a faz-tudo, já o espera na porta. Entram, ele liga as máquinas e segue para o escritório; ela coloca o uniforme e sobe as escadas do mezanino para preparar o chá. Chegam as funcionárias e a decadente fábrica entra em atividade. Um ambiente tóxico, assombrado pela tristeza e atolado num presente frágil que não dá pista da existência de futuro, mas…
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Tóxica é a relação de Motti com os pais, mas com um futuro planejado por uma mãe controladora, chantagista e melodramática. Ao menor deslize, o filho é taxado de ingrato. Seu futuro é um só: casar-se com uma garota da comunidade e manter saudável a seguradora da família. Para tanto, estuda Economia. Motti não tem nada contra o casamento, apenas não se sente confortável em se casar a partir de um encontro arranjado, um shidduch. Um rabino é consultado e sugere que Motti viaje, conheça a Terra Santa. A viagem amadurece o ingênuo Motti, mas…
A relação do velho Jacobo com Marta, a faz-tudo da fabriqueta de meias, é burocrática, mas de extrema confiança. Ela se importa com ele, afinal, é um homem sozinho, deixou de se casar para cuidar dos pais. Jacobo tem um irmão mais novo, Herman, que se casou e foi morar no Brasil, possivelmente no Bom Retiro, onde abriu uma fábrica de meias e, envolvido com o trabalho, faltou ao funeral da mãe, mas não faltará à inauguração da lápide, o matzeiva. O gigantesco tubo de oxigênio e a cadeira de rodas da velha senhora ainda se encontram no mesmo lugar. Jacobo trabalha demais, não tem tempo para arrumar a casa. O pouco tempo livre usa para comer e dormir, no mais, se não está confinado, fazendo contas no escritório, está na rua tirando pedidos e fazendo entregas no velho carro que já passou da hora de trocar, mas…
Motti conhece uma garota na faculdade e se apaixona, uma Shiksa, ou seja, não-judia. Laura é, para ele, uma dissonância cognitiva, algo que se deve evitar, como o cigarro ou o álcool, mas que o cérebro releva: faz mal para os outros, não para você, vá em frente! Sabe que a família não aceitará a shiksa, mas não é o que diz o tarô. Aliás, o que diz o tarô?! O rabino?! Os costumes?! O pior é o não-dito! O coração da velha mãe começa a temer: Motti é gay?! Não é, mas…
Um velho solteirão não fica bem em uma fotografia de família, por isso Jacobo – que só fala com o irmão por carta – inventa que se casou e, para fazer inveja ao caçula, conta que tirou uns dias para conhecer as cataratas. Pois é, passou sua lua de mel de mentiras no Brasil, não na batida Piriápolis da qual o irmão sente tanta saudade. Será que Jacobo inventou essa história de casado para o irmão não duvidar de sua masculinidade? Não, tem mais a ver com os costumes, um homem casado vale mais… será? E agora Jacobo?! Humildemente, mas sem se humilhar jamais, como um negócio extra, propõe à Marta, a faz-tudo, um trabalhinho especial: passar-se por sua mulher durante a estadia do irmão no Uruguai. Uma tarefa remunerada, logicamente. Marta se recusa a receber, mas sabe como são os judeus, negócio é negócio… será? E acabam, depois dos rituais do matzeiva, indo passear na companhia do irmão em Piriápolis. Hospedam-se em um luxuoso hotel-cassino, tudo por conta do visitante abastado disposto a compensar com dinheiro sua ausência de anos, afinal, deixou os pais por conta do irmão e só voltou a dar as caras depois que os dois foram enterrados, mas…
Motti resolve contestar, mudar a armação dos óculos, tirar a barba, trocar o terno por jeans e camiseta, dispensar o chapéu tradicional, enfim, ficar com cara de não-judeu, assumir seu amor por uma não-judia e apresentá-la à família. O pai até que o compreende, mas a mãe, claramente, preferia que o filho fosse gay, expulsa o ingrato de casa e anuncia aos quatro ventos que está de luto pois, para ela, o filho morreu. E o que diz o tarô? Que a morte não é o fim, é uma porta que se abre para tudo, por isso deve se comemorar. Depois da viagem para Israel, responsável pelo despertar de Motti, ele nunca mais será um judeu ortodoxo como a mãe deseja e quer, mas a que preço? A seguradora cobre? Motti, não sabe, mas quem sabe?
Marta se dá muito bem com Herman, o que deixa Jacobo bastante incomodado. A brincadeira de marido e mulher não ocorre exatamente como o planejado, especialmente depois da viagem a Piriápolis, mas Jacobo insiste, até o fim, tratar a tarefa cumprida à risca pela funcionária como um negócio, mas a que preço? Quem sabe?