Toco a campainha na casa de portão azul, no bairro paulistano das Perdizes. Pergunto por Fanny. Benedita, a funcionária da casa – mais conhecida como Bel, diz, do alto da escada, que ela já vem me atender.
Maria Lígia Mathias Pagenotto
Eu já havia ouvido falar em Fanny, mãe da professora Ruth. Sabia que se tratava de uma figura interessante, mas, até então, não podia imaginar o quanto aquela tarde seria agradável.
Logo minha entrevistada aparece. E, de lá de cima, já sorri, acolhedora. Para minha surpresa, vem lépida descendo a escada para abrir o portão.
São 87 anos de vida. E que vida! Fanny é alta, corpo esguio e elegante. É sorridente, generosa, otimista e cheia de histórias para contar. Recebe-me com um abraço caloroso e logo começamos a conversar.
Nascida na Alemanha, em Berlim, é filha de judeus russos. Com o nazismo, obviamente, a família precisou mudar de país. O lugar escolhido foi Portugal. Na cidade do Porto, com pouco mais de 10 anos, se instalou com o pai e a irmã. A mãe havia falecido, uma perda grande já na infância.
A vida não foi exatamente fácil para a garota recém-chegada a Portugal. Fanny responde prontamente a tudo o que pergunto. Fico admirada com sua memória. E com sua imensa disponibilidade em compartilhar seu passado, suas histórias nem sempre alegres, suas lembranças de família.
Ao falar, gesticula movimentando os dedos muito longos da mão. Chama atenção seu modo elegante. Ouvi-la é um aprendizado: Fanny conta detalhes da vida nos países onde viveu, faz críticas à questões raciais da África, discute o modo como os judeus são tratados e explica, sem rodeios, as limitações que apresenta nos olhos. Não se intimida com a capacidade de visão reduzida – que eu, desavisada, tardo a perceber –, busca apoio na tecnologia e na família.
Circula com desenvoltura pela casa, mexe no jardim, sobe e desce escadas, lê e dá aulas. Sim, ela é professora particular de alemão. E ainda pratica natação quase diariamente no clube A Hebraica, para onde vai sozinha. Ao final de nossa conversa, me leva à cozinha e me oferece um bolo com chá, preparado pela Bel, a quem só dispensa elogios. “Ela é ótima, cuida muito bem de mim e faz esse bolo maravilhoso, sem açúcar, porque eu adoro doce, mas não posso comer muito.”
Fica difícil não querer saber mais sobre Fanny Gelehrter da Costa Lopes.
A senhora chegou a Portugal bem menina, como foi a vida lá?
Meu pai era dentista, mas descobrimos logo que os portugueses têm dentes ótimos (risos). Havia pouco trabalho para ele, então eu e minha irmã tínhamos que trabalhar para ajudar em casa. Eu fui dar aulas de alemão. Eu falava bem, pois havia crescido e estudado na Alemanha, mas eu era uma criança ainda, não sabia muito de gramática, não tinha prática nenhuma como professora. Mas lá fui eu dar aulas para as famílias de posse, a pedido de meu pai. Os portugueses fazem questão de dar uma ótima educação aos filhos, então investiam muito no aprendizado de idiomas. Minha irmã gostava muito de ginástica, que era uma disciplina muito bem dada na Alemanha. Eles sempre se preocuparam muito com esse cuidado com o corpo. E ela gostava disso também, levava jeito, então virou professora de ginástica. Eu tinha por volta de 14 anos quando comecei a dar aulas e minha irmã, uns 17 anos.
Fale um pouco sobre sua família. A senhora nasceu em Berlim, foi para Portugal ainda menina. E quando adulta?
Sou judia, filhos de judeus russos de Odessa. Eles foram para a Alemanha em 1917, mais ou menos. Eu e minha irmã nascemos em Berlim, onde moramos até o início dos anos 1930. Daí, por conta do nazismo, a perseguição aos judeus, o início da segunda guerra, fomos para Portugal e nos instalamos no Porto. Minha mãe já havia morrido. Eu me casei com um português, que foi trabalhar em Angola, na África. Criei meus quatro filhos lá. Depois viemos para o Brasil.
E que lembranças a senhora tem da sua mãe?
Ah, lembro bem dela, tenho muitas lembranças. Lembro muito dela cantando em russo. Nós tínhamos um círculo de amizades relativamente grande em Berlim. Participávamos de festas, fazíamos algumas apresentações de música, dança. Lembro bem de uma dança das flores da qual participei, lembro até da roupa… Nesse dia, por vergonha, desisti de cantar, mas falei um texto (risos). Essa era a nossa vida até então. Quando minha mãe era viva, eu não tinha dúvidas de que a vida era boa.
Com a perda dela essa visão da vida mudou?
A perda dela, repentina, por um problema de saúde, eu ainda criança, ela com 48 anos de idade, me deixou perplexa… não foi fácil. Mas vieram muitas outras perdas depois. A vida é boa, sim, mas tem essa parte difícil. Quando criança, o impacto da morte da minha mãe foi grande, embora meu pai fosse muito presente e tínhamos apoio da comunidade judaica, de outros familiares, em Portugal.
E senhora se casou com um português?
Sim, me casei muito nova. Conheci meu marido, Acílio da Costa Lopes, num passeio pelo Rio Douro, ele era remador. Comecei a namorar cedo, com 15 anos. O casamento deu certo. Meu marido morreu em 1983, com 70 anos, também de repente, do coração. Ele era agrimensor, vivemos juntos muito bem. Era muito meu amigo, um ótimo pai de família. Não era judeu, ele vinha de uma família de livres-pensadores e acho que por isso nos dávamos muito bem. Minha irmã também foi muito feliz no seu casamento.
Por causa do trabalho dele a senhora foi morar na África? E as aulas de alemão que dava?
Parei com as aulas e o acompanhei na mudança para Angola, a trabalho. Tivemos de nos adaptar a algumas mudanças. Mas não posso dizer que foi uma vida difícil, pois fingíamos que estávamos na Europa. Havia um lugar para os brancos, que não se misturavam com os negros. Eles eram nossos empregados, resolviam tudo. Havia muita segregação racial. Eu tinha consciência de que aquela situação estava errada, mas não podia mudar nada, tinha de me adaptar. Em meio aos negros, à pobreza, vivíamos como se estivéssemos no Porto. Nós tivemos quatro filhos – três homens, Igor, David e Rui, e a Ruth, que você conhece – criamos as crianças lá. Eles frequentaram escola portuguesa. Por conta da profissão do meu marido, fomos morar no mato mesmo, numa fazenda. Ficamos dez anos lá, depois nos mudamos para Luanda, a capital. A casa da fazenda era boa, grande, e todo o conforto que havia era garantido pelos negros – eles providenciavam nossa água, por exemplo. Eu trabalhava em casa, com as crianças.
Depois dessa experiência, a senhora mudou para o Brasil?
Sim, viemos para São Paulo, por conta de trabalho, e Angola estava em conflito, pela sua independência de Portugal. Os mais velhos acabaram o colégio aqui, Ruth, que era a mais nova, fez a escola no Brasil. Nessa época nós morávamos no bairro da Bela Vista.
E sua vida aqui?
Ah, acabamos de criar os filhos. Todos fizeram ótimas faculdades. Eu tinha vontade de estudar também, mas não me sobrava muito tempo nem dinheiro. Tinha muito o que fazer em casa, cozinhar, cuidar dos filhos, das roupas.
Mas quando eu cheguei aos 50 anos, mais ou menos, percebi que meu marido estava já meio cansado de trabalhar. Achei que poderia contribuir em casa fazendo alguma coisa. Disse isso para ele, mas por conta da minha falta de experiência, ele não achou que eu fosse conseguir algo.
E o que a senhora conseguiu?
Sim, acho que o fato de ele não acreditar muito me incentivou, fiquei com raiva (risos). Comecei a procurar algo, e aí vi um anúncio do Yázigi, escola de línguas, procurando professores. Eu sabia alemão, já havia dado aulas, resolvi tentar. Foi uma experiência maravilhosa. Fui muito bem recebida, tive possibilidade de ampliar meu conhecimento, fazendo cursos, treinamentos na área no Instituto Goethe. Fiz também um curso em Berlim.
Como foi essa experiência?
Maravilhosa. Eu adoro trabalhar, acho horrível não fazer nada. Dei aulas no Yázigi, depois fiquei dez anos dando aulas na Volkswagen, para os funcionários. Durante mais dez anos dei aulas na Mercedes também. Parei aos 75 anos e tenho muita saudade desse período. Fiz muitos amigos, com os quais tenho relação até hoje. Era um ambiente de muita camaradagem. Mas continuei com aulas em casa, de conversação, literatura. Essa atividade mantenho até hoje. Gosto muito, adoro bolar ideias novas para os meus alunos. Já fazia isso desde o início, com auxílio do meu marido, que desenhava materiais didáticos lindos. Veja os equipamentos que eu tenho, para me ajudar, por conta do meu problema nos olhos.
Que problema a senhora tem na vista?
É uma doença na retina. Enxergo muito mal. Vejo os rostos esbranquiçados, e preciso me aproximar bem para ver as pessoas.
Não imaginava que fosse tanto! A senhora conversa como se enxergasse normalmente!
Eu me adaptei, já estou assim há alguns anos. Tentei alguns tratamentos, mas sem muito êxito. Preciso me aproximar muito das pessoas para vê-las direito. Deixa eu ver seu rosto (chega bem perto de mim). Ah, agora estou vendo bem você… Mas a tecnologia me ajuda muito, e minha família também, claro. A Ruth me incentiva muito, está sempre atenta às novidades que existem na área para quem tem problemas de visão, meus netos também colaboram, me mantêm informada sobre tudo o que pode tornar minha vida melhor.
Como funcionam esses equipamentos?
Tenho uma lupa eletrônica, que amplia bem as letras. Aí eu consigo fazer a leitura nesta tela grande. Isso me ajuda muito a preparar as aulas. Também uso lupas convencionais e tenho um outro aparelho que me ajuda a ler na cama, fora da tela. Cansa um pouco, claro, não consigo ler por muito tempo, nem rapidamente, mas sem dúvida todos esses equipamentos me ajudam muito!
Muito interessante! E a senhora gosta de tecnologia?
Elas são úteis para mim. Se não fosse isso, não poderia trabalhar. Mas existem alguns equipamentos com os quais não me adaptei. Este aqui tem sido o melhor para mim (mostra como funciona). Procuramos muito para encontrar, a Ruth, com seu conhecimento todo, me ajuda bastante. Em relação à tecnologia, também uso muito o Skype, para falar com meus primos, sobrinhos, que moram em Portugal, amigos, outros familiares, e e-mail, internet. Acho muito bom.
Fale agora um pouco da sua rotina. A senhora tem muita energia. Faz algum exercício? Como se alimenta?
Eu gosto de nadar. Vou muito ao clube Hebraica, quase diariamente. Em relação à comida, gosto de tudo. Minha saúde é boa, faço sempre exames, me cuido, mas tenho meus problemas, claro. Todos sob controle, porque sigo as orientações direitinho. Minhas mazelas estão contidas (risos). Em relação à alimentação, agora que moro com a Ruth, estou sendo mais bem cuidada (risos). Como de forma equilibrada e preciso evitar doces, porque tenho diabetes, embora contida.
E como a senhora vai ao clube? Sozinha?
Sim, vou sozinha. Agora vou de táxi, mas ia de ônibus. Eu gosto de andar de ônibus, mas sofri uma queda há pouco tempo e quebrei meu pé. Meus filhos me imploraram para eu parar de ir de ônibus (risos). Acho um absurdo, mas aceito… Até dois anos atrás eu guiava, sei das minhas limitações. Mas não quero contrariar meus filhos.
Aqui na sua casa, além de dar aulas a senhora faz mais alguma atividade?
Eu sou encarregada de cuidar do jardim. Varro o quintal, planto. Gosto disso. Também gosto muito de telefonar. Estou sempre em contato com os amigos, filhos, netos.
De onde vem tanta disposição e elegância? A senhora se mantém tão esbelta… Sempre fez exercícios?
Nem sempre, não tinha tempo. Comecei depois que criei os filhos. Na verdade, nem gosto de ser tão magra. Queria ser mais redondinha (risos). Acho que tenho um aspecto frágil.
A senhora passa muita alegria, energia. O que diria sobre a vida que levou, que leva?
Ah, eu digo que deu tudo certo na minha vida. Fiz e faço tudo o que queria e quero. Estou muito contente.
E seu problema na vista, como lida com ele? Parece que bem, né?
Claro que perder a visão não estava nos planos… Tentei alguns tratamentos, mas não surtiram muito efeito. Aprendi a me adaptar, tenho a tecnologia a meu favor, acho que está bom.
A senhora tem alguma religião, alguma fé em especial?
Não tenho. Mas sou uma judia convicta, nacionalista, muito fiel ao meu grupo. E me espanto com o tanto de culpa que atribuem aos judeus! Há uma onda antissemita muito grande. As pessoas desconhecem o que é ser judeu. Na época do nazismo fui expulsa da escola, mas digo para você que isso não me entristeceu. O nazismo me deu forças para eu me sentir judia. Meu marido, embora não fosse judeu, me compreendia, me protegia. Era um livre-pensador.
O que diria sobre a velhice?
Meu maior receio é incomodar os outros. Não quero que meus filhos se preocupem comigo, sofram por mim. Por isso acato o que eles me pedem. Tenho medo também que a velhice me torne chata, repetitiva. Mas estou muito contente por ter ficado velha.
A senhora tem tantas e tão boas histórias. Nunca quis escrever um livro?
Acho que se escrever fica duro, o estilo se perde. Prefiro contar. Meus netos gostam muito de ouvir minhas histórias, acho que está bem assim.
A senhora voltou para a África?
Nunca. Mas acompanho as transformações. Em Angola, reconstruíram o país a custa de muito dinheiro. Outro dia localizei no Google o lugar em que moramos, é incrível isso! Meus netos me ajudam, me ensinam. A tecnologia é importante para isso também, né? É muito bom!
Que momento de sua vida até agora lembra como algo bom em especial?
Os meus partos! Tive partos sem anestesia, na África. Senti muita dor, claro, mas muito prazer também. Sempre quis ter filhos. Cada nascimento foi muito especial, um momento muito bom, esperado.
E o que teria a falar sobre as tristezas da vida?
As perdas, sem dúvida, são o que me entristece. Tenho muita tristeza quando morre uma pessoa. Cada vez que desaparece alguém é como se morresse um pedaço em mim.
Mas a senhora parece também enfrentar bem essas perdas, não?
Bem, a vida continua, não é? Vou aguentando, me adaptando, enfrentando. Gosto de viver. Então faço tudo para aproveitar muito bem cada dia que estou viva!