No próximo dia 24 iniciaremos mais uma rodada de Oficinas de Memórias Lúdicas.
O tema deste semestre é Da Tela à Palavra – Imaginário do Cinema. A memória vai ferver. Quem não tem lembranças de cinemas/filmes memoráveis? Mas não se trata só de filmes e cinemas, mas de todo um contexto, histórias a serem resgatadas e que tiveram significados profundos nas nossas vidas, para além do ócio, da diversão, do prazer.
Nas palavras da professora da USP Cremilda Medina, 82 anos: “A persistência de um filme carrega consigo uma experiência que extrapola o cinema e amplia a cena com a observação de traços significativos do cotidiano do espectador e sua relação sócio-histórico-cultural. A produção de um registro dessa experiência se enriquece com histórias humanas, seu contexto coletivo, identidades culturais e contribuições de estudiosos. Os principais eixos de narrativa são:
1) Mediação autoral da experiência e do imaginário e a memória cinematográfica;
CONFIRA TAMBÉM:
2) Personagens e protagonistas – da tela ao contexto contemporâneo real;
3) Mobilidade dos tempos – do passado à presentificação narrativa;
4) Ação e cenas, o forte do cinema, transpostas para a palavra no texto narrativo;
5) A produção simbólica de Autor e os acréscimos de sua pesquisa sócio-histórico-cultural;
6) O exercício da síntese intuitivo-sintética no lugar da razão lógico-analítica.
E para começarmos nosso laboratório, segue o primeiro texto de motivação:
Cine Paradiso nos anos 1940
(“Cine Paradiso, de Giuseppe Tornatore, 1988, foi lançado no Brasil em 1999. Quando assisti ao filme em São Paulo meu imaginário se transpôs para 1946, em Vila Nova de Gaia, Portugal, quando foi inaugurado seu majestoso Cine Teatro. Daí que da tela nascem agora palavras de como vivi no meu Cine Paradiso dos cinco aos sete anos de idade.”)
O porquê do lar cinematográfico
Diz o registro histórico de Gaia que o imponente Cine Teatro – com uma lotação de 1.090 lugares, podendo comportar até 1.200 espectadores, um belo salão de festas, três bars servindo a plateia, o balcão e a geral – contava também com confortáveis camarins para os artistas. Acrescenta um anuário da época que se gastaram 6.800.000$00 nos 1.300 metros quadrados que abrigava “elegante e luxuosa casa de espetáculos com óptima instalação de aquecimento e equipada com duas modernas máquinas de projecção”. Alberto Ferraz Carneiro, o fundador do cinema, dirigia também o Vilanovense Foot-ball Club, onde o jovem José Pereira de Araújo, membro rebelde da família classe média não dada a futebol, atuava no time amador na posição half à direita. Foi neste laço de confiança nos lances em gramado que o fundador convidou o jogador para gerenciar o novo Cine Teatro Gaia. Zeca, como era conhecido no campo do Vilanovense, foi então morar com a companheira Joaquina e as duas meninas Cremilda e Dina, nos alojamentos, ou melhor, nos camarins que sobravam da ocupação artística.
Só sei que vivi à farta
dos cinco aos sete anos, confessa hoje a autora desta memória lúdica. A menina mais velha – a irmãzinha bebê mobiliza a atenção da mãe o tempo todo – foge do camarim, se enfia na plateia, tudo às escuras, a enorme tela cheia de imagens em movimento, não entende o que falam, não sabe ler aquelas palavras embaixo das figuras, mas não desgruda do filme. Joaquina, às voltas com a maninha pequena, nem percebe que a grande fugiu. Lá pelas tantas o pai, a circular nas lides de gerente, se dá conta que a Midinha está na sessão da noite. Vai lá, agarra pelo braço sem falar, pois há gente que assiste à sessão, leva para o corredor lateral e já subindo para os camarins, passa-lhe uma carraspana, espera só chegar lá dentro que a tua mãe vai te dizer para onde tens de ir. Claro, pra cama, que é lugar de criança a esta hora. Castigo, vais ver: estás proibida de descer para o cinema. Só que algumas noites depois, a fuga se repete. E se repete mais vezes, apesar do castigo – afinal, a passagem dos camarins para sala de espetáculos é tão fácil para atores de teatro como para a menina fujona, apaixonada pelos filmes que mal consegue acompanhar nas palavras que os belos personagens pronunciam…
Mas sim, o neorrealismo,
a magia do cinema italiano, de tanto que vê aos pedaços, ficará na retina, registrada em fotografias preto e branco pro resto da vida. “Roma, cidade aberta”, o filme de Roberto Rossellini, de 1945, seria um dos deslumbramentos da tela do Cine Teatro de Gaia. Logo depois, sempre que a menina fujona dos camarins vai para a casa da madrinha Cremilda e do padrinho Daniel Araújo, irmão do Zeca, o casal, sem filhos, capricha com a afilhada nos fins de semana: compram bilhetes marcados nos cinemas do Porto e lá vai ela apreciar um filme de adulto. Como esquecer Sapatinhos Vermelhos (o filme britânico de 1948, de Michael Powell). Não só as horas do espetáculo, com direito a intervalo e lanche no café do cinema, mas as imagens a acompanham na volta para casa. Até chegarao Largo dos Aviadores em Gaia, onde moram os padrinhos, é preciso pegar oeléctricona Praça da Batalha no Portoe atravessar a Ponte D. Luís I (aquela de 1881, de autoria do belga Théophile Seyrig, colaborador de Gustave Eiffel). Quase meia noite, mas a pequena cinéfila não fica entusiasmada com as luzinhas no rio Douro nem as casinhas do lado do Porto e do lado de Vila Nova de Gaia que tanto encantam os turistas. Sua imaginação tece, na tela íntima, os passos dos sapatinhos vermelhos,
imagens que permanecem presentes,
quando atualmente visita primos no Porto e pega o metrô que desde 2005 substituiu, na ponte de cima, o antigo bonde (o eléctrico de sua infância, bondequando se mudou para o Brasil em 1953, aos 11 anos). Mas agora, da outra ponte moderna, em automóvel, se delicia com as vistas, sai da tela de cinema para as paisagens do horizonte, o que muitos poetas já cantaram em palavras”.
O convite está feito, ainda temos vagas, as oficinas de Memórias Lúdicas são às quartas-feiras, das 15 às 17 horas, on-line, mas serão todas gravadas. É um grupo pequeno e acolhedor, a maioria 60+, sinta-se em casa, pois afetos não faltam.
SERVIÇO
Curso Memórias Lúdicas: Da tela à palavra – imaginário do cinema
Professora: Cremilda Medina
Datas: de 24/07 a 19/09/2024
Às Quartas: das 15 às 17h
Carga horária: 20 horas