O idadismo permanece camuflado e naturalizado nas políticas públicas, sobretudo nos serviços de saúde e assistência social.
Daniele Magnavita de Alencar e Simone Martins (*)
O Brasil está envelhecendo em ritmo acelerado e os 60+ já somam 32 milhões de pessoas. No entanto, essa presença numérica expressiva ainda não se reflete em visibilidade social, respeito ou acesso equitativo a direitos. Pelo contrário, o idadismo – discriminação por idade – permanece camuflado e naturalizado nas políticas públicas, sobretudo nos serviços de saúde e assistência social.
Embora o envelhecimento seja um processo natural, a sociedade frequentemente associa a velhice à doença, à incapacidade e à dependência. Estereótipos negativos como “velho é sinônimo de doença” ou “pessoa idosa não aprende mais” alimentam uma cultura discriminatória que desumaniza e deslegitima os direitos desse grupo. No contexto institucional, isso se traduz em atendimentos desrespeitosos, negligência e exclusão das pessoas idosas nas decisões sobre o próprio cuidado.
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As políticas existem — o respeito, nem sempre
No papel, os direitos à saúde e à assistência social da pessoa idosa estão garantidos através da Lei Orgânica da Saúde (nº 8.080/90) e da Lei Orgânica da Assistência Social (nº 8.742/93). O Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa, e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), via Política Nacional de Assistência Social, reconhecem a importância do cuidado integral, da autonomia e da dignidade na velhice.
Entretanto, na prática, o que se observa é uma grande distância entre o que as políticas estabelecem e o que realmente acontece. Como destaca Minayo (2003), o cuidado com a pessoa idosa exige respeito à sua singularidade e ações integradas entre os serviços de saúde e assistência social — algo ainda raro no cotidiano institucional.
Idadismo: a violência silenciosa que despersonaliza
O Relatório Mundial sobre o Idadismo, publicado pela Organização Mundial da Saúde, define o idadismo como a combinação de estereótipos negativos (como pensamos), preconceitos (como sentimos) e estigma (como vemos) que resultam na discriminação (como agimos) baseados na idade. Essa lógica pode se manifestar de forma institucional, interpessoal ou até internalizada, quando a própria pessoa idosa acredita ser incapaz ou nega a velhice.
Nos serviços públicos de saúde e assistência social, o idadismo se revela em diversos níveis profissionais. No SUS são comuns relatos de atendimentos de enfermeiros ríspidos, impacientes ou indiferentes, além de práticas que ignoram completamente a autonomia da pessoa idosa. Mulheres idosas, por exemplo, relatam constrangimento e vergonha ao receberem cuidados de higiene em quartos coletivos, sem privacidade, muitas vezes diante de outros pacientes do sexo oposto (Berzins, 2009).
A ausência de uma escuta atenta e respeitosa também é uma forma de idadismo. Muitos profissionais médicos ignoram as queixas de maus-tratos relatadas por pessoas idosas, deixando de preencher fichas obrigatórias de notificação de violência. Para Minayo e Souza (2003), essa negligência revela um sistema marcado pelo descaso, omissão e ineficiência — e que, por isso mesmo, precisa ser urgentemente repensado.
Pesquisas indicam que a idade é frequentemente usada como critério para orientar quem recebe determinados procedimentos ou tratamentos médicos. Uma revisão sistemática em 2020 mostrou que em 85% de 149 estudos, a idade mais jovem determinou quem recebeu alguns tratamentos médicos, mesmo quando esses tratamentos poderiam salvar vidas (OMS, 2022).
No SUAS, por exemplo, há relatos de que há profissionais, como assistentes sociais, psicólogos e advogados, que realizam os atendimentos direcionados, exclusivamente, aos familiares ou acompanhantes para tratar das vulnerabilidades ou situações de risco de uma pessoa idosa, mesmo quando ela está lúcida e plenamente capaz de participar da escuta qualificada e da tomada de decisões.
Embora, no Brasil, as instituições públicas de longa permanência para pessoas idosas (ILPI’s) ainda representem uma minoria, estudos internacionais revelam práticas preocupantes que ajudam a compreender os efeitos do idadismo nesse tipo de serviço do SUAS e em outros similares. No Canadá, uma pesquisa identificou que a maioria dos residentes percebia a comunicação com os cuidadores como preconceituosa em relação à idade. Os profissionais utilizavam uma linguagem controladora e adotavam padrões de comunicação infantilizados e condescendentes, tratando-os como se fossem incapazes de compreender ou decidir por si mesmos (OMS, 2022).
Situação semelhante foi identificada em instituições de longa permanência em Israel, onde o idadismo se manifestava claramente por meio da ausência de diagnósticos médicos precisos, da objetificação dos residentes, da negligência constante às suas necessidades e de tentativas sistemáticas de cortar custos à custa deles (OMS, 2022). Essas posturas reforçam o apagamento da voz da pessoa idosa e colaboram para um processo de despersonalização, como já destacado por Berzins (2009).
Quando o cuidado vira desproteção
A contradição é clara: instituições que deveriam proteger acabam reproduzindo práticas discriminatórias. A pessoa idosa recorre ao SUS e ao SUAS em momentos de maior vulnerabilidade, mas muitas vezes encontra um atendimento que anula sua autonomia e reforça estigmas. E isso tem consequências graves! O idadismo institucional afasta a população idosa dos serviços de que mais precisa, contribuindo para o isolamento social, o agravamento de condições físicas e mentais, mortes prematuras e custa bilhões para a economia.
Caminhos para enfrentar o etarismo institucional
Apesar do aumento da demanda das pessoas idosas, há uma evidente lacuna na formação de profissionais de saúde e assistência social para lidar com as especificidades do envelhecimento. No número especial de 2025 da Revista Oikos, este tema é aprofundado e, como destacado por Ribeiro e Martins (2025), desafios são enfrentados na efetivação das políticas públicas voltadas ao envelhecimento, com ênfase nas desigualdades sociais e nas manifestações do idadismo.
É urgente investir em formação, assim como em formação continuada e humanizada que ajudem os servidores e profissionais a reconhecerem e superarem o idadismo. As escolas e faculdades precisam incorporar o tema do envelhecimento em seus conteúdos curriculares, contribuindo para a construção de uma nova cultura sobre o processo de envelhecer (veja abaixo a petição a respeito e assine). É igualmente fundamental que as instituições públicas promovam uma cultura de respeito, na qual a pessoa idosa seja ouvida, valorizada e reconhecida como sujeito de direitos — jamais como um fardo ou um problema a ser resolvido.
Referências
BERZINS, M. V. Violência institucional contra a pessoa idosa: a contradição de quem cuida. Tese de Doutorado. Tese (Doutorado) – Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Envelhecimento e o Direito ao Cuidado. Nota Informativa n. 5/2023 MDS/SNCF, 2023.
COSTA, Joice Sousa. Repercussões do envelhecimento populacional para as políticas sociais. Argumentum, v. 6, n. 1, p.133-152, jan./jun. 2014.
MINAYO, Maria Cecília de Souza; SOUZA, Edinilsa Ramos de. As múltiplas mensagens da violência contra idosos. In: Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Janeiro, FIOCRUZ, p. l223-242, 2003.
MONTEIRO, E. C. O envelhecimento populacional e a prática da assistência social no Estado do Ceará: uma análise à luz da Política Nacional do Idoso. Kairós Gerontologia, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 129-141, 2013.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Relatório mundial sobre o idadismo. Washington, DC: OMS, 2022. Disponível em: [https://doi.org/10.37774/9789275724453]. Acesso em 25/05/2025.
RIBEIRO, Andréia Queiroz; MARTINS, Simone. Apresentação do número especial: Inovações e políticas para o envelhecimento saudável. Oikos: Família e Sociedade em Debate, v. 36, n. 1, 2025.
ARAÚJO, Pricila Oliveira de et al. Ageísmo direcionado às pessoas idosas em serviços de saúde: uma revisão de escopo. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 31, p. e4019, 2023.
(*) Daniele Magnavita de Alencar – Secretária de Desenvolvimento Social de São Gotardo/MG. Graduada em Fisioterapia e Direito. Especialista em Gerontologia e Gestão da Assistência a Pessoas Idosas. Mestranda em Administração Pública na Universidade Federal de Viçosa (UFV). Pesquisadora do GEGOP – Grupo de Trabalho Clacso Espaços Deliberativos e Governança Pública. Membra do Grupo UNIDES – Universidades na Década do Envelhecimento.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6475261735656739. E-mail: daniele.alencar@ufv.br
Simone Martins – Professora do Departamento de Administração e Contabilidade da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Doutora e pós-doutora em Administração. Pesquisadora do GEGOP – Espaços Deliberativos e Governança Pública; do IPPDS/UFV – Instituto de Políticas Públicas e Desenvolvimento Sustentável/UFV e do GESDEL – Gestão Social e Desenvolvimento Local. Membro do Comité Executivo da RIES-LAC – Red Interuniversitaria de Envejecimiento Saludable, Latinoamérica y Caribe e da Rapi MG – Rede de Apoio à Pessoa Idosa em Minas Gerais. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5311862771207808. E-mail: simone.m@ufv.br.
Pesquisadoras selecionadas no 4º Edital Acadêmico de Pesquisa: Envelhecer com Futuro, promovido pelo Itaú Viver Mais e Portal do Envelhecimento e Longeviver, com a pesquisa “A diversidade da velhice e seu cuidado no sistema único de assistência social de São Gotardo/MG: reflexões sobre o idadismo e suas manifestações“.
Foto de Marcos Santos/USP Imagens
