Em entrevista, Cybele Ramalho desvenda os segredos da criatividade no envelhecimento

Em entrevista, Cybele Ramalho desvenda os segredos da criatividade no envelhecimento

Cybele, em entrevista exclusiva, personifica a busca por um envelhecimento ativo, criativo e significativo.


Cybele Ramalho, psicóloga, psicodramatista didata e supervisora, especialista em Psicologia Clínica e Psicoterapia Analítica, é uma referência no campo do Psicodrama no Brasil. Desde a década de 80, dedica-se ao desenvolvimento e inovação da área, com um trabalho que se reflete em diversas obras fundamentais.

Fundadora e diretora da Clínica Escola de Psicologia – Profint, Cybele exerce uma liderança na formação de novos psicodramatistas e na especialização de profissionais junguianos. Sua atuação pioneira no psicodrama Junguiano a mantém em constante processo de criação e atualização, sempre atenta aos contextos sociais e replicando seus conhecimentos.

Sua dedicação à melhoria do coletivo, através da arte e da Psicoterapia, demonstra seu foco na saúde e no bem-estar humano.

Meu encontro com Cybele Ramalho transcende o Psicodrama. Antes mesmo de conhecer a obra de Moreno, fui atraída por um de seus livros, com sua arte na capa, que me convidava para uma imersão profunda.

Tenho o privilégio de conviver com ela em diversos momentos, como grupos de estudo de Jung e Moreno, grupos terapêuticos, jornadas e laboratórios de contos de fadas. Além do aprendizado, sua generosidade e mansidão me marcam profundamente. Cybele é gigante, pois confia e promove o outro ao seu melhor.

Para mim, o arquétipo que melhor a representa é o da leoa, símbolo de força e coragem.

Aqui teremos o compartilhar do processo de envelhecimento à luz de Jung e Moreno em uma alusão ao Psicodrama.

Aquecimento inespecífico

Carl Gustav Jung morreu aos 85 anos, mas antes que isso ocorresse escreveu que a sua vida foi “a história de um inconsciente que se realizou.”

Já Jacob Levy Moreno morreu aos 84 anos, e em sua lápide foi impresso: “O homem que trouxe alegria e risos à Psiquiatria.”

Silmara: Solilóquio (O que vem à mente?)
Cybele: Me vem à mente que ambos tinham um grande propósito na vida, uma missão, que desde cedo foi se desenhando em suas trajetórias. A jornada de Jung foi de maior interiorização e de mergulho nas imagens do seu inconsciente, e em busca do inconsciente coletivo em diferentes fontes. Já Moreno se envolveu com a criação do teatro espontâneo e com uma metodologia aberta, centrada no jogo, na alegria e no potencial criador. Parecia que caminhavam em sentidos opostos, mas considero complementares.

Aquecimento específico

Jung: “Um ser humano certamente não cresceria para alcançar os 70 ou 80 anos, se esta longevidade não tivesse significado para a espécie à qual ele pertence.”

Moreno: “Quem sobreviverá?

Unindo essas ideias, o que diria sobre a importância da fase “velhice”?
A velhice é o clímax da nossa vida, a etapa que, após atravessarmos os desafios da primeira e segunda metanoias, poderemos, enfim, ter o prêmio ou o privilégio de adentrar na fase do enfrentamento da sabedoria. Nesta fase, o diálogo com o inconsciente se faz mais necessário do que nunca, para fazermos as pazes com o nosso passado, integrar e compreender nossas sombras. Finalmente, ficarmos mais alinhados com a sincronicidade, com nosso verdadeiro Self e com o cosmos. A inflação de Ego que vivemos nos tempos de juventude precisa ser redirecionada para acolher os sinais da nossa alma, as demandas essenciais do Self. Segundo a abordagem Junguiana, o nosso processo de individuação e nosso caráter poderão, enfim, na terceira idade, demonstrar a sua maior força. Neste momento a nossa espontaneidade-criatividade nos diferentes papéis passa por uma grande transformação: a chegada de uma nova relação com o corpo, com os papéis afetivos e sociais (familiares, profissionais) e com o enfrentamento da finitude. Exige de nós uma relação mais direcionada para a espiritualidade e para a vivência do aqui e agora, no tempo presente.

Sobreviverá, na visão Moreniana, aquele que for capaz de enfrentar as situações desafiantes da velhice com criatividade, coragem e alegria.

Dramatização

Quais características suas vêm ao pensar nesses dois mestres que você une ao fazer o Psicodrama Junguiano?
A criatividade e a expansividade afetiva. Jung e Moreno deram grande importância ao desenvolvimento da criatividade e da arte como recursos terapêuticos importantes. Eles eram livres ao lidar com a relação entre terapeuta e cliente de modo mais espontâneo e com afetividade. Isto tem muito a ver com o meu modo de ser, com meus valores e crenças, me aproximando destes dois mestres e me identificando com o Psicodrama Junguiano.

“Morrer para a juventude e não sofrer a dor de se libertar e dirigir para a segunda metade da vida” (Jung). Faça um breve diálogo entre a sua juventude e os anos maduros em que você se encontra.
Na minha juventude me preocupei muito em encontrar um lugar no mundo, um papel profissional útil, um amor, uma família e uma independência material. Queria me tornar menos introvertida, por isso procurei o Psicodrama. Eram buscas do Ego. Com os 40 anos, aproximadamente, fui percebendo que já tinha alcançado posições razoáveis neste sentido, mas isto não era tudo. Minha alma pedia mais, algo que não estava fora, mas dentro de mim. Obviamente entrei na primeira metanoia e muitas mudanças de direção aconteceram. Foi aí que, após 15 anos como psicodramatista, comecei a estudar Jung. A atenção a meus próprios sonhos me ajudou muito, assim como uma compreensão mais ampla e arquetípica da minha própria arte (pintava desde os 14 anos).

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Fui me transformando numa psicodramatista junguiana nos meus anos maduros, de 1999 em diante, num período em que no meio profissional brasileiro ninguém falava desta abordagem. Foi um caminho inicialmente solitário e muito criticado. Tinha muita convicção de que era a minha jornada a seguir, e com isto vieram os livros, lançando o primeiro em 2002. Na minha vida foi ficando mais claro que ser pioneira no nosso meio não implicava em nenhuma aprovação ou facilidade, era preciso paciência. Continuei ministrando minhas aulas e lentamente crescia o número de alunos interessados neste caminho. Passados mais 20 anos começaram a brotar os frutos, com ex-alunos e colegas levando o Psicodrama Junguiano adiante no Brasil. Para muito mais longe do que pude chegar, o que muito me alegra.

Dê voz a essa menina de 14 anos. O que ela diria para a Cybele hoje?
A menina diria: – Você não se tornou uma artista plástica profissional, embora muitos a considerem, mas você faz da vida uma arte.

Segundo Jung, na meia-idade ocorre um chamado para a individuação: se tornar o próprio e verdadeiro Self – o descobrir mais a respeito de si mesmo. Como se vê nessa jornada?
Meu processo de individuação me fez operar grandes mudanças na vida pessoal e profissional. Na minha segunda metanoia, por volta dos 55 anos, me trouxe de volta para a minha própria arte, voltei a pintar bastante e a estudar arte. Daí por diante, aos 63 vieram problemas de saúde mais delicados que me fizeram ter novas mudanças: andar mais devagar, cuidar mais de mim e olhar para a minha espiritualidade. Comecei a escrever uma autobiografia com a intenção de me conhecer ainda mais, questionando as contradições e os sentidos de toda minha trajetória.

Em seu livro Descobrindo Enigmas de Heróis e Contos de Fadas, você cita que, para Jung: “Não se pode ser ‘puro’ sem reconhecer a própria impureza por experiência própria, e não se pode encontrar a ‘iluminação’ inocente, ou seja, chegar ao arquétipo do Bobo sábio ao final do processo de envelhecimento sem descobrir o mal (a sombra) dentro de nós, sem termos passado por estágios menos iluminados, atravessado a noite escura da alma.” Tem algum símbolo arquetípico que poderia representar você fazendo as pazes com a sua sombra?
Sim, fazer as pazes com minhas sombras eu fiz muito através das obras de arte que produzi, bastante simbólicas. Mas não apenas por meio delas. Nos muitos anos de psicoterapia também o reconhecimento de várias sombras se fez importante. Escrevi um capítulo sobre como as mulheres e deusas na floresta, que se apresentam na minha arte com muita frequência, falam de temas arquetípicos e pessoais, no livro A jornada do feminino selvagem: por meio de deusas, mitos, sonhos e artes (2020). 

Reconhecer a própria impureza é um passo difícil, mas necessário, em todo processo psicoterápico que se pretenda sair da superficialidade. O Bobo e o Sábio são forças arquetípicas que podem surgir até bem cedo em nossas vidas, mas esperamos que estejamos na terceira idade mais avançados com eles, em seus aspectos mais positivos. O Bobo implica numa alegria espontânea com o fluir da existência, o viver aqui e agora, algo bem Moreniano. O Sábio, por sua vez, implica numa busca de significados e sentidos essenciais, aprender a duvidar e transcender.  Um complementa bem o outro.

“Os anos de inverno devem ser tão preenchidos de crescimento como a primavera, o verão e outono” (Jung). Como faz para que o seu inverno seja tão preenchido como a primeira metade da vida?
Tento trazer para minha vida o que há de mais essencial, o que aprendi a fazer melhor, sem a ansiedade e a pressa dos primeiros anos: trabalhar ainda e até quando tiver saúde, com alegria e bom humor; fazer arte sem a intenção de vender ou me tornar uma artista profissional, pelo simples prazer que ela me proporciona; escrever sobre minhas experiências que podem contribuir em algo para com os mais jovens; ser amorosa e justa com os que me cercam ou trabalham comigo, em cada dia buscando maior autenticidade, e não corresponder às expectativas alheias; não me preocupar com o Ter, mas com o Ser, aprimorando sempre mais o meu processo de individuação… que em última instância, me coloca mais a serviço da coletividade, e cada dia mais distante de interesses materiais.

Qual o caminho entende ser o de se tornar a Velha Sábia (arquétipo)?
Se tornar uma personificação do arquétipo da Velha Sábia começa a acontecer na nossa vida bem antes de chegarmos à velhice. Têm jovens que já ativam ou constelam este arquétipo desde muito cedo. Precisamos estar atentos a ele, àquela voz interior que nos traz intuições essenciais sobre os sentidos de cada passo que damos, ou sobre as direções que deveremos tomar. Acho que desde adolescente estive me aproximando dele, aprendi a escutá-lo melhor. Hoje não me considero ainda uma personificação deste arquétipo, pois preciso de mais tempo para aprender a sê-lo. Me considero um pouco mais experiente e com menos ilusões, mas ainda com sonhos. É importante termos utopias a nos guiar, embora saibamos que elas existam para nos estimularem a não desistir das buscas essenciais, mesmo as parcialmente alcançáveis. Ainda me sinto uma aprendiz.

Em seu livro Aproximações entre Jung e Moreno você cita que ambos criticaram o homem massificado. Na questão do envelhecer qual arquétipo e conserva cultural na sua visão favorecem essa massificação na nossa sociedade?
O arquétipo do Sênex tem seu lado positivo e seu lado negativo, como todo arquétipo o tem. Então, poderemos desenvolver a sabedoria, mas poderemos também desenvolver a rigidez. Devemos envelhecer buscando limitar as tendências negativas, não cair na armadilha das conservas culturais, no “eu sei mais”, na falta de vitalidade e na descrença. Para isto não poderemos perder o desenvolvimento simultâneo do arquétipo do Puer, a criança divina interior, que pode nos deixar mais alegres, criativos e cheios de sonhos e ânimo. Dialogar com o Puer e o Sênex que nos habita, e integrar estas duas forças arquetípicas dentro de nós, em seus aspectos positivos, seria o segredo de uma velhice mais saudável.

Você é considerada uma artista plástica por fazer belíssimos quadros e esculturas. Podemos ver essas obras nos espaços de sua escola e em seus livros, sendo o principal deles o Psicodrama e Jogos Imagéticos. Como você funciona nessa criação com a imaginação ativa que é descrita por Jung e com a espontaneidade-criatividade da teoria de Moreno?
Creio que desde adolescente, antes mesmo de estudar Psicologia, eu já me entregava intuitivamente à imaginação ativa. Sem conhecer o valor dela como técnica da abordagem Junguiana. A arte sempre foi o meu caminho para dialogar introspectivamente com meu inconsciente. A primeira psicoterapia que fiz como cliente foi aos meus 21 anos, e meu terapeuta me pediu para levar uma obra de arte a cada sessão, isso porque ele descobriu que os símbolos do meu inconsciente estavam ali. Era uma arte intimista, intuitiva, que não se guiava por nenhuma escola ou corrente artística. Este primeiro terapeuta me ensinou a considerar o valor psíquico da minha arte. Muitos anos depois, li o livro da Nise da Silveira, Imagens do inconsciente (1981), e assim pude ir compreendendo melhor o que se passava comigo. No entanto, só me senti preparada para estudar a teoria Junguiana em 1999, aos meus 39 anos. Precisava amadurecer antes e o Psicodrama muito contribuiu neste sentido. Já me sentia muito criativa enquanto psicodramatista, mas precisava dar novos saltos.

O autor Roberto Crema, no livro Espírito na Saúde, define que é “no outono da existência que precisamos transmutar os valores do Ter, do poder, do parecer, para os valores do Ser”. Qual cena se constrói ao refletir sobre essa transformação?
Sim, concordo com ele, foi o que Jung sempre defendeu. A própria vida de Jung é este exemplo de “um inconsciente que se realizou”, pois ele também pintava, esculpia e dialogava com as imagens espontâneas dos seus sonhos, em busca da compreensão das direções apontadas pelo seu Self. Toda a sabedoria reside neste inconsciente (pessoal e coletivo), assim como toda a cura. O ser humano ainda engatinha para conseguir explorar e avançar nesta direção. O diálogo entre consciente e inconsciente (o eixo ego-Self) e o desenvolvimento da função transcendente seriam as chaves deste processo, que tão bem Jung nos apontou. Mas é uma busca eterna.

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O que ressoou em você?
Gostei de rever minha história através das questões aqui levantadas. Os mestres que se apresentam na nossa vida nos apontam sinais, mas os verdadeiros sentidos estão dentro de nós, na costura ou no bordado que conseguimos traçar a partir das nossas escolhas. Toda vida é uma obra de arte que cabe a cada um de nós ir construindo. Atentos,  a maior parte do tempo, mas haverá momentos em que estaremos apenas seguindo um fluxo ou uma corrente indefinida. Lá adiante poderemos olhar para trás e compreender parte do processo. E o resto? Uma beleza inalcançável. O resto é mistério.

Fotos: arquivo pessoal


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Mulher branca, de óculos
Silmara Simmelink

Psicodramatista formada pela Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama. Psicóloga graduada pela Universidade São Judas Tadeu. Especialista em Gerontologia pelo Albert Einstein e fez curso de extensão da PUC-SP de Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento. Pós graduada em psicanálise pela SBPI e Sociopsicologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de SP. Atua em clínica com abordagem psicodramática e desenvolve oficinas terapêuticas com grupos de idosos. É consultora em Desenvolvimento Humano e especialista em psicologia organizacional titulada pelo CRP/SP. E-mail: [email protected]

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Psicodramatista formada pela Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama. Psicóloga graduada pela Universidade São Judas Tadeu. Especialista em Gerontologia pelo Albert Einstein e fez curso de extensão da PUC-SP de Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento. Pós graduada em psicanálise pela SBPI e Sociopsicologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de SP. Atua em clínica com abordagem psicodramática e desenvolve oficinas terapêuticas com grupos de idosos. É consultora em Desenvolvimento Humano e especialista em psicologia organizacional titulada pelo CRP/SP. E-mail: [email protected]

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