Renato Noguera – O Griot e sua filosofia

Renato Noguera – O Griot e sua filosofia

Noguera fala que quer ter uma velhice que não seja idealizada, que consiga desfrutar a carne que perde o vigor.


“Envelhecer bem é ter a capacidade de reconhecer os limites daquilo que desejamos e do que podemos, reorganizar os sentidos das coisas para não ficar em descompasso consigo.”
Renato Noguera

Renato Noguera, doutor em Filosofia, é um dos mais importantes estudiosos da filosofia Yorubá no Brasil e possui vivência familiar Griot. É professor universitário e autor de diversos livros, dentre eles: “Ensino de Filosofia e a Lei 10639”, “Por que amamos: o que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor”, “O que é o luto: como os mitos e as filosofias entendem a morte e a dor da perda”.

Nesta entrevista, nas palavras de Noguera, o amor se entrelaça com a história, revelando um repertório ancestral que ecoa através dos tempos.

Sobre a cultura africana, aprendi recentemente que eles têm o hábito de louvar as pessoas como um ato de elogio. Consequentemente, ao ser elogiada, eles citam que a pessoa “cresce”, uma vez que, ao receber esse estímulo, ela endireita sua coluna, elevando a estatura em três centímetros.

Aqui, deixo meu louvor a este humano, que no momento da entrevista me levou a entrar em contato com os quatro elementos da natureza: o mar calmo em sua fala; o fogo em seu desejo de conhecimento e de transformação; o ar em ventos de novas perspectivas; e a fecunda terra no compartilhar do seu processo de envelhecimento nos convidando a refletir sobre o que é viver e sobre a humanidade que nos habita.

Silmara: Na canção “20 Anos Blues” (Sueli Costa / Vitor Martins), temos o trecho:
“Ontem de manhã quando acordei/ Olhei a vida e me espantei/ Eu tenho mais de vinte anos/ E eu tenho mais de mil perguntas sem respostas”. Correlacionando à Filosofia, dúvidas e o não saber nos acompanham por toda vida. Saber lidar com a própria ignorância é uma virtude a ser alcançada?
Renato Noguera: Tem um enunciado que atribuímos a Sócrates: “Tudo que sei, é que nada sei”. Tem relação direta com uma consciência dos nossos limites, com o limite daquilo que sabemos, o limite do conhecimento. É importante reconhecer as nossas fronteiras e os nossos contornos, ou seja, saber o que nós podemos e o que não podemos. Isso melhora as nossas expectativas. É belíssimo esse trecho da canção. É a gente não ter essa consciência de que o tempo é ininterrupto. Algumas coisas que nós fazíamos, em algum momento, não seremos capazes de fazer da mesma maneira, e está tudo bem. Eu vejo que essa consciência tem a ver com aquilo que eu tenho nomeado em meus estudos como “Complexo do Vampiro”.

O que é esse complexo?
É o querer se manter como éramos, o tempo todo, ad aeternum, como se o tempo não passasse, como se fossemos ver no espelho a mesma imagem que tínhamos há vinte anos. E nessa ode insana, a juventude eterna. Esse complexo do vampiro talvez seja o grande problema, um fenômeno social contemporâneo que é o de recusar a realidade do tempo. Então, reconhecer o limite é muito importante.

Estão presentes em seu discurso os seus avós – Sr. Wilson, Sra. Maria de Lourdes e a Sra. Elvira – que lhe contavam histórias. O que esses velhos deixaram registrado no Renato criança?
São tantos registros! Sem dúvidas, na minha trajetória, tem relação com aquilo que eles me ensinaram, os passaportes que eles me apresentaram. Tem algumas cenas mais antigas que eu me lembro, uma delas é o convívio com os meus avós. O meu avô Wilson me contava muitas histórias que tinha aprendido com o avô dele, uma dessas ouvi novamente quando fiz uma viagem ao Senegal, contada pelo Griot Boubacar Ndiaye. Aquele momento me reconectou com a minha história e vivência familiar Griot, isso é uma coisa importante para mim.

Das histórias das minhas avós, elas me ensinaram muitas coisas, dentre elas:  espiritualidade, relação com o sagrado, com a ancestralidade, com o abençoar o nosso dia, o acordar pedindo benção e o pedir benção para as pessoas velhas. São histórias que me constituem e que me dão um senso de responsabilidade diante do cuidado que temos que ter com as pessoas mais jovens. Inclusive, histórias que me amadureceram. Pude ter contato com aquilo que era mais bonito e mais humano, com as falhas, dificuldades, flexibilidade e a inflexibilidade.

São muitas memórias, uma parte que eu me tornei tem a ver com o que acompanhei. Até desentendimentos em momento de tensão do casal, onde estavam presentes discussão e amor, me trouxeram muitas elaborações. Difícil pontuar uma única coisa na memória que construiu o Renatinho, que se transformou em Renato Noguera Jr. e, agora, Noguera na meia idade. Se fosse para resumir, seria uma responsabilidade com a palavra, como que a palavra deve se conectar, como ela deve ser resultado daquilo que pensamos e sentimos. Acho que isso foi um amadurecimento ao longo da vida com as histórias que eles me contaram.

Em suas aulas você cita a carta da felicidade do filósofo Epicuro, na qual ele diz que a aquisição da amizade é fundamental para uma vida feliz. Isso me lembrou a pesquisa da cientista Susan Pinker, que estudou as zonas azuis, locais onde verificou que um dos fatores que favorecem a longevidade são as relações “olho no olho”. Você definiu a amizade como: “Um afeto de composição onde a partir de uma relação com o outro a gente encontra duas tensões: uma de acolhimento e uma que nos propicia ter um encontro mais generoso com as nossas próprias forças”. Pensando nessas duas citações, como a amizade auxilia no seu envelhecer?
Nasci em 1972. Tecnicamente estou enquadrado na meia idade e cada vez mais gosto de reencontrar pessoas com quem eu desfrutei amizades longas, profundas, íntimas durante minha infância e juventude. Neste ano, estive em um encontro da Associação da Pós-graduação em Filosofia, evento em que reencontrei colegas e amigos que fizeram graduação, mestrado ou doutorado comigo. Esse reencontro foi um momento de falarmos do passado, mas também do presente e futuro. São as amizades antigas que nutrem uma espécie de sonhos passados nos ajudando a reconstruir os nossos passos. Assim enxergar, porque o outro nos enxerga com mais nitidez do que nós mesmos. É muito mais fácil para o outro ter o olhar que vem de fora, enxergando o gesto que a gente não consegue ponderar. Muito bom estar nesses encontros.

A amizade me auxilia no envelhecimento porque é como se fosse um território para eu me nutrir um pouco mais sobre mim mesmo, sobre os sonhos que eu tive, sobre não esquecer as apostas que eu tinha feito. Ter dignidade, a humanidade de poder desistir das coisas que não fazem mais sentido, mas que fizeram sentido em algum momento, poder dizer que mudamos de caminho e que mudamos de ideia. Como é bom também poder dizer: – Eu continuo acreditando e apoiando! Não renuncio a elas!

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Essas pessoas do passado podem servir como certo espelho para alguma coisa que a gente esquece que tinha. Como um certo brilho que, às vezes, parece que perdemos ou que ficou ofuscado por alguma coisa.

Você menciona a importância da infância na dimensão do conceito filosófico, existencial e espiritual, “Um estado de infância capaz de olhar a realidade sempre como a primeira vez”. Você consegue se manter com esse olhar?
Eu busco me manter com esse olhar, mas não o tempo todo e nem com a mesma intensidade. Eu acredito que é bom ter algum ritual para não perder esse olhar de vista. É nesse sentido que eu acredito que vale muito a pena ritualizar o nosso cotidiano. Porque esse estado de infância é uma curiosidade pela vida. Os rituais auxiliam a abandonar a sensação de viver no piloto automático. É como se eles produzissem uma suspensão no tempo. Não estou só me referindo a rituais religiosos, mas rituais cotidianos que todos podemos ter, como: uma forma de tomar café, uma forma de agradecer o dia, o tomar banho, uma maneira de anotar o que sentiu ao final do dia e escutar o coração com um exercício que eu sempre recomendo, que é o de anotar os afetos mais fortes vividos no dia. Como se fosse uma espécie de dicionário, um emocionário. Esses rituais me ajudam a me aproximar mais desse estado de infância.

Em seu livro Por que amamos: o que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor, temos a psicologia dagara que traz os elementos naturais como símbolos da alma. Ela favoreceu o seu autoconhecimento? Como?
Sim, favorece o autoconhecimento que são os rituais. Justamente pela relevância dos rituais como uma forma de organização simbólica, existencial e espiritual.

Na filosofia africana Yorubá a articulação dos quatro elementos (água, fogo, terra e ar) favorecem um destino melhor. Fazendo um paralelo com o curso da vida, como ter uma velhice de bem-estar?
Uma velhice de bem-estar tem a ver com equilíbrio. Na minha formação em Filosofia eu tenho procurado as fontes da Yorubá, que são muito importantes para as minhas reflexões. Gosto de estabelecer correlações entre filosofias, psicologias, neurociência e mitologias. Tem um conceito da química que é o do equilíbrio dinâmico, quando algumas substâncias vão se reorganizando, de certa maneira parece que elas vão se transformando mutuamente uma nas outras e elas mantêm um sistema em equilíbrio.

Na filosofia Yorubá, o conceito de Axé tem justamente a ver com as dimensões da vida. Ou seja, uma vida que não explode e nem implode. Implodir é quando tem muito peso de fora, tem muita tensão externa, fazendo com que o sistema venha a colapsar para dentro. Ocorrendo isso, há tendência à depressão, violência contra si, mau uso de suas virtudes. Ou ainda para fora, a agressão ao outro, violência simbólica, material, controlar, oprimir, estabelecer uma relação de abuso com outras pessoas.

Envelhecer bem é ter a capacidade de reconhecer os limites daquilo que desejamos e do que podemos; reorganizar os sentidos das coisas para não ficar em descompasso consigo. Por exemplo, correr 10km demorava certo tempo e agora um tempo maior. Ok! Pode ser que daqui a pouco poderei correr só 5km, e tudo bem. Não poderá fazer uma festa gastronômica porque o trato digestivo está um pouco mais moroso, tudo bem. É isso que nos ensina, equilíbrio!

A cultura africana tem uma ideia de futuro diferente da nossa, usando o termo “o amanhã”. Você diz que esse amanhã impõe limites que ajudam a aumentar a potência para lidarmos com a vida. O processo de envelhecimento ocorre desde a concepção do ser. Temos a ilusão de que o envelhecer só pertence ao futuro, como algo distante. Como enxerga a diferença de distância entre o nosso futuro e o amanhã africano para o envelhecer?
Alguns povos não têm a palavra futuro. A palavra amanhã é mais frequente. Isso acontece, por exemplo, com os povos citados pelo filósofo Daniel Munduruku e também em alguns idiomas africanos tradicionais. A ideia de futuro é como se fossemos ilimitados e imortais, vivendo não reconhecendo a mortalidade. A noção de amanhã me lembra o que aconteceu com a família de Toumani Kouyaté do documentário Entre Nós, um Segredo – uma obra sobre um Kouyatéque vai contar sua última história para os mais jovens, antes de partir, e não deixa isso para o futuro. Ele quer se despedir, em vida, das pessoas, sendo essa a grande diferença.  

Qual filósofo mais se assemelha a você em pensamento sobre a velhice?
É difícil ter um pódio. Conforme as circunstâncias, uso os repertórios de vários filósofos para resolução de como quero envelhecer. Um repertório de uma filósofa que funciona como um martelo, outrora o de um filósofo que funcionará como chave de fenda. Não dá pra usar uma ferramenta ou outra o tempo inteiro. Quero ter uma velhice que não seja idealizada, que consiga desfrutar a carne que perde o vigor, a sensação de um corpo que organicamente perde as forças, aquilo que Antônio Candido comenta em uma carta: que ele, quando estava parado, sentia que a vida era a mesma, mas quando ele se movimentava, o peso da velhice era muito maior do que ele tinha pensado.

Quero desfrutar da velhice tanto quanto senti a infância, a adolescência e a meia idade. Não penso em um ideal porque sei que esse pensar nunca será alcançado. Quero abandonar as expectativas, para que não haja frustrações, dizer: não me idealizem, por favor! Me encontrem como esse humano, como outro qualquer. Alguém que tem peculiaridades: o interesse em aprender com a ancestralidade; alguém que tem uma vivência Griot; e que procura a filosofia todos os dias, conversando com as crianças, com os jovens, com os velhos, enfim, com as pessoas, para ensinar e aprender.

A vida é rara, não tem nada mais intenso do que viver. Inclusive a morte e o envelhecimento fazem parte da vida!

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Mulher branca, de óculos
Silmara Simmelink

Psicodramatista formada pela Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama. Psicóloga graduada pela Universidade São Judas Tadeu. Especialista em Gerontologia pelo Albert Einstein e fez curso de extensão da PUC-SP de Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento. Pós graduada em psicanálise pela SBPI e Sociopsicologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de SP. Atua em clínica com abordagem psicodramática e desenvolve oficinas terapêuticas com grupos de idosos. É consultora em Desenvolvimento Humano e especialista em psicologia organizacional titulada pelo CRP/SP. E-mail: [email protected]

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Psicodramatista formada pela Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama. Psicóloga graduada pela Universidade São Judas Tadeu. Especialista em Gerontologia pelo Albert Einstein e fez curso de extensão da PUC-SP de Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento. Pós graduada em psicanálise pela SBPI e Sociopsicologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de SP. Atua em clínica com abordagem psicodramática e desenvolve oficinas terapêuticas com grupos de idosos. É consultora em Desenvolvimento Humano e especialista em psicologia organizacional titulada pelo CRP/SP. E-mail: [email protected]

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