As reflexões que farei a seguir se baseiam no documentário “Sal da Terra” (2015), produzido pelo cineasta Wim Wenders e por Juliano Ribeiro Salgado em comemoração aos quarenta anos de carreira do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado. Minha proposta é estabelecer um paralelo entre a experiência emocional vivida por Salgado, e que nós vamos conhecendo por meio do que ele escolhe fotografar, e o que acontece em um processo de análise.
Ana Laura Moraes Martinez(*)
Em ambos os casos, penso que o que está em jogo não é a capacidade de ver, o que fazemos com o órgão do sentido (olho), mas a condição interna de se enxergar ou não aquilo que vemos.
Enxergar o outro (nosso semelhante-diferente), para a psicanálise, é um processo muito mais complexo e sofisticado do ponto de vista psíquico. Implica em termos, de fato, uma experiência emocional com o outro e para isso é necessário que tenhamos condição interna de conter as emoções provocadas pelo contato. Enxergar requer capacidade de tolerância e de continência com a miríade de emoções que o encontro humano provoca. Requer ainda que tenhamos adquirido, em nosso desenvolvimento emocional, condição de apreender que o outro não é uma extensão de nós mesmos.
Mas, voltando a Sebastião Salgado, podemos tentar nos indagar: o que é que ele buscava apreender ou enxergar com suas fotos?
No início do documentário, o narrador diz: “O fotógrafo é aquele que desenha com sua luz. Ele escreve e reescreve o mundo com luzes e sombras”. Diante disso, podemos considerar que Sebastião buscava por meio de suas lentes melhor compreender o seu mundo externo (e também o seu mundo interno) com suas luzes e sombras. Ao fotografar pessoas Sebastião estava em busca de apreender a sua condição humana por meio da captura da imagem de seu igual / diferente.
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Neste belo processo de captura da imagem viva da pessoa humana, criatura e criador se transformam pelo olhar de mútuo interesse, algo parecido com o que ocorre com o olhar amoroso e interessado da mãe pelo seu bebê. Em ambas as duplas, o olhar ou a lente transformadora é aquela que demonstra interesse real pela pessoa humana que está ali, sendo cuidada (no caso do bebê) ou sendo fotografada (no caso de Sebastião Salgado).
Salgado explica esta relação de troca entre ele e a pessoa fotografada de um modo muito bonito. Ele diz que para que uma foto aconteça, não basta o fotógrafo querer. A pessoa fotografada tem que entregar algo de si. O que ele quer dizer é que deve haver uma troca, um ato de generosidade mútua para que um encontro frutífero aconteça.
Isso não é semelhante ao que se passa (ou pelo menos deveria se passar) em uma sala de análise? Para que o processo aconteça (para que a foto tenha um potencial transformador) ambos devem entregar seus corações, um ao outro. Neste processo ambos se modificam. Ambos aprendem algo sobre suas condições humanas. Obviamente na sala de análise isso se passa de uma forma assimétrica, o que significa que se espera que o analista tenha avançado mais na compreensão de sua condição humana do que o analisando. Significa também que o analista estará ali na função de mostrar ao analisando aquilo que ele ainda não consegue enxergar de si mesmo. Mas, para que isso ocorra, pressupõe-se que alguém também tenha feito isso pelo analista. Esta cadeia transformadora na qual eu ofereço ao meu analisando o auxílio que me foi oferecido por alguém, julgo ser uma das coisas mais bonitas do método inventado por Freud.
Mas, agora passemos à segunda questão que eu gostaria de comentar, que é o que Sebastião escolhia mirar com suas lentes. Ao todo, o fotógrafo realizou seis trabalhos, desde que iniciou em 1997. Em cinco deles Sebastião parecia ser motivado por um desejo de denunciar a que ponto de degradação e miséria nós humanos podemos chegar como espécie. Nestes trabalhos, que ele chamava de jornalísticos, denunciou de forma contundente cenas impactantes de miséria extrema, de mortes violentas provocadas por guerras, a migração forçada de populações inteiras por conflitos armados e a degradação humana provocada pelo excesso de ganância.
Entretanto, ao final de seu último trabalho intitulado “O fim da Pólio” (2001) em que ele chama a atenção do mundo para a importância das campanhas de vacinação contra a pólio na Somália, no Sudão, na República Democrática do Congo e no Paquistão, ele diz: “Estou doente. Não é uma doença física que me acometeu. É minha alma que adoeceu. Não vejo mais sentido naquilo que eu faço”.
Depois de cair neste terrível estado melancólico, Sebastião ficou onze anos sem produzir nada em termos fotográficos. Recolheu-se na propriedade dos pais, em Minas Gerais, num intenso trabalho de reflorestamento da mata nativa que havia sido devastada para a criação de gado.
Então, nos perguntamos: de que é que Sebastião adoeceu?
Ele adoeceu porque submeteu seu aparelho psíquico a um excesso de cenas desumanizadoras, terrificantes e de uma violência indizível, situações que o fizeram perder a esperança. Por isso ele dizia que o seu trabalho não tinha mais sentido. Podemos tentar hipotetizar que Sebastião talvez fosse motivado inconscientemente por um desejo utópico de mudar a miserável conduta humana por meio de suas fotos. Fracassado em seu intento, adoeceu. Também é possível que tenha se contaminado por um excesso de situações emocionais indigestas, que não conseguiu metabolizar a tempo. Nós sabemos o quanto situações degradantes e desumanizadoras, geradas pelo excesso de inveja, de voracidade e de destrutividade, são danosas ao psiquismo humano. Deriva daí a ideia de que tanto o artista quanto o psicanalista, pelo contato intenso e íntimo que estabelecem com o mais belo e o mais degradante do humano, exercem ofícios muito exigentes em termos mentais.
Para citar um exemplo do que quero dizer, lembro o fotógrafo sul-africano Kevin Carter (1960-94) que se suicidou semanas depois de ganhar notoriedade com a imagem de uma criança famélica do Sudão, prestes a morrer, sendo rondada por um abutre. Obviamente não podemos precisar os fatores internos que o levaram ao suicídio, mas não posso deixar de pensar no quanto o contato com este excesso de Real talvez tenha sido insuportável para ele (e talvez o fosse para qualquer um de nós).
Chamo excesso de Real aquilo que os olhos humanos não podem ver. Nós não temos aparelho mental suficientemente desenvolvido para vermos a cena de uma criança faminta ser devorada, ainda viva, por um abutre também faminto. A morte, ainda mais nestas condições desumanas, não é algo com que possamos travar contato sem mediações simbólicas e imaginárias. Por mediações simbólicas me refiro, por exemplo, a todos os rituais fúnebres que mediam o nosso contato com o Real da morte, do corpo sendo comido pelos vermes ou pelo abutre, da carne fétida apodrecendo, etc. Decididamente não acho que tenha sido coincidência que Carter se suicidou depois de avistar esta cena.
Mas voltando, então, a Sebastião, do ponto de vista da psicanálise, ele adoece sua alma por ter travado contato com o Real. Mas, diferentemente de Carter – e nisso está a beleza de seu processo de revitalização interna – Sebastião retorna onze anos depois fazendo, em seu último trabalho, uma belíssima homenagem à vida. Batizou este trabalho de “Da minha terra a Terra”.
O que de diferente aconteceu entre ele e Carter? Por que Sebastião conseguiu voltar a criar enquanto Carter não viu outra saída exceto colocar um fim ao drama que é o viver humano?
Acho que Sebastião, depois de simbolicamente conseguir revitalizar sua mata nativa interna que havia sido destruída pela sua própria ambição de salvar o mundo por meio de suas imagens, realizou aquilo que em psicanálise chamou-se de posição depressiva.
Nesta posição, o sujeito toma consciência de seu real tamanho e capacidade no mundo, assim como redimensiona suas expectativas idealizadas com relação aos outros. No caso de Sebastião, talvez ele tenha conseguido perdoar a humanidade por ser tão miserável e por causa disso passou a não precisar mais denunciar as atrocidades que nós cometemos como espécie. Seu estado de espírito transformou-se e ele passou a reverenciar o milagre da vida, com as contradições e misérias que lhe são inerentes. Ao ver a transformações de suas fotos, diria que seu olhar foi ficando mais amoroso e capaz de sustentar não só a dor gerada pela percepção do nosso potencial destrutivo, mas também a presença da beleza e da bondade. Pois, em última instância, vida é contato com contradição permanente.
Assim, vemos neste belíssimo trabalho, Sebastião reverenciar o tempo – agora não mais um tempo absoluto em que tudo tem que ser resolvido de uma vez, mas um tempo em que a espera e a tolerância às limitações de si e do outro são respeitadas. É talvez a presença de um Sebastião mais sábio e mais tolerante com as misérias humanas. É talvez um Sebastião mais consciente de que a maldade humana continuará a existir, porque ela é inerente a nós, mas que também tem olhos para a bondade e para a beleza. Não quero dizer com isso que não tenhamos a preciosa função de denunciar o Mal. O que estou frisando é que, se há coisas para as quais não há perdão, também é importante que reconheçamos que o nosso poder de transformação é limitado.
Não posso deixar de pensar na semelhança entre o percurso vivido por Sebastião – e que acompanhamos por meio de seus trabalhos – e o percurso que se vive em uma análise. Depois de um percurso analítico, esperamos que o sujeito se torne mais tolerante consigo mesmo e com o seu semelhante-diferente, que ele lute para alterar o que pode mudar, mas que aceite aquilo que não é da sua alçada transformar, que ele saiba conversar melhor com sua parte exigente e infantil que deseja mudar as pessoas e o mundo e que possa aceitar aquilo que Guimarães disse com tanta propriedade: “que a colheita é comum, mas o capinar é sozinho”.
Não acho que tenha sido à toa que Sebastião só pôde viver este processo depressivo depois de encontrar a sua própria terra, as suas próprias origens. Não penso que nenhum tipo de transformação externa possa ser feita sem que antes passemos por uma profunda e dolorosa transformação interna e que isso passa necessariamente pelo encontro com aquilo que nós somos.
E, para terminar, não posso deixar de me lembrar da belíssima entrevista que Freud concedeu ao jornalista americano George Sylvester Viereck já no final de sua vida. Questionado sobre desejava a imortalidade, Freud respondeu: “Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, já vivi mais de setenta anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas – a companhia de minha mulher, meus filhos, o pôr do sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?”.
Para ler a entrevista na íntegra, clique Aqui
(*)Ana Laura Moraes Martinez – Psicóloga, mestre e doutora pela USP/SP. Atualmente, realiza estudos independentes buscando uma intersecção entre a psicanálise e o pensamento trágico grego, particularmente conforme apresentado pelo filósofo Friedrich Nietzsche. Seus interesses atuais centram-se, sobretudo, no campo da tragédia grega e na filosofia nietzschiana.