Um ponto comum na vivência dos cuidadores é o conflito entre a forte necessidade de ter um escape desse papel e a culpa envolvida em delegar a tarefa.
Letícia Távora Luque (*)
Durante um semestre tive a oportunidade de participar do Grupo de Cuidadores da URSI – Unidade de Referência à Saúde do Idoso Geraldo de Paula Souza (URSI GPS), referência como unidade de saúde pública no atendimento da terceira idade em São Paulo. A URSI objetiva o oferecimento de atenção integral para a pessoa idosa fragilizada, promovendo saúde e autocuidado. É um espaço multiprofissional, de cuidado ampliado(1). Os pacientes são encaminhados para a URSI a partir da UBS (Unidade Básica de Saúde) de referência, que realiza uma avaliação e verifica as demandas do paciente. Ao todo, são 11 URSIs distribuídas no município de São Paulo, sendo que a URSI Geraldo de Paula Souza atua como referência para 22 UBSs da Região Oeste da capital paulista.
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A finalidade é acolher e intervir junto aos cuidadores de pacientes. Os encontros foram quinzenais e aconteceram virtualmente, fatos que no começo me deixaram apreensiva, questionando se esse período e essa ferramenta seriam suficientes para propiciar uma boa experiência de aprendizado. A cada encontro essa aflição diminuía; saía impressionada com o poder terapêutico decorrente do compartilhamento de experiências.
Pude notar como o papel de cuidador é ao mesmo tempo particular e coletivo. Conforme as trocas ocorriam, os afetos de cada cuidadora dão “caras” diferentes às angústias comuns. Essa percepção foi muito útil para explicitar a relevância desse espaço promovido pela URSI: ao facilitar o espaço grupal, a solidariedade entre as cuidadoras se desenvolveu. O compartilhamento de experiências e o acolhimento das angústias manifestadas, abriu a sensação de pertencimento.
Depoimentos chamaram a atenção e caracterizaram o existir nesse papel, gerador de sofrimento ao viverem com alguém tão conhecido e, ao mesmo tempo, tão estranho. A vivência de ter a pessoa que você ama fisicamente com você, mas metafisicamente ela não existir mais, se prova ser fonte de muita frustração e confusão emocional para as cuidadoras. Lembranças de momentos irrecuperáveis lhes assombram, causando uma forte nostalgia e refúgio no passado, o que é muito solitário e melancólico; a perda de memória não se dá apenas no seu sentido literal. Pacientes com Alzheimer e cuidadoras, veem as memórias de momentos especiais sendo tiradas pela doença e sem possibilidade de se repetir.
Estela, cuidadora do marido, usa como estratégia para lidar de forma mais racional com sua condição de vida atual o conhecimento acerca da doença de Alzheimer. Saber os padrões de comportamento e os estágios da doença lhe ajudam a separar quando é a doença falando e quando é o marido falando, dessa forma, quando passa por algumas dificuldades, consegue se envolver menos emocionalmente e enfrentar as vivências de modo a não sucumbir psicologicamente. Porém, mesmo contando com esse recurso, assume que é muito difícil fazer essa separação sempre e que é um exercício diário, justamente pela ambiguidade que existe no cuidado “estranho-familiar” e pelos afetos e lembranças eliciados nessa confusão.
Um ponto comum na vivência do cuidador é o conflito entre a forte necessidade de ter um escape desse papel e a culpa envolvida em delegar a tarefa. Essa culpa se mostra especialmente mais forte no caso de cuidadoras mulheres, considerando a pressão social que existe sobre esse gênero, associando-as preferencialmente ao lugar do cuidado. O cuidado constante e contínuo frequentemente tira a individualidade da cuidadora, tendo que abrir mão de si para exercer essa tarefa que exige tanto esforço e tempo; constatamos ser imprescindível dividir a função com outras pessoas para garantir uma maior qualidade de vida às mesmas. O sentimento da obrigação, socialmente imposto, em relação à tarefa exercida, pode gerar uma naturalização do sofrimento envolvido na sobrecarga trazida, fazendo a cuidadora não dividir o cuidado com ninguém por culpa, prejudicando sua saúde mental e física.
Roberta, outra participante do grupo, é a única mulher de quatro filhos, após a mãe adoecer de Alzheimer, a tarefa de cuidar caiu quase que exclusivamente para si. Relata que depois das reuniões no grupo passou a se impor junto aos irmãos, exigindo que dividam afazeres, o que diminuiu os níveis de estresse e tornou a convivência com a mãe mais leve e tranquila, melhorando a relação entre elas e também a qualidade do cuidado.
O esforço das cuidadoras em aperfeiçoar a convivência com o doente, é evidente, mesmo sendo uma rotina cansativa e frustrante. Procuram os melhores médicos, tratamentos inovadores, adaptações da medicação, estudos sobre casos semelhantes, etc. Percebemos que o conhecimento é um ótimo suporte para lidar e tratar da melhor forma o doente, compreender o exercício do cuidado para cada doença específica, mas a compreensão não minimiza o luto com a perda que o processo de acompanhar um demenciado. Os saberes não substituem o triste experienciar a perda de alguém que se ama, em vida.
No caso de Estela, foi possível ver que se refugia em pesquisas e no conhecimento teórico para elaborar o que tem acontecido na sua vida como cuidadora do marido com Alzheimer. Identifica esse escudo para não sucumbir à tristeza, frustração e raiva em relação a todas as dificuldades geradas. É uma linha tênue entre a aceitação e a conformação, porém o melhor caminho parece ser associar o conhecimento com o acolhimento dos sentimentos envolvidos na tarefa do cuidado, garantindo a elaboração dos afetos e a melhor adaptação possível ao cuidado.
Esses foram apenas alguns dos importantes conflitos e angústias dos quais as cuidadoras retrataram durante as reuniões. Os profissionais responsáveis pelo grupo, puderam se aproximar das vivências e sentimentos tão necessários para alcançar as demandas e suportes específicos. Ficou claro que é imprescindível, em um tratamento a idosos, existir um olhar para quem cuida deles, considerando que essa tarefa pode gerar sofrimentos durante o longo e exaustivo processo de cuidado. Na mesma medida em que esses idosos estão enfrentando questões complicadas advindas da doença e adaptações à nova rotina, os cuidadores também possuem questões emocionais desencadeadas por essa vivência. Nos programas de assistência ao idoso, cuidado e cuidador devem ser acolhidos simultaneamente.
Nota
(1) A URSI conta com profissionais de diversos campos da saúde, especializados em geriatria e gerontologia: assistente social, educador físico, enfermeiro, técnico de enfermagem, farmacêutico, fisioterapia, fonoaudiólogo, médico geriatra, nutricionista, psicólogo e terapeuta ocupacional.
(*) Letícia Távora Luque – Depoimento do estágio de 5º ano – 1º Sem 2021, do Curso de Psicologia, Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde – FaCHS-PUC-SP, sob a supervisão da Profa. Dra. Ruth Gelehrter da Costa Lopes na disciplina Estágio Básico I, composta por atividade prática voltada para o exercício de competências e habilidades psicológicas que favoreçam a compreensão e posterior atuação em realidades específicas. O Estágio foi realizado na Unidade de Referência da Saúde do Idoso – URSI Paula Souza (SP) e os nomes das pessoas são fictícios para preservar seus participantes. Email: [email protected]
Imagem destaque de Gerd Altmann/Pixabay