Após a morte da minha vó, eu sinto que minha relação com o meu avô mudou e foi uma mudança positiva. É importante cultivar essa relação, para que ela possa crescer e florescer ainda mais.
Luiza Ramoska (*)
Podemos atear fogo à memória da casa desaprender um idioma palavra por palavra podemos esquecer uma cidade suas ruas pontes armarinhos armazéns guindastes teleféricos e se ela tiver um rio podemos esquecer o rio mesmo contra a correnteza mas não podemos proteger com o corpo um outro corpo do envelhecimento lançando-nos sobre a lembrança dele (MARQUES, 2015, p. 59).
Para Vó Nelinha e Vô Romis
Fiquei durante todo o período do curso de extensão Fragilidades na Velhice: gerontologia social e atendimento pensando sobre o que eu ia escrever como relato de trabalho final. Pensei em fazer uma pesquisa online com familiares idosos, ou fazer um estudo de caso sobre a idosa que estou atendendo, até que pensei em escrever sobre o meu avô. Durante o curso, vários exemplos que eu trazia para a aula eram sobre ele, e é interessante escrever sobre ele, porque estou escrevendo esse texto no lugar de neta, em que aprendeu muita coisa sobre a velhice no curso.
CONFIRA TAMBÉM:
Um bom ponto para começar a reflexão e relacionar com o conteúdo exposto nas aulas, foi a morte da minha avó. O casal de avós que estou me referindo são pais do meu pai. Minha avó faleceu em 2017 depois de uma complicação de uma cirurgia na coluna. Ela sempre foi muito ativa, participava de muitos projetos, era voluntária no GRAACC (instituição referência no tratamento e pesquisa do câncer infantojuvenil na América Latina), tinha uma rede muito grande de amigos. Ela tinha um problema de hérnia de disco na coluna, sentia muita dor e decidiu operar, mesmo sabendo os riscos da operação. Teve um infarto no pós operatório e acabou falecendo.
A família inteira sempre achou que meu avô morreria primeiro, por ter mais problemas de saúde. Chocou todo mundo, meu pai não conseguiu participar das cerimônias fúnebres, como velório e enterro porque estava fora do país. Ficou sabendo por ligação pela irmã dele, e sua reação foi chorar muito e, por coincidência (ou não) travou a coluna logo em seguida, apresentando um sintoma histérico, eu acredito. Achei muito significativo travar as costas dele, sendo que ele nunca teve nenhuma questão de saúde relacionada a essa região, talvez uma questão para ser analisada à luz da psicanálise, mas esse não é o foco desse texto.
Voltando ao enterro, só estava minha irmã e minhas duas tias em São Paulo, eu estava na viagem do Interpsico. Meus pais não queriam me contar sobre a morte da minha avó até eu voltar para São Paulo, no imaginário deles era mais importante eu aproveitar a viagem. Mas recebi uma mensagem da minha outra irmã de madrugada dando os pêsames no nosso grupo de whatsapp. Meu mundo caiu, eu tinha acabado de voltar da festa da noite e estava checando as últimas mensagens antes de dormir. Comecei a chorar igual um bebê, algumas amigas que estavam perto ouviram e foram conversar comigo. Perguntaram o que eu gostaria de fazer a respeito, achei uma atitude muito respeitosa, e decidi voltar para São Paulo. Peguei um táxi até a rodoviária e o primeiro ônibus que ia para São Paulo. Foram as piores 4 horas da minha vida, chorando muito e lembrando de muitas memórias que eu tive com ela e todos os momentos que a gente passou juntas.
Durante a viagem fiquei me questionando muito e até com um pouco de raiva dos meus pais por terem tomado a decisão de não me contarem sobre essa morte tão importante para mim. Principalmente depois das aulas sobre cuidados paliativos e diretivas antecipadas de morte, eu pude perceber que eles, de uma certa forma, estavam tentando me poupar da situação e cuidar de mim. Que é muito similar com as atitudes das famílias de idosos que estão próximos a sua morte, que escondem diagnósticos, notícias ruins, etc. Em um certo sentido eles querem proteger o idoso do sofrimento, porque acham que eles não vão bancar a dor de perder alguém próximo ou de descobrir uma doença terminal. Mas na verdade esses familiares não entendem o sofrimento que é causado nesse idoso, pela família, que não é deixado a par da situação/diagnóstico, porque muitas vezes apesar de não ser falado diretamente o idoso percebe o ambiente, os familiares e o corpo dele que alguma coisa não está certa.
O primeiro ano após a morte foi muito difícil, delicado e muitas vezes angustiante. Lembro em uma das aulas do curso que foi falado que o primeiro ano é o mais difícil. Todas as datas festivas tinham uma ausência. E é uma ausência que nunca vai ser suprida. Eu sempre tive uma relação muito mais próxima da minha avó do que com o meu avô, nos textos teóricos essa dinâmica é muito citada, a avó no papel do cuidado da família e o avô um pouco mais distante, ocupando outros papéis sociais. E com eles não foi diferente, todo domingo que a gente ia para a casa deles almoçar minha avó fazia a comida e a gente ajudava e sempre conversava, enquanto o meu avô ficava conversando com o meu pai sobre assuntos do mundo do trabalho.
Eu sempre achei muito chato o papo deles, mas com a minha avó era diferente, a gente ia brincar no jardim de caçar fadas e fazer perfumes caseiros com flores. Lembro muito bem do perfume que fazíamos, a gente pegava um pote de margarina, enchia de água e pegava várias flores do jardim, as mais coloridas e cheirosas. E assim era a minha relação com ela, sempre com muita alegria e conversas. Com o meu avô, antes dela morrer, eu nunca tive grandes conversas. E foi um processo muito bonito de transformar essa relação em algo mais próximo, e que a gente pudesse ter nossas conversas, sem lembrar da Nelinha (nome da minha vó).
Esse processo ainda está sendo construído, cada vez que encontro o meu avô tenho mais vontade de conversar com ele, saber como foi a vida/infância dele. Recentemente me despertou muito interesse de conhecer minhas origens, saber o que minha família já tinha feito, de onde eles eram etc. Descobri coisas incríveis, que me deu muito mais vontade de explorar esse outro lado da família que sempre foi mais distante de mim. Sempre soube que os pais dos meus avós paternos tinham vindo da Lituânia para o Brasil, fugindo da guerra. Mas descobri que os avós da minha avó foram súditos da família Romanov no império russo. Que o pai da minha avó foi caminhoneiro da empresa Texaco. E descobri porque o meu pai tinha pendurado uma placa gigante no meu quintal dessa empresa, que eu sempre achei horrorosa.
Ele contou que o avô dele (pai da minha avó) trabalhou por mais de 50 anos nessa empresa, e que meu pai tinha uma relação muito afetiva com esse avô (que ele nunca tinha me contado). E a partir dessa conversa, passei a achar a placa menos feia por entender esse lugar afetivo que tem para o meu pai. Além disso descobri que o sobrenome Ramoska é muito comum nos povos ciganos, que eu sempre tive um interesse e não sabia porque. E o mais legal de tudo isso é que eu descobri tudo isso só depois que minha avó morreu e com esse processo de ressignificação da minha relação com o meu avô.
Outra coisa que descobri conversando com o meu avô foi sobre a classe social que ele veio e a sua ascensão. Como já disse, meus avós paternos são filhos de Lituano, mas nasceram no Brasil. O meu avô conta que a família dele sempre foi muito humilde, quando os pais dele chegaram no Brasil foram morar na Mooca, moraram em cortiço por um tempo e foram se ajeitando, sempre trabalhando muito. Meu bisavô conseguiu um emprego na Light, e depois conseguiu um emprego para o meu avô na mesma empresa. Ele começou a trabalhar com 14 anos de entregador de documento, e foi sendo promovido. Se aposentou com 40 anos de trabalho. Mas que esse começo foi muito difícil, chegou a vender ingresso do parque Xingu (falou que era o playcenter da época) para sustentar o meu pai e minhas tias. Comprou sua casa e mora lá até hoje e não quer sair de lá de jeito nenhum.
A partir dessa história, fiquei refletindo o quanto meus avós cresceram e ascenderam na vida por serem filhos de imigrantes? Se eles fossem negros será que seria esse caminho? Nem sei se cabe essa reflexão aqui nesse texto, mas foi uma coisa que me deixou muito pensativa. Outro ponto muito legal de ter conhecido esse passado do meu avô, é que eu consigo entender um pouco melhor os comportamentos dele, e do meu pai. E consigo entender também esse jeito deles, bem fechados (afetivamente) e preocupados com as finanças, foi permeado por essa vivência familiar e consequentemente afeta minha relação com ambos.
Um tema muito importante abordado nas aulas foi a diferença entre dependência e incapacidade, que se encaixa muito bem na história do meu avô. Após a morte da minha vó, uma das minhas tias começou a tratar meu vô como um bebê, passou a ficar muito tempo com ele, fazer as atividades domésticas, cozinhar, ir aos médicos e sempre muito atenta com as coisas que ele fazia, com quem falava etc. Tem um ponto na história que é importante colocar, que minha avó sempre fez tudo para o meu avô, comida, atividades domésticas, acompanhar aos médicos.
A partir do momento que ela morreu, minha tia passou o ocupar esse lugar, mas meu avô ficava um pouco sufocado com essa atitude dela, sendo um pouco grosso às vezes e debochando dela para nós (quando ela não estava presente). Essa minha tia sempre teve uma postura de cobrar muito o restante da família, para visitar, almoçar junto e conversar pela internet (nos tempos de pandemia). Sempre fiquei muito mal com as cobranças, me martirizando por não ter tempo para visitar o meu avô (principalmente durante a faculdade), porém comecei a perceber que muitas vezes ele não estava com vontade de conversar ou receber visitas. Não atendendo as chamadas, conversando muito pouco por WhatsApp e sempre falando que ele não gosta muito do virtual, e que também gosta de passar um tempo sozinho.
Após a morte da minha vó, eu sinto que minha relação com o meu vô mudou e foi uma mudança positiva. Ainda estamos construindo e fortalecendo esse vínculo, mas fico muito contente em perceber que estamos nos aproximando e criando uma intimidade/dinâmica que a gente nunca teve. A partir do curso, aprendi a importância de respeitar o meu avô e suas decisões, independente da vontade da família. E também como é importante cultivar essa relação, para que ela possa crescer e florescer ainda mais.
Referências
MARQUES, A. O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
(*) Luiza Ramoska é psicóloga clínica e está cursando Especialização em Gerontologia pelo Hospital Israelita Albert Einstein. Faz atendimentos em Psicoterapia para adolescentes, adultos e idosos. E-mail: [email protected]
Foto de Andrea Piacquadio/Pexels
Atualizado às 10h48