Fabiana fala sobre legado familiar, o prazer de se atualizar e de descobrir o mundo através das relações para um bom envelhecer.
“Há de se respeitar o tempo que passa pelo corpo dessas pessoas, aquilo que ficou acumulado, o que foi digerido, o dispensado e o que se cristalizou como caminho.”
(Fabiana Cozza)
Cantora, pesquisadora, ativista e mulher preta, Fabiana Cozza representa um encontro singular entre o erudito e o popular. Sua trajetória, marcada por uma intensa busca por conhecimento e por uma profunda conexão com suas raízes, a tornou uma das vozes mais relevantes da música brasileira.
Em nossa conversa, Fabiana compartilha os aprendizados que a vida lhe proporcionou, desde a academia, onde se dedicou a estudos sobre música e cultura, até as rodas de samba, onde encontrou sua verdadeira casa. É nesse rico universo que a artista desenvolveu uma consciência social aguçada, utilizando sua voz para defender a igualdade e a justiça.
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Com coragem e força, Fabiana mergulha em um profundo processo de autoconhecimento, buscando compreender a si mesma, o outro e a sociedade. Através da escuta ativa e do diálogo intergeracional, ela constrói pontes entre diferentes gerações, promovendo a troca de experiências e fortalecendo os laços comunitários.
A música de Fabiana Cozza é um hino à ancestralidade, à luta e à esperança. Suas letras, carregadas de significado, convidam à reflexão e à ação.
Com a poesia, Fabiana Cozza…

Silmara: Fabiana, em si os ciclos da vida vão se sobrepondo e se relacionando. Pensando desde sua infância, qual cena lhe acompanha ainda hoje?
Fabiana: Uma cena em que eu estava sempre no quintal da casa da minha avó materna, que foi onde eu cresci rodeada de muita festa, as rodas de samba e os almoços dominicais junto com a minha família. Esta cena está sempre comigo!
Quais marcas foram deixadas por essa relação com a avó?
As características: amorosidade e generosidade. Minha avó era uma pessoa muito generosa e muito solidária. Trouxe também a marca da espiritualidade, porque ela era uma benzedeira.
A aprendizagem ao longo da vida é um dos pilares do envelhecimento ativo. Aos 19 anos você estava fazendo duas faculdades simultaneamente: Jornalismo e Música, e hoje faz doutorado. O que considera ter aprendido de mais importante no mundo acadêmico e fora dele?
O constante prazer de se atualizar e de descobrir o mundo não só através dos livros, mas através das relações. Isso eu aprendi na vida. Foi um legado familiar também, pois lá as pessoas, por algumas subtrações sociais, não tiveram estudos. Porém, desde sempre entenderam a importância dele. Esse estudo veio de muitas formas, como: o meu pai graduou em Ciências Contábeis e Economia, e a minha mãe em Magistério, ambos pela PUC. A geração anterior, dos meus avós, não teve essa oportunidade, mas nem por isso o estudo foi menosprezado na minha casa. Pelo contrário, o estudo sempre foi uma questão para além do conhecimento, para construir uma vida com honra, dignidade e com mais independência. Todo o valor do conhecimento para nós veio primeiro para garantir a constituição de um sujeito com bases morais e éticas robustas para poder conviver em sociedade. Segundo, porque era um lugar de se inserir na sociedade. Se a geração dos meus avós não teve a oportunidade de estudo porque trabalharam desde cedo por serem pobres, as gerações seguintes tiveram o estudo como o farol para vida.
Como você cita, o samba vai além da música, tem seus códigos sociais e regionais. Você o escolheu como principal estilo musical. Quais códigos que ele traz e que entende ser um bem precioso para o seu processo de envelhecimento?
A sociabilidade através do coletivo e a escuta, como um bem que eu não consigo mensurar a importância de ser escutado, o que também lhe garante o direito a fala. Porque sem escuta não existe fala, ou existe uma fala que é reprimida. O coletivo e a escuta geram para mim uma terceira coisa que é a ideia de saúde. A gente fala muito de saúde pensando em exercício físico, atividades em que possa movimentar o corpo, mas movimentar o coração e as emoções é fundamental para a saúde mental, física e espiritual. Conviver com boas pessoas que te acolhem e te escutam já é um caminho muito saudável e fundamental para um envelhecimento.
Em 2023, você fez 25 anos de carreira e nesse ano diz ainda olhar para os 25 anos antes de somar mais um ano. O que representa essa pausa no tempo?
No tempo em que a gente tem vivido, sentir as diferentes temporalidades é um grande desafio. Vivemos um tempo em que produzir é a garantia de ser útil e de estar vivo, sendo uma pessoa vista com toda essa questão da internet comunicacional. Nessa rede os likes, os números e algoritmos acabam ditando uma qualidade de relação. Quando entendo essa temporalidade, percebo que os 25 anos de carreira é muito tempo! Eu tenho de carreira o que dois músicos que trabalham comigo têm de idade, ou seja, quando esses meninos eram bebês, eu estava começando a cantar. Eu gosto de fazer esse comparativo e tenho me aberto a estar com pessoas mais novas do que eu. São pessoas que têm idade para serem meus filhos. Filhos que eu decidi não ter. Isso me dá a dimensão do quanto eu caminhei. Pensar que 25 anos é a idade do Matheus, que já é um excelente baterista, me faz falar: Poxa vida! Quanta coisa foi construída! Esse menino era um bebê quando eu nasci para a música. Opa! Esse é um ato falho, mas não é falho quando falei eu nasci sem querer, eu nasci na música há 25 anos. Acho que precisamos olhar a temporalidade como um exercício de alteridade. Olhar para carreiras que são bem-sucedidas, de pessoas que lutaram e continuam lutando para manter o seu ofício de pé. Então, hoje, quando vejo a Alaide Costa com 89 anos e com mais de 60 anos de carreira, eu penso: talvez eu consiga ter mais 20 ou 25 anos de carreira, quiçá 30 ou 35. Mas, é importante entender que eu venho de outro tempo. As grandes questões para mim são: O que de 25 anos eu me lembro? Do que me orgulho? Não tenho arrependimentos?
Eu não me arrepender e ter certezas das minhas decisões monta para mim um pequeno castelo de 25 anos. Não me refiro a algo elitizado, mas uma construção sólida, de pedra, com embasamento. Ou melhor, prefiro pensar num Baobá que tem 25 anos. Com 25 anos já se tem raiz que te estrutura e que te mantém de pé. Por isso, não penso nos 26 anos, pois há muitas coisas para serem avaliadas e pensadas. Entramos num looping de produção em que o prazer, a despeito da gente fazer o que gosta, mas o processo acaba sendo muito rápido e tem suas regras. Apesar de eu não ser uma artista do mercado, eu também tenho que segui-las, pois há uma certa pressão. Precisamos lançar discos e singles, senão não sobrevivemos. Isso faz com que eu precise acelerar as vezes um processo, que deveria ser sentido dentro de uma temporalidade. Digo: Não me apressem! Não me pergunte como vai ser meus 26 anos de carreira, uma vez que ele já está sendo, na verdade. Não acredito numa projeção. Ele será resultado do que estou plantando agora. Como isso vai se dar do ponto de vista artístico? Claro que vai depender da minha inspiração, mas já está acontecendo.
Uma pausa para sentir os 25 anos?
Não diria uma pausa. A vida nos apresenta uma série de situações que tem a ver com escolhas, o tempo todo, gerando reflexões. Eu sou uma pessoa que reflito muito antes de uma escolha. O meu companheiro falou que no início se irritava comigo porque eu perguntava a opinião dele e de mais dez pessoas; converso com pessoas diversas nas quais confio, para que então uma nova janela se abra, algo que eu não estava vendo.
Você escreveu um livro, Álbum Duplo, e diz não se esquecer quando o Marcelino Freire, ao ler o esboço, te auxiliava com a dica: “Aqui falta dobrar uma esquina!”. Olhando a sua trajetória de vida, reconhece alguma fase em que faltou “dobrar a esquina”?
Esse livro Álbum Duplo foi um pequeno portal para mim dentro desse campo da escrita, da literatura, porque sou uma iniciante. Faltaram dobrar algumas esquinas, sabe? Talvez eu não tenha tanta clareza para dizer para você quais são essas esquinas que ficaram para trás. Vejo que estou dobrando algumas esquinas agora. A minha escolha em trabalhar com novas pessoas e outros agentes que vão compor comigo. Isso também é dobrar uma esquina, sobretudo porque vim de um trabalho de muitos anos com algumas pessoas. Foi superbom, só tenho elogios a fazer, mas é um outro momento, pois sou, hoje, uma outra pessoa e percebo a necessidade de estar com pessoas que pensam diferente de mim. Essa é uma esquina importante que eu estou dobrando, envolve relações humanas que fizeram parte da minha vida e que construíram uma fase comigo. Agora eu estou dobrando uma outra esquina, de um quarteirão bem largo.
Você teve história com a Dona Ivone Lara, Leci Brandão, Leny Andrade, Jane Duboc e Maria Bethânia em encontros intergeracionais. Quando está chateada ou menos esperançosa, recorre a esses encontros. Como essas lembranças lhe revigoram?
Eu não sou uma pessoa que revisita com frequência o que fez, porém eu não esqueço de absolutamente nada. Tenho uma memória privilegiada, lembrando detalhes das coisas e, de fato, daquilo que me marcou profundamente. Essas pessoas que você citou, com quem eu colaborei e já colaboraram comigo, são ídolos que tenho na vida e que tive a oportunidade de ser ouvida por elas. Essas pessoas são constitutivas da minha formação enquanto artista. Fosse pela inspiração, pelos seus posicionamentos – porque cantar é o tempo todo dizer a que vem e o que quer, de qual lado você está e o que defende. Isso, por si só, já é uma fonte de inspiração. Tiveram histórias e nenhuma história é fácil. Uma história é uma história e tem a sua singularidade, e ponto. Ninguém tem o direito de julgar ou colocar valor moral na história de um sujeito. Essas mulheres são muito inspiradoras. As que são de um território que eu conheço um pouco melhor, que é o território do samba, se destacam de uma forma muito forte na minha mente; por serem pessoas pretas estão numa trajetória muito próxima da minha família por parte de pai. Minha avó paterna passou por muitas dificuldades para poder criar sozinha um filho preto, mesmo depois de ter perdido outro filho. Ainda conseguiu dar a condição desse menino estudar e ter uma profissão. Esse é um farol que me guia. Quando fico triste ou chateada olho para esse farol que não deixou de piscar; ele pode ter acontecido em outro momento, mas ele não se apagou.
Além do compositor Nei Lopes te escolher para interpretar as 40 canções dele, em 2012 ganhastes o prêmio de melhor música brasileira. Contudo, cita que isso não a faz estar nos holofotes, pois hoje sabe do seu papel de artista. Isso é fruto da maturidade?
Sim, é fruto de uma maturidade que até não posso chamar de precoce. Quando eu ganhei o 1º prêmio da melhor música brasileira estava com 37 anos. A bem da verdade, se eu tive algum deslumbramento com a profissão, com uma idealização do que poderia me tornar, foi muito no início. Eu rapidamente abandonei esse lugar de “Diva”, como as pessoas gostam de brincar e chamar a gente. Tomei muita consciência de uma pessoa que tem por ofício a arte, uma forma de estar no mundo, de se exercitar no mundo e de se relacionar. Como capricorniana, acho que já nasci velha, com responsabilidade. Talvez, por ser a filha mais velha isso se multiplique.
No seu novo álbum Urucungo, no qual gravou canções inéditas do Nei Lopes, temos a música Dia de Glória que foi inspirada na canção Dia de Graça. Projetando-se à fase da velhice, o que considera ter de construir ou desconstruir para chegar nessa fase com bons dias?
Do ponto de vista muito realístico e prático, voltar a ter uma vida mais ativa com relação às atividades físicas. Eu era uma atleta amadora. Comecei a nadar com quatro anos de idade e treinei até os 18, vindo a deixar. Hoje sou uma pessoa mais sedentária. Isso é uma coisa que quero reverter, recuperando a vontade de me movimentar. Hoje, os meus movimentos estão muito alinhados aos espetáculos. Outro ponto prático é o de ter uma boa alimentação, item fundamental, pois a máquina vai envelhecendo. Se antes não “precisava de óleo”, agora sim. Também essencial é ter bons amigos e boas ações. Envelhecer precisa estar atrelado a uma ideia de compartilhar conhecimento, ler bons livros e se desprender daquilo que não interessa. Os meus 40 anos foi a minha melhor fase. Não tive uma paixão tão grande com os 30, nem com os 20, mas quando cheguei aos 40 e a década foi caminhando, adorei! Comecei a ter clareza de mais coisas, pois parece que o quebra cabeça se encaixa melhor. O corpo só vai ficar de pé se a cabeça estiver boa e se o coração ajudar a cabeça a ficar bem. Boas canções, bons livros e boas viagens – tenho essa sorte de viajar muito pelo trabalho. Lutei para isso, senão, teria sido jornalista. A saúde é necessária para continuar fazendo.
E por falar em coração, temos a canção Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço com o trecho: “Saudade, amor, que saudade/ Que me vira pelo avesso/E revira meu avesso / (…)Quem disse que eu te esqueço”. Como acomodar essa saudade na bagagem do processo de envelhecimento para ser saudável?
A saudade é perene, não passa, mas ela traz a presença das pessoas com as quais já não convivo, ou que não estão mais nesse plano. Para que ela seja saudável, é preciso ter boas lembranças e não ter arrependimentos, como o de não ter falado algo para uma pessoa ou de não ter tido coragem. Essa coisa de se arrepender por falta de coragem, eu não vou viver. Tenho essa certeza por ser muito corajosa. A despeito de tudo, de todos e do que falam. Vou em frente e não desisto! Esse não desistir, para mim, é um valor que herdei de minha família, isso também por uma falta de opção. As pessoas não tinham a chance de desistir por muitos motivos, eram obrigadas a seguir em frente. Ontem estava com a minha mãe enquanto ela bordava dizendo: “Não vou desistir até dar certo esse ponto!”. Meu pai também nunca desistiu. Um homem preto que não conviveu com o pai, muito pobre e não desistiu. É um ensinamento, uma força.
Nessa relação com o Nei também está presente a intergeracionalidade, pois há uma troca: ele lhe repassa o bem precioso de suas composições e você retorna com sua preciosa interpretação. Em analogia ao seu papel de professora de canto, como se relaciona com os mais jovens?
Eu escuto e me esforço para escutar muito. Digo esforço porque a escuta não está dada, não significa só ficar de boca calada. A escuta é muito exigente. Ela cobra uma presença sua em relação ao outro, um interesse e uma intencionalidade. É preciso estar atento e disponível. Nem sempre é fácil, e por isso que tenho optado em trabalhar em grupos a dar aulas individuais, pois minha escuta no grupo acontece de uma forma mais flutuante. O grupo é mais dinâmico e mais diverso. A escuta do outro, sendo você e mais uma pessoa, é muito exigente e tensiona a relação. Para expandir a minha escuta, preciso recuperar a maneira como eu venho sendo escutada. Sempre foi no coletivo que aprendi, no grupo, na roda de samba com tudo acontecendo: a batucada, as pessoas chegando, despedindo, chorando, aplaudindo e reclamando. Porém, tudo acontecendo e você tendo o seu corpo ancorado naquele momento, naquele que fala. Se eu estou numa roda de samba com mestres, a minha escuta está atenta a esse mais velho, por ele ser, ali, o professor. Podemos discordar em questões sociopolíticas, mas existe nas culturas diversas de artes negras esse culto e a educação ao mais velho. A gente aprende ouvindo quem veio antes.
Sobre a importância da escuta, seja no seu papel de professora ou na sua produção musical, temos sua frase: “Não sou surda para a realidade social”. Qual som lhe chega sobre a realidade social do velho brasileiro?
O desprezo, o total abandono, a total surdez da sociedade em relação às pessoas mais velhas, um desrespeito. Chega como um ruído, não um som. Por outro lado, vem um som de pessoas que pedem para serem ouvidas. Precisamos estar atentos a isto. Eu convivo com pessoas idosas. Sou de um terreiro de uma senhora muito idosa, onde a palavra dela é autoridade máxima. Lá todas as pessoas, inclusive, as crianças, entendem que existe um respeito, mesmo quando há divergências.
Há de se respeitar um tempo que passa pelo corpo dessas pessoas, aquilo que ficou acumulado, o que foi digerido, o dispensado e o que se cristalizou como caminho. Importante batalharmos para construirmos uma sociedade que efetivamente nos escute, porque a voz deles é a nossa voz, só que projetada a frente, num outro tempo. Se tivermos sorte, chegaremos lá e quando chegar lá tomara que tenha gente para nos acolher. (Fabiana Cozza)
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Fotos: José de Holanda
