Envelhecer sendo lésbica: a importância de visibilizar as histórias de mulheres que amam mulheres na velhice

Envelhecer sendo lésbica: a importância de visibilizar as histórias de mulheres que amam mulheres na velhice

Ser uma mulher lésbica velha, no Brasil, significou atravessar o tempo em silêncio, criando modos de existir entre o medo, a coragem e a solidão.


Por Sarah Ryanne Sukerman Sanches  (*)

Apesar das conquistas políticas voltadas às mulheres e à população LGBTQIA+, as experiências de mulheres lésbicas seguem à margem – sobretudo aquelas vividas pelas mais velhas, que enfrentaram períodos de forte repressão sexual e regimes autoritários, como a ditadura militar. Agora, uma pesquisa inédita quer ouvir essas vozes. 

No Brasil, estima-se que existam aproximadamente 2 milhões de mulheres que se afirmam lésbicas, segundo levantamento da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade de São Paulo (USP)1. O LesboCenso Nacional2, por sua vez, estipula que a população total de mulheres lésbicas em território nacional pode chegar a 10 milhões de mulheres. As suas trajetórias e especificidades, contudo, pouco aparecem nas estatísticas, nas políticas públicas ou mesmo em produtos culturais, como novelas, filmes ou livros. 

Iniciativas recentes, como o já mencionado LesboCenso Nacional (2022), primeiro mapeamento sociodemográfico e de vivências de mulheres lésbicas e sapatonas no Brasil, e o Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil (2018)3, que reúne dados de violências letais contra essa população, têm buscado preencher as lacunas de silenciamento e invisibilização que historicamente marcam os caminhos de vida e morte de mulheres homossexuais. 

Mas, afinal, quem são essas mulheres? 

Depois de séculos de apagamento e eufemismos em torno da sexualidade feminina, o termo lésbica emerge no século XIX, para se referir às mulheres que se relacionavam afetivossexualmente entre si4. Homossexuais femininas, mulheres gays, entendidas, sapatonas, entre outras nomenclaturas, compõem também o conjunto de nomes dados àquelas que desafiam a heterossexualidade elegendo outras mulheres como companheiras e/ou parceiras sexuais. 

Ser uma mulher lésbica significou, ao longo da história, lidar com o apagamento imposto por instituições, famílias e pelo Estado, seja pela obrigatoriedade do casamento heterossexual, pela invisibilização da sexualidade feminina como um todo ou no cerceamento das relações entre mulheres. Em contextos nos quais amar outra mulher era visto como doentio, imoral e um ato passível de punição e perseguição, o silêncio operou também como mecanismo de sobrevivência. Uma realidade não muito distante, já que, até 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) ainda considerava a homossexualidade uma patologia. 

Ainda assim, através de suas coragens, rebeldias e organização política, mulheres lésbicas conseguiram deixar rastros e registros das suas existências no decorrer da história: diários, cartas, poemas, fotografias e outros documentos que resistiram à destruição e apagamento da passagem do tempo e de uma sociedade fundada no poder masculino e heterossexual5. A partir desses vestígios e fragmentos, lésbicas ativistas, historiadoras/es e cientistas sociais, entre outras, têm tentado reconstruir as narrativas de vida de diferentes mulheres e coletivos de lésbicas, em diferentes tempos e lugares. 

Nas últimas décadas, essas investigações se multiplicaram, ampliando o escopo das pesquisas sobre essas sujeitas. Contudo, como se observa nos estudos acadêmicos em Ciências Humanas e Sociais6, e também nos produtos culturais, essas narrativas continuam focadas, em grande parte, em mulheres jovens e adultas. Até mesmo em pesquisas de levantamento amplo é possível observar a dificuldade de alcançar lésbicas mais velhas, como demonstra a amostra participante do LesboCenso Nacional, onde mais de 70% das respondentes possuíam entre 20 e 40 anos, e apenas 4,3% estavam acima dos 51 anos. 

Onde estão as mulheres lésbicas em processo de envelhecimento no Brasil? 

A geração de lésbicas que hoje atravessa a velhice cresceu sob os ecos de uma sociedade que criminalizava os seus desejos e empurrava os seus amores no armário. Muitas viveram a juventude durante a ditadura militar, quando a repressão a qualquer manifestação de dissidência era brutal e a autonomia sexual, um risco. Enfrentando, entre outras formas de discriminação, décadas de exclusão nos serviços de saúde, invisibilidade nas políticas públicas e marginalização até mesmo dentro dos movimentos feministas e LGBTQIA+7

Ser uma mulher lésbica velha, no Brasil, significou atravessar o tempo em silêncio, criando modos de existir entre o medo, a coragem e a solidão. Hoje, quando o envelhecimento se torna um importante território de interesse, investigação e disputa, é urgente nomear essas vivências e reconhecer o que elas têm a ensinar, não apenas às novas gerações de lésbicas, mas à sociedade como um todo. 

Por isso, é fundamental escutar essas mulheres em primeira pessoa. Afinal, o que significa envelhecer para uma mulher lésbica? Como foi chegar até aqui? Quais os desafios e alegrias de viver essa etapa da vida sendo uma mulher que ama outras mulheres? 

rostos de mulheres idosas sorrindo

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Uma pesquisa para escutar e registrar essas vozes 

A pesquisa Envelhecer sendo lésbica aparece como resposta a esse contexto, não apenas como um projeto sobre lésbicas idosas, mas como um gesto de escuta atencioso e movimento de visibilização do envelhecimento feminino homossexual. 

Voltada para mulheres lésbicas com 60 anos ou mais, de todo o Brasil, a pesquisa pretende coletar dados e escutar, com atenção e afeto, essas vivências silenciadas, mapeando modos de vida, redes de apoio, afetos e enfrentamentos. Com isso, busca abrir caminhos para que políticas públicas considerem as especificidades dessa população, atravessada também por questões de raça, classe e território. 

A pesquisa, que ocorre em duas etapas (formulário e entrevista oral), abriu a chamada para participantes neste mês de junho, em que se comemora o Dia do Orgulho LGTBQIA+. O formulário, aberto para participação de mulheres de todo o país, segue coletando respostas até o dia 31 de agosto, quando se encerra o Mês da Visibilidade Lésbica. Além de ser uma ferramenta de coleta de dados, o site oficial do projeto (envelhecersendolesbica.com) funciona como um repositório de produções culturais e científicas sobre o envelhecimento lésbico, concorrendo para a visibilização dessas narrativas enquanto espaço de memória. 

A velhice, além de uma etapa da vida, é um campo de disputa simbólica, política e cultural, no qual vozes dissidentes têm muito a dizer e a ensinar. Assim sendo, conhecer as histórias de vida e as diferentes vozes de mulheres lésbicas que envelhecem no Brasil pode mudar as políticas existentes, mas também a nossa sensibilidade para a velhice e o nosso olhar sobre o tempo, o amor e a vida. Que essas histórias ecoem, iluminem e inspirem! 

Acesse o site envelhecersendolesbica.com e participe! 

Notas
1A pesquisa em questão, realizada nas cinco regiões do Brasil, através do Instituto Datafolha, entrevistou 6 mil pessoas maiores de 18 anos. O levantamento apontou que 12% da população brasileira declara-se LGBTQIA+, sendo 0,93% constituída por lésbicas (IBDFAM, 2022). Considerando que o Brasil possui 212,6 milhões de habitantes (IGBE, 2024), é possível concluir que a população lésbica autodeclarada é de, atualmente, 1.977.180 mulheres.
2 Ver: https://www.lesbocenso.com.br/ 
3PERES, M. C.; SOARES, S. F.; MARQUES, M. C. D. Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil: de 2014 a 2017. Rio de Janeiro: Livros Ilimitados, 2018. 116 p. 
4FALQUET, J, Lesbianismo. In: HIRATA, H.; LABORIE, F. ; DOARÉ, H.; SENOTIER, D. (Orgs.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Editora UNESP, 2009. p. 122-128 ]5Sobre isso, ver: SWAIN, T. N. O que é o lesbianismo? São Paulo: Brasiliense, 2004. 104p. ; VAINFAS, R. Homoerotismo feminino e o Santo Ofício. In: DEL PRIORE, M. (Org.). História das mulheres no Brasil. 7ª Ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 115-140. ; FALQUET, J. De la cama a la calle: perspectivas teóricas lésbico-feministas. Bogotá: Editora Brecha Lésbica, 2006. 83 p.
6ALVES, A. M. Envelhecimento, trajetórias e homossexualidade feminina. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 16, n. 34, jul/dez. 2010. p. 213-223. 
7PINAFI, T. História do movimento de lésbicas no Brasil: lésbicas contra a invisibilidade e o preconceito. Londres: Novas Edições Acadêmicas, 2015. 140 p. ; SILVA, Z. P da. “Sapatão não é bagunça”: estudo das organizações lésbicas da Bahia. Tese (Doutorado Multi-Institucional e Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento) – UFBA, IFBA, UNEB, UEFS, SENAI-CIMATEC, LNCC, Salvador, 2017. 328 f.

(*) Sarah Ryanne Sukerman Sanches – Jornalista (DRT 6176/BA). Lésbica e poeta. Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo (UFRB), Especialista em Gênero, Raça/Etnia e Sexualidade na formação de Educadoras/es (UNEB) e mestranda em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM/UFBA). Pesquisa a existência lésbica e o envelhecimento de mulheres que amam mulheres, a partir de suas histórias de vida. É membro do LES/UFRB (Laboratório de Estudos e Pesquisa em Lesbianidade, Gênero, Raça e Sexualidade) e da Rede LésBi Brasil de pesquisadoras e ativistas lésbicas e bissexuais. A pesquisa foi aprovada no 4º Edital Acadêmico de Pesquisa – Envelhecer com Futuro, e é apoiada pelo Itaú Viver Mais e o Portal do Envelhecimento e Longeviver. E-mail: sarahrssanches@hotmail.com

Foto destaque: Divulgação/filme Secreto & Proibido, de Chris Bolan/ Netflix.


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