O palco dá vida a cenas reais, revelando que em cada fase e ciclo da vida existe um indivíduo capaz de protagonizar sua própria história.
“Vendo o mundo além das aparências, vemos opressores e oprimidos em todas as sociedades, etnias, gêneros, classes e castas. Vemos um mundo injusto e cruel. Temos a obrigação de inventar outro mundo, porque sabemos que um outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com nossas mãos, entrando em cena no palco e na vida”.
Augusto Boal (2009)
Augusto Boal, fundador do Teatro do Oprimido, iniciou sua trajetória como dramaturgo ao escrever peças para o Teatro Experimental do Negro (TEN), criado por Abdias do Nascimento, em 1944. O TEN também recebeu influência do psicodrama, método desenvolvido por Jacob Levy Moreno e introduzido no Brasil por Alberto Guerreiro Ramos.
Mas o que esses homens tinham em comum?
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A arte, a cultura e a educação se encontram no palco para dar vida a cenas reais, transformando-as e revelando que, em cada fase e ciclo da vida, existe um indivíduo capaz de protagonizar sua própria história. Ao nos convidar a acessar essa potência, inspiram a transformação individual e social.
É fundamental reconhecer as grandes mulheres que, com propósitos convergentes, foram parte fundamental dessas histórias, muitas vezes como protagonistas. Por isso, nossa entrevista de hoje é com Cecilia Thumim Boal, que, além de compartilhar sua trajetória nesse trabalho, nos oferece um olhar sobre seu próprio processo de envelhecimento.
Cecilia, natural da Argentina, é psicanalista, atriz, fundadora e presidente do Instituto Boal, onde se dedica à preservação do acervo e à continuidade da obra desse mestre do teatro.
Silmara: Entre Argentina e Brasil, entre o teatro e a psicanálise, quem é a Cecília na fase da velhice?
Cecília: Eu continuo fazendo atendimento em Psicanálise, tenho o meu consultório e clientes. Desenvolvo muito o trabalho teatral e acompanho vários grupos. Também traduzo peças de teatro latino-americano. Criei um instituto para conservar a documentação do Boal e agora que estamos com uma parceria muito interessante, fizemos há pouco uma peça do Boal: O Grande Acordo Internacional, O Tio Patinhas no Sesc, aqui do Rio de Janeiro. Nessa fase da minha vida tenho me dedicado muito a essas atividades. Me vejo muitíssimo ativa, trabalhando muito. Pretendo continuar assim, pois venho de uma família longeva, de pessoas que morriam aos 100 anos, ainda muito bem de saúde. Pretendo continuar nessa linhagem.
Após cinco anos de casamento com Augusto Boal, sua família foi afetada diretamente pelo golpe militar, tiveram a prisão do Boal, a perda do teatro de Arena e o exílio na Argentina, Portugal e França. Como todos esses fatos lhe transformaram?
Esses fatos me deram outras possibilidades. Na Argentina comecei a fazer programa para crianças e me tornei roteirista. Eram três roteiros por semana. Levei esse programa para Portugal, mas foi quando cheguei na França que assumi minha outra paixão, a Psicanálise. Fiz minha formação de psicóloga na Sorbonne e posteriormente Psicanálise e Análise Pessoal, aproveitando o tempo considerável que moramos na França.
Todo papel passa por um estágio de desenvolvimento que nasce da relação com o contrapapel. Pensando no seu papel de esposa durante 43 anos, onde você mais enxerga a Cecília na relação com o Boal?
Os casais acabam se misturando por uma influência. Eu sempre admirei as qualidades dele e não me acho aquela pessoa maravilhosa como ele. Quando eu conheci o Boal ele já tinha uma vida bem definida, ele diretor e eu atriz. Tínhamos 13 anos de diferença de idade. Acho que uma coisa que influenciei ele foi ao sugerir que ele fizesse análise. Fez e gostou muito.

Ainda falando dessa relação, temos sua frase: “À medida que o tempo está passando parece que o espírito do Boal está tomando conta de mim, pois ele arrumava respostas para as situações piores’’. Qual resposta à vida você deu e que considerou estar se expressando como ele?
Eu comecei a me interessar mais pelas atividades dele, como arrumar toda documentação, uma tarefa que era normalmente assumida por ele. Eu fiquei surpresa com a quantidade de documentos. Assumi mais a parte do teatro, pois no exílio ele também tratava mais disso.
Boal lançou o seu primeiro livro aos 35 anos, o filho lançou um aos 25 anos e o neto aos 10 anos. Qual o valor que marca gerações na árvore genealógica dessa família?
Eu creio que o Julian, que é o filho do Boal, e o Fabian, que é o meu, mas que Boal adotou, têm muito como marca a ética. São fiéis aos princípios, sendo os principais do Boal, a solidariedade e empatia com os outros seres. Todos eles têm. Aliás, de um modo geral, a família Boal têm essas características. Acho que isso veio dos pais dele, eram imigrantes vindos de Portugal. Conheci a mãe e fiquei com a impressão de que era uma gente muito boa. Geralmente não damos o devido valor à questão da bondade. Eu, no convívio com ele e com essa família, fui me dando conta dessa importância. Eu te diria que são todos bons, ou seja, respeitam e são abertos ao diálogo, valores raros.
No Seminário Internacional de Teatro e Sociedade você interpretou a canção Como la cigarra, cantada por Mercedes Sosa. Por que essa canção te representa?
Essa canção é de uma poeta argentina muito legal chamada Maria Helena Walsh, hoje já falecida. A Mercedes canta, assim como outros intérpretes. O que fala na canção é que ela renasce e que quando renasce, ela canta. Ela faz escutar a sua voz. Nesse sentido, tanto eu quanto Boal, somos representados, pois apesar de tudo a gente nunca se calou. Claro que mais ele do que eu, pois foi uma pessoa muito corajosa. Em certa medida procuramos sempre defender as nossas ideias e dizer o que pensamos, mesmo tendo que se calar por um tempo. Tendo oportunidade de ter a voz de novo, voltamos sempre a dizer as mesmas coisas. Não mudamos de opinião e as nossas opiniões são conhecidas, não as escondemos.
O teatro de arena era assumidamente político. Em 2018 fez 50 anos e durante a pandemia você resgatou a Feira de Opiniões usando a internet como canal. O que essa ação lhe trouxe?
Foi uma experiência interessantíssima e estamos agora com o projeto de retomar essa feira ao vivo no teatro. Você perguntar para as pessoas o que elas pensam sobre o seu país vem como uma ideia de diversidade. Como em uma feira: tem fruta, peixes, caldo de cana e pastel. Todo mundo participou da feira sem recusa. As pessoas se engajaram, produziram, escreveram e atuaram sem receber nada por isso. A gente fez mais de 55 programas, ficando o registro e a inspiração. Foi na feira de 1968 que eu participei como atriz e fomos censurados, perseguidos e só conseguimos realizar graças a um mandado de segurança. Esse risco pelo qual passamos já não corríamos na pandemia. Tem o depoimento da Fernanda Montenegro logo no início do programa e ela fala que eles correram risco de morte, atiraram contra eles. Às vezes acho que não somos justos com o Fernando Torres, ele merecia ser mais lembrado. Foi extremamente inspiradora essa feira!
Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido, e Paulo Freire, criador da Pedagogia do Oprimido, homens que tinham como base a ética e a solidariedade. Os dois falavam sobre o não assujeitamento. Faleceram na velhice: Boal aos 78 e Freire aos 75, ambos no dia 2 de maio de anos distintos. Como o oprimido ligou a história desses dois pensadores?
Acho que esses dois tinham esperança, tinham fé no futuro. Eles ofereciam às pessoas o lugar para saírem da opressão. Eles acreditavam que tinham de continuar nessa batalha para tentar esclarecer e oferecer esse novo lugar. Contudo, não são todos que escolhem esse caminho.
Falando de opressão, temos a padronização da beleza. Como você vê essa questão? É como silenciar o envelhecimento e deixar invisível esses corpos?
Sim, existe uma tentativa na nossa sociedade de fazer isso, mas é muito curioso tantas técnicas de botox para tentar mascarar a velhice. Tivemos aqui no Brasil respostas inesperadas que vêm de pessoas em evidência como: Fernanda Montenegro, Othon Bastos e outros atores que, mesmo com muita idade, ainda estão nos palcos. Assim como entre os políticos, o próprio Lula. Todos eles continuam num ritmo que muitos jovens não têm. No palco vi a Fernanda Montenegro com um charme, não de uma jovem, mas com o charme de uma mulher de 95 anos, sem precisar fazer de conta que é mais jovem, com a beleza da velhice. Na cena do filme Ainda estou aqui o olhar dela é uma aula sobre o envelhecimento.
No livro A Estética do Oprimido, Boal se refere à questão da corporeidade, ao explicar que a “alienação política” passa pela “alienação do corpo” e que para intervir no mundo é preciso despertar esse corpo mecanizado que “Olha, mas não vê; ouve, mas não escuta; e toca, mas não sente”. Como você se desperta para ser um sujeito que não se assujeita?
Tem muito a ver com a família que tive. Meu pai já era muito contestador e eu tinha uma tia também assim. Aprendi a examinar, a dizer: gosto, não gosto, concordo ou não concordo. Não tenho medo de desagradar. Os argentinos são chatos, pois dizemos o que pensamos. Mas agora na Argentina está ocorrendo um caso de alienação. Eu sempre votei consciente e fiz opção política. Lembro de uma resposta do Paulo Freire para uma pessoa que falou que não sabia o que dizer. Ele falou: – Todo mundo sempre pensa, diga o que pensa. A partir do momento em que você não tiver medo de dizer o que pensa, você pode entrar nos debates. Entrar num debate é também não ter medo de conflitos, pois você não vai concordar sempre com tudo o que os outros falam. Tem que haver esse espaço de debate. Você tem que entrar querendo escutar os argumentos do outro. Se você entra convencido que só você tem razão, deixa de ser um diálogo. Boal propunha o diálogo. Minha família nunca deu a resposta “isso é assim porque é assim!” quando uma criança fazia uma pergunta. Sempre estudei em escolas públicas de bairro e nunca paguei para estudar, um privilégio raro. Estudei com todas as classes sociais misturadas. Meus filhos também estudaram na França em escolas públicas.
O Teatro do Oprimido tem o convite para o pensar, lugar onde o espectador passa a protagonista e a plateia entra no debate para apresentar uma solução ao conflito. Pensando hoje, em nosso cenário social, qual questão sobre o envelhecimento você levaria para a Arena?
Eu faria uma afirmação e convidaria as pessoas a problematizarem comigo. Eu creio que para envelhecer é necessário muita coragem, uma vez que você está enfrentando a sua morte. Você está mais perto do fim e essa ideia pode ser muito paralisante. Um convite a se falar de um tema que é tabu, muito interessante para levar para a arena. Montaria uma cena em que uma pessoa declara que ela tem medo da morte e colocaria esse medo em debate. É um momento da vida onde as pessoas começam a ter poucos projetos e em que ela te coloca cara-a-cara com a finitude. O que te faz viver é o desejo, como o meu de querer montar uma peça, por exemplo. Esses “querermos” vão diminuindo com o tempo e é isso que eu colocaria em debate: Como você consegue conviver com essa perspectiva e com esse período da vida em que se tem menos desejos, porque nos sentimos cada vez mais na impossibilidade de realizar esses desejos? Nesse momento me lembro do amigo do Boal, um professor da universidade de Nova Iorque, o Richard Schechner. Eles tiveram uma conversa sobre o envelhecimento. Boal chegou falando a frase que ouviu dele: “A pessoa quando está velha é igual, mas tem que ir mais devagar, tem que ir mais lentamente.” Os jovens vão a mil por hora e o velho tem que ir a 500, mas tem que ir. A questão é não parar. Se a morte é vivenciada como uma derrota, então não se deixe vencer antes de tê-la.
Você tem esse medo, Cecília?
De vez em quando tenho, mas não me entrego. Isso já foi discutido pela Psicanálise como a “suprema castração”, um golpe final dado ao nosso narcisismo. A gente se acha todo poderoso e entende que esse poder não tem fim. O tempo todo a vida vai nos mostrando que estamos errados, e quando a gente não aceita, o sofrimento é muito grande. Então, o nosso narcisismo tem que aceitar essa castração.
Fotos: arquivo pessoal de Cecilia Boal.
Atualizado às 21h07
