Entrevista: Dona Marieta, a travessia da maré e a força de uma vida

Entrevista: Dona Marieta, a travessia da maré e a força de uma vida

Dona Marieta é uma das personagens femininas que fazem de São Cristóvão um tesouro vivo, da história, do costume e da singularidade de Sergipe.


No coração de Sergipe, São Cristóvão nos convida a uma viagem no tempo. A quarta cidade mais antiga do Brasil, fundada em 1590, foi reconhecida como Patrimônio Mundial pela UNESCO, exibindo uma arquitetura colonial que se mistura a uma vida simples e vibrante. A cada esquina, entre a grandiosidade da Praça São Francisco e as ladeiras que contam segredos, a população local guarda a essência de um lugar que soube preservar sua identidade. Nossa conversa com Dona Marieta é um mergulho neste universo particular, explorando as histórias, os costumes e as singularidades de uma das personagens que fazem de São Cristóvão um tesouro vivo.

Numa breve parada para saborear a queijada mais famosa da cidade, fomos recebidos com um café coado com o pó preparado pelas mãos do primo de Dona Marieta, Joaquim, de 93 anos, preservando a tradição de um tempo em que o grão era consumido misturado às refeições, seco ao sol e socado no pilão, sem a torra – lembrança viva de quando os donos de engenho proibiam o acesso à bebida aos escravizados. Entre goles fortes e histórias impregnadas no sabor, surgiu a pergunta: “E Dona Marieta?”. Caminhando pelo corredor rumo à cozinha, logo a avistamos, encostada ao fogão, acompanhada de suas filhas Marta e Carla. A doceira renomada é a principal guardiã da queijadinha, um doce tradicional que se tornou Patrimônio Cultural Imaterial do Estado.

Foi ali, entre o calor do forno e o acolhimento de sua presença, que nos deixamos tomar pela força de sua vida. Entre risos e silêncios suspensos na garganta, ouvimos de perto uma trajetória marcada por dores e resistências, atravessada pelo gênero, raça e pela condição social, heranças que remontam ao período da escravidão e ainda ecoam nas desigualdades presentes, transformada, por uma alquimia silenciosa, em superação e inspiração. Ali, o processo de envelhecimento se mostra como testemunha e moldura de toda essa trajetória: cada memória carrega experiência e uma sabedoria que só o tempo pode oferecer. Entre suas lembranças, Dona Marieta traz ecos de mulheres que, como o encontro do rio e o mar que foi quintal durante boa parte de sua vida, se entrelaçam às águas da vida: resilientes, profundas e imensas.

Escutá-las foi beber da fonte do tempo.

Partimos transformados, como quem descobre na vida um outro modo de permanecer.

Dona Marieta em frente ao seu forno

Silmara: Vamos falar do seu processo de envelhecimento…
Dona Marieta: Tenho 81 anos. Na época em que nasci, minha mãe marcava na tábua o nascimento de cada um dos filhos e, há pouco tempo atrás, quando levantaram o barracão, encontraram a madeira com a idade de todos nós. Viram que eu, na verdade, estava com 85 anos.

Com essa revelação de que você é mais velha do que pensava, você se sente com 81 ou 85 anos? A sua “idade verdadeira” mudou a sua percepção sobre si mesma?
Dona Marieta: Ah, para mim, quanto mais, melhor. Quero chegar aos 110 anos. [Risos]
Nasci na Baixada do Engenho, na cidade de Itaporanga d’Ajuda. Lá não tinha como registrar as pessoas escravizadas e aquelas que não tinham condição. Acumulavam os registros de quem nascia até um determinado dia e o dono do engenho as levava para a emissão dos documentos. A minha vez chegou pouco depois dos quatro anos.

Filha Marta: Tivemos a certeza da idade da mamãe quando a comparamos a uma tia-avó que nasceu no mesmo ano que ela e que hoje tem 85, registrada em Aracaju. A igreja pediu para considerarmos o batistério, que registra 81. Mas para qualquer uma dessas idades, ela está dando um show de vitalidade.

Dona Marieta: Na época da minha bisavó, não a permitiam frequentar a igreja dos brancos por ser escrava e, na minha época, eu ainda não podia frequentar a parte alta da cidade por ser pobre.

Hoje, a sua loja, que também é sua residência, está localizada nessa área, bem ao lado da igreja e em uma das principais praças da cidade. Como se sente?
Dona Marieta: Eu não queria subir, por ter vivido boa parte da minha vida lá embaixo. Mas entendi que, estando aqui, cumpro uma missão cultural, tendo uma oportunidade de contar minha história e de como venci com o meu trabalho. Essa casa era estranha para mim, mas aos poucos foi se encaixando. A cama nova nunca consegui me adaptar e tive que trazer a antiga lá de baixo.

O que mais você deixou para trás, lá na Maré (conjunto de bairros ribeirinhos)?
Dona Marieta: Aquele movimento de amigos. De um barracão, levantei uma casa, que hoje foi transformada em clínica para ajudar a comunidade. Vivia cheia e isso me deixa saudades. Continuo a visitá-los. Outra saudade que ficou é a da pescaria de mergulho que eu só fazia lá.

Filha Marta: A saída dela foi para um bem coletivo. Todo mundo que entra aqui, sai diferente.

Dona Marieta: Acredita que nessa época da mudança tive até dificuldades para conseguir um financiamento para a compra do imóvel, pois o banco afirmava que eu não tinha condições para tanto. Precisou chegar ao ponto de O IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) intervir por nós. Essa primeira negativa do banco sentimos como uma humilhação. Veja como é difícil a pobreza!

Filha Marta: Ela sempre diz que nós quebramos as correntes da escravidão. Minha bisavó, avó e mamãe não chegavam aqui. Quando recebemos pessoas aqui na Casa da Queijada, mostramos que é possível superar qualquer coisa. É preciso tempo. Foi necessária essa fase de mamãe para que pudéssemos chegar onde chegamos.

Marta, como foi olhar a história de sua mãe e ver que ela quebrou essas correntes?
Filha Marta: É fantástico ver tudo isso. Eu me emociono toda vez ao pensar que, com essa história, aprendi que não existem barreiras na vida. Se ela conseguiu superar diversas dificuldades que nem imaginamos, hoje é possível superar qualquer coisa.

Olhando para a história dessas mulheres — sua mãe, avó, bisavó —, o que fica para você sobre o envelhecer?
Filha Marta: Quanto mais tempo, melhor! Quanto mais história, quanto mais estrada, melhor. Nessa família, não existe o sentimento de que envelhecer é sofrimento. Hoje, aproveito a experiência e a sabedoria da minha mãe. Espero chegar à idade dela de forma semelhante. Ela tem uma consciência de luta de classe e de partilha, tudo isso conquistado com a vida. Nós, os filhos, sabemos respeitar as decisões dela. Se ela falar que uma assadeira deve ficar virada, assim ficará. Quando temos alguma sugestão de mudança, conversamos bastante com ela e sempre aguardamos a resposta no tempo dela.

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Dona Marieta, a receita da queijada vem de gerações. Existe uma preocupação em dar continuidade a esse trabalho?
Dona Marieta: Sim, minhas duas filhas já foram treinadas e me ajudam no dia a dia. Hoje, por exemplo, produzimos diariamente cerca de 500 unidades. Quem saiu da senzala e da Maré não pode desistir. Tem que trabalhar dia e noite! Eu acordo sempre às três horas da manhã e venho para este fogão.

“A queijada da cidade de São Cristóvão é uma adaptação da queijada portuguesa feita por escravos nas senzalas com coco, açúcar e especiarias, como cravo e canela, em vez de queijo e manteiga.”

E pra você Marta, o que representa essa queijada?
Filha Marta: A queijada é mais do que um sabor: são possibilidades e uma história de vida. Tudo acontece em torno desse forno. Superamos a pobreza, o preconceito e a diferença social vivida pela minha mãe. Minha bisavó e minha avó sofreram preconceito racial. Por mais que sempre estivéssemos lutando, as pessoas olhavam para nós de uma posição superior. Tudo isso dói na alma. Minha tataravó veio da África. Eu sempre digo que ela deve ter sido uma princesa, pela força e energia que nos transmitiu entre gerações. Minha avó também. Víamos ela dançando em casa e, hoje, entendemos que tudo aquilo era da religião africana. Embora ela silenciasse e fosse devota aos santos católicos.

Por falar em religião, qual sua ligação com a espiritualidade?
Dona Marieta: Me traz muita força e coragem. Quando vejo parentes e amigos desistindo de algo, eu digo: “Se levante, fique em pé! De onde está vindo essa moleza?”

Dona Marieta e sua fé

Filha Marta: Minha mãe é uma inspiração para todos aqui. Ela batizou todos os sobrinhos e tem mais de 18 afilhados. A família sempre vem pedir conselhos, pois sabem que ela tem sonhos e premonições que de fato aconteceram, como mortes.

Descobrimos aqui na cidade uma imagem de São Francisco com uma caveira nas mãos, simbolizando que a morte é uma passagem certa para a vida eterna, e que todos somos iguais. Como é a sua relação com a morte?
Dona Marieta: Não tenho medo. Eu costumo dizer: “Já venci tudo na vida. Meus filhos já estão criados. Se a morte chegar, não há problema algum.”

Considerando toda a sua trajetória, quem é a Dona Marieta nesta fase da vida?
Dona Marieta: Eu deveria ser a pessoa mais feliz do mundo, mas, para isso, eu teria que ter tido a oportunidade de oferecer um prato de comida para minha mãe e para minha avó. Eu consegui atravessar o oceano, e elas não conseguiram. Elas tinham medo do branco. Eu enfrentava!

Filha Marta: Observo que, nessa travessia, minha mãe seguiu em frente. Vejo que ela fez muito por elas e, hoje, continua a fazer esse resgate na vida de muitas pessoas. Tanto minha bisavó quanto minha avó abençoavam minha mãe em reconhecimento pela mulher que ela é. Todos que chegam aqui, escutam dela: “Vá! Siga em frente! Não pare!”, mostrando que é possível.

Dona Marieta: Além disso, ainda incentivei e apoiei todos os meus irmãos a estudar, e todos foram aprovados em concursos. Pela manhã, eles ajudavam nas tarefas e, à tarde, iam para a escola.

Agora, venham cá e coloquem a mão nessa pedra do forno. Levem esse calorzinho com vocês!

Fotos: arquivo pessoal. A foto de destaque traz Dona Marieta e sua filha Marta.

Serviço
Instagram: @casadaqueijada


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Silmara Simmelink

Psicodramatista formada pela Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama. Psicóloga graduada pela Universidade São Judas Tadeu. Especialista em Gerontologia pelo Albert Einstein e fez curso de extensão da PUC-SP de Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento. Pós graduada em psicanálise pela SBPI e Sociopsicologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de SP. Atua em clínica com abordagem psicodramática e desenvolve oficinas terapêuticas com grupos de idosos. É consultora em Desenvolvimento Humano e especialista em psicologia organizacional titulada pelo CRP/SP. E-mail: ssimmel@gmail.com

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Silmara Simmelink

Psicodramatista formada pela Associação Brasileira de Psicodrama e Sociodrama. Psicóloga graduada pela Universidade São Judas Tadeu. Especialista em Gerontologia pelo Albert Einstein e fez curso de extensão da PUC-SP de Fragilidades na Velhice: Gerontologia Social e Atendimento. Pós graduada em psicanálise pela SBPI e Sociopsicologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de SP. Atua em clínica com abordagem psicodramática e desenvolve oficinas terapêuticas com grupos de idosos. É consultora em Desenvolvimento Humano e especialista em psicologia organizacional titulada pelo CRP/SP. E-mail: ssimmel@gmail.com

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