Entre cidadãos e consumidores: quem são as pessoas idosas?

Entre cidadãos e consumidores: quem são as pessoas idosas?

O consumo flertuoso é a atitude das pessoas idosas em prol da manutenção do capital sociofamiliar, fazendo delas consumidores da cidadania coletiva.

Por Sheyla Paranaguá; Kayke Araújo e Pedro Henrique Cezar (*)


O aniversário do Estatuto da Pessoa Idosa, de duas décadas, se aproxima. Entretanto, a cidadania destinada às pessoas idosas se mantém coberta por névoa. Talvez seja pela inexistência de resquícios da famigerada cidadania regulada da Era Vargas, quando o vínculo empregatício às profissões específicas era certeza de tranquilidade da subsistência no cotidiano, em casos de infortúnios da vida ou na aposentadoria. Ou, talvez, seja porque a nossa sociedade ocidental culpabiliza o envelhecer corpóreo, sem considerar os determinantes sociais, atribuindo às velhices, principalmente àquela mais vulnerável, a responsabilidade exclusiva por não alcançar condições de uma vida digna, reforçando os preceitos da cidadania invertida, citada por Sônia Fleury (FLEURY,1994).

Embora saibamos que o conceito de cidadania difundido na sociedade está relacionado a ter acesso aos direitos sociais (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados) é fundamental notar que são poucas as pessoas idosas que vivem este modelo de cidadania em sua plenitude, sem encontrar-se numa condição precária típica da cidadania sacrificial (BRONW, 2018), na qual seus corpos são usurpados de autonomia da vontade em função da sobrevivência de sua parentela.

Já que no Brasil predomina o fenômeno da feminização da velhice (MOTTA, 2018), não é aleatório que sejam justamente as mulheres idosas apontadas como aquelas mais endividadas e/ou na condição de inadimplência (MARQUES, 2022). No entanto, antes de julgarmos injustamente o comportamento financeiro dessas mulheres, voltemos aos idos dos anos de 1960, no auge da Jovem Guarda, que encontraremos a maior parte das mulheres, sobretudo as negras, fora do mercado formal de trabalho ou com lacunas de tempo muito extensas entre um emprego e outro devido à maternidade (HERMES, 2013). Tal situação comprometeria a regularidade da previdência social, implicando numa aposentadoria com valor insuficiente.

Outra situação importante para se pontuar, no caso das mulheres idosas, é o fato de muitas terem se dedicado com exclusividade ao casamento e à estrutura familiar, acessando renda “própria” somente em casos de viuvez, a pensão por morte, que diante das reformas previdenciárias, no Brasil, não está igualada ao valor do salário. Assim, sabendo que na nossa atual sociedade, as mulheres idosas ocupam o lugar de responsável familiar, custeando as despesas necessárias à sobrevivência de seus entes, sobrecarregando-se inclusive emocionalmente, devido à ausência de cumprimento de políticas públicas com efetividade, podemos presumir que para analisar as relações consumeristas desta população é fundamental, além das lentes de gênero, apontar como o predomínio do familismo (CAMPOS; MIOTO; CARLOTO, 2015), ou seja, como o Estado se exime de seu dever, no sentido de garantir a dignidade da pessoa humana, colocando no “colo” das mulheres das famílias, toda a responsabilidade pela provisão do cuidado, distorce a realidade das famílias, culpabilizando as mulheres idosas hipervulneráveis pela utilização do crédito.

Embora estar endividado(a) seja uma condição de todos(as) nós, pessoas adultas, não porque somos consumistas ao extremo ou simplesmente desejantes de experienciar sonhos de outrora, mas porque a sobrevivência está diretamente ligada a alguns tipos de consumos. Vejamos, há o consumo por necessidade, a exemplo das despesas da estrutura de uma moradia: o aluguel, a conta de luz, a conta de água, o gás e já que estamos na era tecnológica, a internet.

Outro tipo de consumo, é o esporádico, aquele do qual fazemos uso por necessidade, com tempos intervalados ou em casos de urgência, respectivamente a compra de uma geladeira, fogão, máquina de lavar, celular ou até mesmo consultas e exames médicos cuja renda mensal das pessoas hipossuficientes não consegue suprir, já que há um abismo entre o salário mínimo nominal e o salário mínimo necessário (DIESSE, 2023), culminando para exclusão social da pessoa idosa em alguns aspectos.

É preciso que façamos uma pausa para falarmos acerca da influência das relações intergeracionais nas propostas de consumo relacionadas à pessoa idosa. Pois, em diálogo com a juventude informatizada, da geração streaming, somente o afeto dialogado através da avosidade é insuficiente, sendo esse afeto construído também em formato de apoio social às gerações descendentes, seja oferecendo o acesso a um calçado mais confortável, alimento ou educação de melhor qualidade, ou até mesmo proporcionando-lhes experiências oriundas da praticidade, confiabilidade e o custo-benefício ofertado pelo marketing sensorial presente nas redes sociais.

Caso não havendo a compra, ainda assim, podemos nominar esse tipo de consumo acima, como consumo pregresso, porque houve todo um ciclo do interesse comercial pelo produto ou serviço, ficando registrado na base de dados dos servidores digitais, o que gerará lembretes automáticos (cookies) a todo momento que o aparelho celular ou computador for usado, independentemente de ser no site anteriormente utilizado.

Apesar de existir a ponderação de que na geração Z o consumo não tem a ver com acúmulo de bens para posteridade, e sim com a experiência oportunizada por um objeto de uso específico no seu cotidiano, fato que pode ser reconhecido com estranheza pela população mais velha, já que não faz sentido para estes(as) adquirir um produto de alto custo, um smartwatch por exemplo, se este não terá durabilidade para se tornar herança familiar, há nas relações intergeracionais entre avós e netos(as) a cumplicidade da realização pessoal projetada, posto que a concretização daquela compra representará não apenas a conquista individual do jovem, mas uma atitude das pessoas idosas em prol da manutenção do capital sociofamiliar, o que nós cuidadosamente nomeamos de consumo flertuoso, o que faz das pessoas idosas consumidores em prol da cidadania coletiva.

Não perca nenhuma notícia!

Receba cada matéria diretamente no seu e-mail assinando a newsletter diária!

Referências
BRITTO DA MOTTA, IDADE E SOLIDÃO: a velhice das mulheres. Revista Feminismos, [S. l.], v. 6, n. 2, 2019. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/feminismos/article/view/30390.

BROWN, Wendy. Cidadania sacrificial: neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Zazie Edições. Tradução Juliane Bianchi Leão. 2018. Tradução de: Sacrificial Citizenship: Neoliberalism, Human Capital, and Austerity Politics. Disponível em: https://zazie.com.br/wpcontent/uploads/2021/05/Pequena_Biblioteca_de_Ensaios_Wendy_Brown_Zazie2018.pdf. Acesso em: 22 jun. 2023.

DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ESTATÍSTICA E ESTUDOS SOCIOECONÔMICOS. Pesquisa nacional da Cesta Básica de Alimentos. DIEESE. Disponível em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html. Acesso em: 21 mai. 2023.

FLEURY, S. Estado sem cidadãos: seguridade social na América Latina. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ,1994. 252 p. ISBN 85-85676-06-X. Available from SciELO Books.

MARQUES, Claudia Lima, RANGEL, Andréia Fernandes de Almeida Superendividamento e proteção do consumidor: estudos da I e II Jornada de Pesquisa CDEA / organizadoras–Porto Alegre : Editora Fundação Fênix, 2022.

MELO, Hildete Pereira de; BANDEIRA, L. M. A Divisão Sexual do Trabalho: trabalho doméstico remunerado e a sociabilidade das relações familiares. Gênero (Niterói), v. 13, p. 31-48, 2013.

MIOTO, R. C.; CAMPOS, M. S.; CARLOTO, C. M. (Orgs.). Familismo, direitos e cidadania: contradições da política social. São Paulo: Cortez, 2015. 248 p.

(*) Sheyla Paranaguá – Assistente social, mestra e doutoranda em estudos interdisciplinares sobre Gênero, Mulheres e Feminismos (UFBA), pesquisadora sobre as violências financeiras específicas contra as mulheres velhas. Docente na UNITINS (TO), coordenadora do Projeto Pensar Direito Eixo – Pessoas Idosas. Coordenadora da pesquisa Os Impactos do Sistema de Regulação do Crédito Consignado no Enfrentamento a Violência Financeira Contra Pessoas Idosas, selecionada no Edital Acadêmico de Pesquisa 2022: Envelhecer com Futuro, promovido pelo Itaú Viver Mais e pelo Portal do Envelhecimento e Longeviver.
Pedro Henrique Cezar – Acadêmico de Direito da UNITINS (TO).
Kayke Araújo Borges – Acadêmico de Direito da UNITINS (TO), extensionista do Projeto Pensar Direito-Eixo Pessoas Idosas, bolsista do Projeto de Pesquisa contemplado pelo Edital Acadêmico de Pesquisa 2022: envelhecer com futuro e instrutor de informática.

Foto destaque de Bayram-Yalcin/pexels


Portal do Envelhecimento

Compartilhe:

Avatar do Autor

Portal do Envelhecimento

Portal do Envelhecimento escreveu 4232 posts

Veja todos os posts de Portal do Envelhecimento
Comentários

Os comentários dos leitores não refletem a opinião do Portal do Envelhecimento e Longeviver.

LinkedIn
Share
WhatsApp
Follow by Email
RSS