“Cuidadania” coloca no centro do cuidado a vida!

“Cuidadania” coloca no centro do cuidado a vida!

A Cuidadania parte do princípio que a vida deve estar no centro do cuidado.


A Política Nacional de Cuidados, aprovada recentemente pela Câmara dos Deputados (segue agora para apreciação dos senadores) me fez lembrar de um tema que desde algum tempo venho comentando na minha rede, que é “Cuidadania”. Se a Política Nacional de Cuidados tem como premissa que todas as pessoas têm direito ao cuidado, a Cuidadania parte do princípio que a vida deve estar no centro de qualquer cuidado, seja a vida de uma pessoa, animal, planta, planeta!

E toda a vida se materializa em um contexto, em um ambiente, seja urbano ou rural. Na 29ª Conferência das Nações Unidas para a Mudança Climática (COP-29), no Azerbaijão (11 e 22 de novembro), o Brasil foi exposto como um país que cuida muito mal da vida, levando o Ministério Público Federal (MPF) a cobrar das autoridades a adoção de medidas urgentes para o combate aos incêndios florestais no Pará, por exemplo. Como viver em um ambiente em chamas? Ou embaixo d’água? Ou em fogo cruzado nas principais vias urbanas do país? Como longeviver em ambientes cujo lucro está acima da vida? Do cuidado?

Mesmo em um planeta com territórios tão inóspitos para se longeviver, é fato inédito na história de nossa civilização que mesmo assim vivemos cada vez mais uma longevidade avançada, com aumento significativo de octogenários, nonagenários e até centenários, apresentando graus diversos de fragilidades. Ou seja, pessoas com diferentes alterações em seu organismo, que condicionam distintos modos de vida em processo de ‘maturação’, assim como exigindo diversos cuidados (Côrte, 2013).

Se longeviver é o tempo de sobrevida que cabe a cada um de nós de acordo com nossas circunstâncias após completarmos 60 anos, dois indicadores são importantes para entendermos melhor essa vivência: HLY e Daly. O primeiro deles, Healthy Life Years (HLY), indica o número de anos que uma pessoa pode esperar viver sem sofrer de incapacidades, ou seja, com uma vida saudável e sem “carga de doença”, importante para se pensar em políticas, produtos e serviços. O segundo indicador, Disability Adjusted Life Years (Daly), é a soma dos anos de vida saudável com os anos vividos com incapacidade: marco para a aplicação de políticas quanto a adaptação da rede de serviços a um novo perfil de longevos, cuja fragilidade aumenta os riscos de perda da dignidade humana e exige mais cuidados. Mas será que a vida está no centro desses cuidados? E que vida? Qual é o significado dela para a família, município e país?

Sabemos que o grande desafio posto pela nossa civilização implica em conservar a dignidade das pessoas nos últimos anos de vida e para tal a ênfase deve ser dada no aumento da qualidade de vida para os que vivem tanto, aceitando as evidências científicas de que existem limites para a vida humana digna.

Lalive e Cavalli (2013) lembram que o processo de fragilização é inicialmente imperceptível, e seus efeitos se instalam gradualmente de modo adaptativo, cujas perdas leves vão sendo incorporadas “naturalmente” ao cotidiano. Mas lembram também que existe um momento de desequilíbrio, causado por uma doença ou acidente, denominado de “limiar de insuficiência”, início do estado de fragilidade maior, motivo ainda de discussões teóricas em seu estabelecimento, mas momento da vida que exige um cuidado mais complexo.  

Para aprofundar mais esta questão, convidamos Gawande (2015) para esta reflexão, quem vai nos dizer que a “capacidade científica moderna alterou de forma profunda o curso da vida humana. As pessoas vivem mais e melhor do que em qualquer outra época da história. Porém os avanços científicos transformaram os processos de envelhecimento e da morte em experiências médicas, em questões a serem gerenciadas por profissionais de saúde”.

O fato, comprovado pela ciência, é que nunca houve tantas pessoas vivendo durante tantos anos como agora, o que implica na necessidade de cuidados que se modificam: a) aumento do número de idosos com afecções crônicas; b) as pessoas sobrevivem mais tempo acometidas por estas doenças; c) acarretando cuidados especiais por anos ou até décadas; d) implicando em mais pessoas que cuidem destes idosos e, claro, muito mais recursos financeiros para garantir uma mínima dignidade.

Envelhecimento da população negra e cuidado

Ante tantas demandas, quais têm sido os cuidados ofertados à população negra no Brasil, em especial a que vive nos centros urbanos? O quadro atual expõe as marcas profundas da desigualdade social e do racismo estrutural que atravessam a vida dessas pessoas. Ao chegar à velhice, quando chegam, homens e mulheres pretas se deparam com um acúmulo de desvantagens, resultado de uma trajetória marcada por dificuldades de acesso à educação, saúde, emprego e moradia digna, perpetuando um ciclo de vulnerabilidade e de falta de cuidados para si, já que normalmente têm sido ao longo da história provedores de cuidados a outras vidas. A interseccionalidade entre raça, gênero, classe e idade agrava ainda mais esse cenário.

Mulheres negras idosas, em particular, enfrentam uma dupla carga de discriminação, combinando o racismo e o sexismo com o ageísmo. Historicamente relegadas a trabalhos informais e precarizados, muitas não conseguem contribuir para a previdência social, chegando à velhice sem amparo financeiro e dependentes de redes familiares, muitas vezes, também fragilizadas. Além disso, carregam o peso dos estereótipos que as associam a papéis de cuidadoras, negligenciando suas próprias necessidades e limitando suas oportunidades de desenvolvimento pessoal.

Cuidadania: de que cuidado estamos falando?

De acordo com Boff (2015), o cuidado é uma noção polissêmica, socialmente construída, mutante conforme histórico e complexidade social, simultaneamente moral, relacional e cultural, carregado de empatia, responsabilidade e solidariedade. É, ainda, necessidade e atividade ao mesmo tempo.

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Nesse sentido, o ato de cuidar se relaciona e, por sua vez, inter-relaciona experiências de vida, práticas diárias, relações intergeracionais, políticas econômicas e públicas, aspectos interconectados pela globalização. Envolve sempre questões de gênero também, pois são normalmente as mulheres as que cuidam dos idosos da família, como esposas, filhas, noras ou funcionárias domésticas.

Esta construção cultural do cuidado tem levado a uma naturalização sobre quem cuida, impondo à mulher ônus sociais, de renda e pessoais importantes, acentuando e perpetuando iniquidades sociais ao longo do tempo e espaço. Acrescenta-se à esta discussão o que San José (2016) constatou: um déficit de cuidados, pois o número de cuidadores é insuficiente para atender um número crescente de idosos dependentes.

São questões que a Gerontologia Social, como campo do conhecimento, precisa refletir e responder. Afinal, a abordagem do direito e da cultura dos direitos à proteção social da velhice como condição de “Cuidadania” é central ao campo gerontológico, ao entender que a população tem possibilidades ou capacidades que devem e podem ser desenvolvidas, como foi do surgimento do termo “Cuidadania”, que teve origem exatamente no dia 08/05/2004, quando da inauguração de um centro comunitário numa cidade da Espanha, uma placa comemorativa é descoberta e o resultado de anos de luta, resistência e vizinhança em relação a denúncia de especulação e outros, apoio às pessoas afetadas, concertos, bazares e atividades na praça e na rua, relações entre as pessoas do bairro, um projeto comum… na placa estava escrito:

No dia 8 de maio este centro comunitário foi inaugurado com o poder dos vizinhos e vizinhas do bairro de Pumarejo para uso e aproveitamento da Cuidadania”.

Assim, “Cuidadania” surge, não como um conceito que pertence a alguém ou movimento, mas sim uma ideia, um processo aberto, uma possível construção coletiva à espera de contribuições de diferentes áreas que recodifica nossa realidade diária e política em torno das necessidades de pessoas, que coloca no centro o cuidado da vida como responsabilidade social e coletiva (Junco, Orozco e Río, 2004).

Junto assinala que “Cuidadania é como uma maneira diferente de reconhecer as pessoas coletivamente, como uma plataforma distinta desde a qual podemos reivindicar direitos antigos e novos”. Explica que não se trata de cidadania, pois esta é construída sobre a clara demarcação de Fronteiras (e exclusão) que estabelecem quem está dentro e quem está fora. E nem todo mundo pode entrar, porque o sistema seria desmantelado. Mas, também, entrar significa assimilar a norma, desistir de todo potencial transgressor. Significa que os migrantes devem ser integrados, que gays e lésbicas têm que se casar. Para Junco, Orozco e Río, trata-se de um sistema excludente que apenas quer abrir caminhos para a domesticação (2004).

Portanto, o termo “Cuidadania” coloca a sustentabilidade da vida no centro do cuidado e subverte o conceito de cidadania. Assim, a Cuidadania, além de colocar a vida no centro do cuidado, descentraliza a ideia moderna de cidadania (sujeito de direitos e obrigações, autossuficiente, etc.), desmistificando-a, ao colocar em seu lugar a realidade da interdependência entre as pessoas e a vida e a necessidade de cuidar dela, da vida, e sustentá-la como um elemento para garantir a cidadania-cuidadania.

Como explicam Junco, Orozco e Río (2004):

O compromisso de substituir a lógica androcêntrica da acumulação pela lógica ecológica do cuidado e substituir o ideal perverso da autonomia pelo reconhecimento da interdependência social. A partir daí, seria, talvez, defender direitos antigos (revisados) e inventar novos, sem considerar as pessoas como receptores passivos, mas como “sujeitos responsáveis de uma sociedade não hierárquica que aposta em colocar a vida no centro.

Referências
Boff, L. Saber cuidar: ética do humano – compaixão pela terra. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
Côrte, B. O papel da comunicação na construção do nosso longeviver, 2013. São Paulo, SP: Revista Portal de Divulgação, 35. (Ano III, ag. 2013). Edição Comemorativa.
Gawande, A. Mortais – nós, a medicina e o que realmente importa no final. Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 2015.
Junco, C., Orozco; e Río: “Hacia un derecho universal de cuidadanía (sí, de cuidadanía)”, Mimeo, 2004. Disponível em: http://www.nodo50.org/caes/articulo.php?p=252&more=1&c=1. Acesso em 20 out 2018.
Lalive d’Épinay C,. Cavalli S.,  Le Quatrième âge ou la dernière étape de la vie. PPUR, Collection Le Savoir suisse. Lausanne, 2013. 
São José, J. What are we talking about when we talk about care? A conceptual review of the literature. Sociologia: Problemas e Práticas, n. 81, pp. 57-74, 2016.

Foto de Monstera Production/pexels.


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Beltrina Côrte

Jornalista, Especialização e Mestrado em Planejamento e Administração do Desenvolvimento Regional, Doutorado e Pós.doc em Ciências da Comunicação pela USP. Estudiosa do Envelhecimento e Longevidade desde 2000. É docente da PUC-SP. Coordena o grupo de pesquisa Longevidade, Envelhecimento e Comunicação, e é pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE), ambos da PUC-SP. CEO do Portal do Envelhecimento, Portal Edições e Espaço Longeviver. Integrou o banco de avaliadores do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – Basis/Inep/MEC até 2018. Integra a Rede Latinoamericana de Psicogerontologia (REDIP). E-mail: [email protected]

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Jornalista, Especialização e Mestrado em Planejamento e Administração do Desenvolvimento Regional, Doutorado e Pós.doc em Ciências da Comunicação pela USP. Estudiosa do Envelhecimento e Longevidade desde 2000. É docente da PUC-SP. Coordena o grupo de pesquisa Longevidade, Envelhecimento e Comunicação, e é pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE), ambos da PUC-SP. CEO do Portal do Envelhecimento, Portal Edições e Espaço Longeviver. Integrou o banco de avaliadores do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – Basis/Inep/MEC até 2018. Integra a Rede Latinoamericana de Psicogerontologia (REDIP). E-mail: [email protected]

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