Atenção! Velhos no Caminho de Santiago de Compostela – Parte VII

Atenção! Velhos no Caminho de Santiago de Compostela – Parte VII

Neste penúltimo relato do Caminho a Santiago, a emoção da chegada à Compostela.


Último trecho do Caminho Inglês, são 16 km entre Sigueiro e Santiago. A ideia é sair cedo para chegar antes do meio-dia, com tempo para assistir à missa do peregrino. Não dá certo, porque no café da manhã a gerente do hotel resolve passar todas as dicas do mundo sobre Santiago e, especialmente, Finisterre (em castelhano), o verdadeiro fim do caminho. É o canto da sereia.

Ainda no Brasil nos recomendaram visitar Fisterra (em galego). Em La Corunha, nossa primeira parada, a anfitriã fala sobre Fisterra. O motorista de táxi, em Hospital de Bruma, conta sua versão sobre o fim do mundo ou fim da terra, diz que os imigrantes espanhóis embarcavam em vários portos e os navios seguiam pela costa até aquele ponto, ali adentravam o mar e não se via mais sinais de terra. Angustiante.

Em Ordes, na pulperia, a dona toca no assunto, ir a Compostela e não conhecer Fisterra é como estar na Galícia e não comer pulpo (polvo).

Vamos a Fisterra? Bom, primeiro precisamos chegar a Santiago.

Por este Caminho passaram milhares de peregrinos, mas quem foi o primeiro inglês ou inglesa a passar por Sigueiro a caminho de Santiago, que justifique o título de Caminho Inglês? Depois de uma extensa pesquisa, em 2020, as entidades encontram um nome de consenso, Margery Kemp, que realiza o Caminho em 1417, e manda fazer um busto da inglesa que é colocado na ponte sobre o rio Tambre, na saída da cidade.

E o primeiro peregrino? Quando Pelayo (Pelágio ou Paio) encontra o túmulo do apóstolo e conta para o bispo Teodomiro, ele imediatamente leva a notícia para o rei Alfonso II, que manda construir uma igreja no local para onde o corpo é transladado. Em 872, Alfonso III visita Santiago e promete presentear o santo-apóstolo com o símbolo do reino, uma cruz de ouro com pedrarias, que manda confeccionar e entrega dois anos mais tarde, quando viaja acompanhado da rainha Jimena, mas já na condição de peregrinos. Portanto, Alfonso III e Jimena são os primeiros peregrinos, mas há controvérsias que ao santo pouco interessa. Depois da visita, o casal real concorda que a igreja não está à altura do santo, e manda construir uma maior, em 899. Está lançada a base para a catedral monumental da atualidade.

Em 1214, São Francisco de Assis realiza o Caminho, tornando-o mais conhecido. Depois disso, especialmente durante a Idade Média, os galegos acreditam que o peregrino é um enviado do céu, ou seja, que há santos e santas pelo Caminho, tratá-los bem pode ser um passaporte para o Reino de Deus. Nesse período, Cristo passa a ser visto como peregrino, e é retratado por muitos artistas com o surrão e a concha da vieira. A hospitalidade cresce em forma de hospitais dedicados aos peregrinos para curar suas feridas. Se o resto do mundo vai mal, os reinos pelo Caminho florescem com as peregrinações.

Com a Reforma Protestante, as guerras religiosas, as críticas sobre a exploração da fé, Lutero, Erasmo de Roterdã, intelectuais pegando pesado no que chamam de ópio do povo, franceses, alemãs e ingleses viram a cara para Santiago. A ideia não é apenas esvaziar o Caminho, é destruí-lo, para isso querem violar o suposto corpo do apóstolo, um embuste, acabar definitivamente com ele, pois tudo não passa de uma grande farsa da Igreja.

Hordas de piratas, liderados por Francis Drake, tentam invadir a Espanha pelos portos de Ferrol e La Corunha para alcançar Compostela. Quem detém a malta é uma mulher, María Pita, que se faz passar por homem para comandar as tropas de resistência. Temendo que os piratas possam chegar a Santiago, o arcebispo Juan de Sanclemente, em 1589, ordena a ocultação do corpo do apóstolo. A tarefa é feita com tamanho esmero que por centenas de anos ninguém sabe o paradeiro do corpo. Em uma das muitas reformas, desta vez do prédio, o corpo reaparece, em 1879, e a notícia se espalha, atraindo peregrinos de todos os cantos. Porém, a guerra civil espanhola, as grandes guerras e a guerra fria fazem com que o Caminho caia no esquecimento novamente.

Nos anos 50 e 60 do século passado surgem as primeiras associações do Caminho de Santiago com o objetivo de revitalizá-lo. Não é tarefa fácil. Em 1982, o papa João Paulo II faz a peregrinação e termina com um discurso no altar mor da catedral, chamando a atenção do mundo para a rota jacobeia. Na virada do século, muitas rotas do Caminho se encontram recuperadas, à espera dos peregrinos que, aos poucos, voltam a frequentá-las, recuperando aldeias, vilas, localidades que simplesmente haviam desaparecido do mapa.

Com a globalização, com os avanços tecnológicos, o apelo à peregrinação aumenta como um questionamento aos valores humanos e universais. É em busca do humano que muita gente renuncia às comodidades modernas para viajar com as próprias pernas (depois de tomar um avião, trem, ônibus ou carro para chegar ao ponto de partida). Uma viagem de conhecimento interior, ecumênica acima de tudo, aberta à amizade, à solidariedade, à compreensão. Um mergulho profundo na natureza, um passeio pela história e pela cultura, um resgate da vida, um banho de beleza e prazer.

A chegada a Santiago de Compostela

Estamos na estrada. Caminhamos rápido para alcançar Santiago a tempo de assistir à missa do peregrino, mas não conseguimos. Porém, a entrada na cidade é triunfal. Quando surge o primeiro contêiner de lixo com a inscrição Conselho de Santiago de Compostela é difícil segurar a emoção. Chegamos. Mas ainda estamos longe de avistar a torre da igreja, de poder contemplá-la e fotografá-la. Mas estamos quase lá.

Em uma paróquia de rua, um padre saúda quem passa e convida a entrar para carimbar a Credencial, são dois carimbos por dia e, na ânsia de chegar, esquecemos de pegá-los. Avistamos um cemitério com bancos de concreto na entrada e deixamos o caminho para nos sentar e descansar. Uma senhora pensa que nos desviamos da rota e corre para nos ajudar: é por lá! Quando entende nossas necessidades fica constrangida, mas é a ânsia de ajudar o peregrino que o morador carrega quase como obrigação.

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Alcançamos a cidade velha, o centro histórico, e avistamos finalmente a torre da igreja. As setas desaparecem ao mesmo tempo que surgem, aos milhares, à venda, nas lojinhas lotadas de quinquilharias sobre o Caminho. Estamos em Santiago, no campo das estrelas. Ruas cheias, praça lotada, jovens protestam: Israel Genocida! Somos todos Palestina! Repórteres e polícia, cidade viva, efervescente, gente de todo o mundo, Babel colorida, feliz, artistas de rua, trem da alegria. Invasão que não ameaça os restos mortais do santo, guardados em uma urna de prata e exposta na catedral.

Nos sentamos com as mochilas nas costas, em bancos nas laterais da grande praça, absortos com a movimentação, com a quantidade absurda de peregrinos, a maioria aos risos, matracas, outros às lágrimas, tumulares, armados com celulares a fotografar, a produzir lives, a compartilhar com o mundo sua chegada. Em um canto da praça há um ruído estranho, dezenas de jovens, estudantes, gritam palavras de ordem, chamam a atenção dos peregrinos para a causa palestina. Ao nos aproximar para fotografar, percebemos a presença de jornalistas, cinegrafistas e, então, entendemos a forte presença do aparato policial. Um dos prédios da praça está literalmente tomado pelos jovens que protestam. Pedem o fim das agressões israelenses contra o povo palestino. Muitos usam máscaras para esconder suas identidades. Em Jerusalém, Tiago foi vítima da intolerância do povo judeu, decapitado. Às centenas, crianças palestinas são despedaçadas pelas bombas americanas repassadas a Israel, ancorado na falsa premissa que luta para exterminar o Hamas. E o Hamas, para Israel, é o povo palestino. Por isso, pichações e faixas nos acompanharam por todo o Caminho: Stop Genocídio!

Pegamos a Compostela no Centro Internacional de Acolhimento ao Peregrino e posamos para foto no Km 0. O certificado é todo em latim e nele o apóstolo Tiago é identificado pelo nome de Iacobi. Encontramos muitas grafias para o mesmo nome e suas derivações, porém, estão todas certas, pois é o que menos importa, porque estamos todos falando do mesmo santo, Tiago Maior, o primeiro apóstolo de Jesus.

Estacionamos as mochilas nos Correios e, finalmente, entramos na catedral (com elas nas costas não se pode entrar). É imensa. A mistura de estilos, românico, gótico, renascentista, barroco, consequência das muitas intervenções ao longo do tempo, faz dela uma colagem sem precedentes. São muitas as portas e fachadas, os pórticos, obras de arte.

As catedrais são, durante a maior parte do tempo, museus, só voltam a ser igrejas quando há missa. E são absolutamente incríveis. Abobadas, vitrais, rosáceas, esculturas, pinturas, cada detalhe merece nossa atenção, horas de contemplação, oportunidade ideal para conversar com Deus. Depois, de coração leve e pernas doloridas, cantarolar: é pau, é pedra, é o fim do Caminho… Será? E Fisterra? E Muxía? Não acabou nada! O peregrino, picado pelo Caminho, quer continuar, seguir até o fim do mundo, como fez o santo-apóstolo. E já nos decidimos: vamos até Fisterra!  Aguarde o último relato sobre o Caminho!

Fotos: arquivo pessoal


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Mário Lucena

Jornalista, bacharel em Psicologia e editor da Portal Edições, editora do Portal do Envelhecimento. Conheça os livros editados por Mário Lucena.

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