Joana é apenas uma mulher, entre tantas outras mulheres idosas, que sofreu com o machismo e a ignorância de seus companheiros e hoje sofre com o idadismo.
“Amarás a teu próximo como a ti mesmo”.
[Mateus 22:37–39]
Se não amas a ti mesmo como amarás a teu próximo?
Joana tem mais de noventa anos, é viúva há nove. Aos seis anos de idade foi afastada da família, na roça, e encaminhada para a casa de pessoa conhecida, na cidade, para estudar, pois era considerada uma menina inteligente. A sua vida, no entanto, não foi um conto de princesa. Foi mais parecida com a da gata borralheira, mas que nunca virou princesa, mesmo que, tardiamente, encontrou alguém que imaginaria seu príncipe. Não era príncipe, era mais parecido com um sapo, apesar de ser moço bonito.
CONFIRA TAMBÉM:
A vida de Joana era muito trabalho e pouca diversão. A diversão vinha por conta de sua alegria e maneira muito pessoal de ver as coisas, graças a sua sensibilidade. Conseguia ser uma pessoa alegre e levava a vida ajudando os outros. Ao se casar, aos vinte e seis anos, apenas mudou de patrão: do trabalho para os outros ao trabalho para seu marido e seus filhos que vinham um após o outro, até inteirarem nove. O primeiro já estava em seu ventre no dia das bodas (sic).
Momentos seus? Não teve. Tempo para repouso? Também não teve. Com nove filhos e uma vida de poucas posses, a lida doméstica era pesada. Ela acumulava funções: faxineira, lavadeira, cozinheira, costureira, enfermeira, cuidadora de crianças e professora. Mulher? Só na cama, para agradar ao marido. Gostava de cantar, o que era possível quando estava no tanque lavando roupas.
Sua pequena revolução veio um dia, já bem tarde, quando descobriu que o marido pulava a cerca, transava fora de casa, recebia e dava prazeres a outras damas. Não foi uma grande revolução. Continuava lavando as cuecas dele, colocando o almoço e o jantar à mesa na hora certa e mantinha o bom humor com os filhos e as poucas amigas que a visitava. Conseguiu, no entanto, colocá-lo para fora de seu quarto, não mais fazia o café da manhã, saía da cama quando queria e iniciou uma trajetória diferente na vida. Tornou-se atriz em uma trupe de teatro para pessoas idosas. Voltou a cantar. No teatro, era sempre ela que puxava as canções.
Joana era excelente contadora de histórias e causos. Quando encontrava uma plateia boa de ouvidos, sua vizinhança, seus filhos e os amigos de seus filhos, tecia toda a narrativa de sua vida maravilhosa, cheia de aventuras, rodeada de pessoas queridas que sempre a amaram muito. Era a dona do pedaço. Sempre fora. Todos a queriam por perto, todos a solicitavam por ser generosa, alegre e inteligente, apesar de sempre ter vivido em casas alheias e trabalhado nessas casas alheias. Mas quando se casou, passou a ter sua própria casa, e filhos maravilhosos.
Quando ficou viúva assumiu, de fato, o controle de sua vida. Agora tinha sua conta no banco, seu cartão de compras e sua senha, pegava o ônibus sozinha e ia para o teatro. Com a trupe encenava nas creches, nos hospitais, nos presídios e até no teatro. O grupo de atores e atrizes, idosos e idosas, chegaram a encenar em um teatro da capital. Era muita felicidade para uma pessoa com mais de oitenta anos.
Era, foi bom enquanto durou. O teatro, do SESC, parou de trabalhar com atores idosos. Economia de fundos, foi a desculpa. Os atores e atrizes envelheceram e foram perdendo suas autonomias pouco a pouco. E Joana estava surda, as artroses lhe doíam as juntas e não a deixaram mais sair sozinha de casa, a solidão tomou conta de vez. Com a pandemia, tudo piorou. Não escutava ao telefone e não podia sair de casa nem receber os abraços dos filhos, que se revezavam nos cuidados.
Veio a demência em ritmo crescente. A história de sua vida, a que ela contava a todos, eram narrativas construídas para parecer ter vivido uma vida de aventuras. Com a demência só se lembrava da vida real, a cheia de desaforos, de trabalhos obrigatórios, de intrigas dos colegas, de sofrimento. Por não ter pai nem mãe, todos achavam que ela devia obrigações pelo prato de comida, pela cama, pelos trapos de roupa. Por ser inteligente, sorte dela, sabia ler e escrever, aprendeu rápido a fazer as coisas, a costurar, a aplicar injeções nos doentes o que lhe deu muita utilidade na vida.
Joana, mais de noventa anos, noventa e seis para ser exato, sente-se mais sozinha que nunca. Quase não escuta, a memória fugiu, tem muito medo de tudo, não é mais dona de sua vida. Suas histórias, repetidas às centenas, se misturam entre o real e o inventado. Ainda acredita, no entanto, que aplica injeções nas pessoas e que plantou todas as árvores de sua vizinhança. E se sua carteira, na bolsa sempre ao lado, não tem dinheiro, entra em pânico. Pelo menos uma nota de cinquenta precisa estar no fundo da bolsa. Afinal de contas, pode chegar alguma visita e ela não tem nada em casa para oferecer.
Como muitas mulheres de sua geração, Joana também acreditou que bastava dar amor, bastava a entrega para receber de volta. Amor próprio? Que é isso? Como desenvolver amor próprio se nunca recebeu amor? Como amar ao próximo sem amar a si próprio? Aprende-se, a duras penas, a diferença entre cuidado e carinho. Ela sempre cuidou. Agora recebe cuidados. Recebe amor?
Joana é apenas uma entre milhares de mulheres idosas que sofreram com o machismo e a ignorância de seus companheiros e hoje sofre com o idadismo até mesmo dos mais chegados.
Às Joanas nossa atenção, carinho e acolhimento.
Foto destaque de Ceci DGondeles/pexels