Atenção! Velhos no Caminho de Santiago de Compostela – Parte VIII, última!

Atenção! Velhos no Caminho de Santiago de Compostela – Parte VIII, última!

Ir a Fisterra é fazer um novo mergulho na história, nos mitos, na sua jornada pessoal. Bom caminho!


Estamos em Santiago de Compostela, no marco zero do Caminho, em uma cidade que trabalha para conquistar o título de amiga da pessoa idosa (Age-Friendly), implementando políticas públicas como o serviço municipal de ajuda no lar; o programa de aproximação local em colaboração com a Cruz Vermelha; tele assistência; envelhecimento ativo vinculado às novas tecnologias, esporte, ginástica, memória, música e arteterapia; banco do tempo; Conselho Municipal de Serviços Sociais; plano maior de segurança desenvolvido pela Polícia Nacional; programa de animação e saídas de ócio e culturais, articulado em torno da rede de centros socioculturais; programa de eliminação de barreiras arquitetônicas para tornar a cidade mais acessível (contemplado com o prêmio Reina Sofia) etc.

Santiago, capital da Galícia, mostra-se preocupada e comprometida com sua população idosa. São 23 mil habitantes com idade acima de 65 anos. Um programa que não aparece acima, promovido pela Associação Galega de Ajuda a Pessoas com Demência Tipo Alzheimer, tem o título de Adestramento Mental e Corpo Ativo, que vão além de cursos desenvolvidos em centros socioculturais urbanos e rurais. A ideia é atuar de forma preventiva, impulsionando convivências, fomentando relações sociais, tirando idosos do isolamento e detectando sintomas de deterioramento cognitivo por meio de três pilares: físico, mental e social, fortalecendo o vínculo entre os participantes. Ao se detectar dificuldades, alguma deterioração cognitiva, a atenção por profissionais especializados é requerida o mais breve possível.

O programa de Adestramento Mental busca incentivar a agilidade mental das pessoas idosas, trabalhando a memória de forma dinâmica e distendida, se valendo da neuropsicologia de associação. Para manter a pessoa idosa ativa mentalmente, apela-se para a intergeracionalidade e a aplicativos tecnológicos de exercícios mentais e de cálculo. Também são organizadas excursões para fortalecer os vínculos grupais e, para completar, o que tem feito muito sucesso, exercícios de imersão em realidade virtual, utilizando óculos especiais para executar atividades, aumentando o grau de dificuldade segundo a evolução e a condição física de cada usuário.

Usando óculos virtual, uma pessoa idosa pode percorrer o Caminho de Santiago na comodidade do sofá, sem correr o risco de cair e se machucar, mas sem direito à Compostela, o certificado oferecido a quem percorre mais de 100 km a pé, em um dos caminhos oficiais.

Quem parte de La Corunha, por exemplo, ao chegar em Santiago terá percorrido pouco mais de 70 km, percurso insuficiente para quem deseja a Compostela, o jeito é seguir andando, ir mais além (ultreia). Mas para onde? Fisterra e Muxía, é um combo. Oficialmente, existem três marcos zero e, ao percorrê-los, no lugar de uma Compostela, o peregrino alcança três, as outras também têm nome próprio: Muxiana e Fisterrana. Ultreia, siga mais além, você não vai se arrepender.

Mas o que há nesses lugares que justifique estender a viagem?

Não pergunte, vá. Será um novo mergulho na história, nos mitos, na sua jornada pessoal. O apóstolo peregrino, Tiago Maior, anda de Iria Flavia até o fim do mundo (Fisterra e Muxía). Chegando lá, sente-se desanimado. Apesar de haver conquistado muitos seguidores na Galícia, em uma aldeia o povo vira a cara para sua pregação, são animistas, veneram o sol, as estrelas, as pedras, as águas, as árvores. Desanimado, o apóstolo chora, e são tantas as lágrimas que a aldeia inteira afunda e seus habitantes desaparecem.

O apóstolo sobe o Monte Facho e encontra uma formação de pedra, um altar pagão, Ara Solis, bem diante do mais belo pôr do sol, a quem eles adoram, seu Deus maior. Ali acompanham a morte do sol, diariamente, naquele que acreditam ser o portão pelo qual os mortos se despedem da vida. Tiago, enfurecido, destrói o altar, esmaga as pedras como se fossem cascas de ovos. Desconsolado, contempla a vastidão do mar. Não há mais lugar para onde ir, e no último desses lugares falha como pregador. O Mar Tenebroso, como era conhecido o Atlântico, de repente se acalma. Surge no horizonte uma embarcação de pedra. Aproxima-se mais e mais dos penhascos, da Costa da Morte. A passageira divina flutua junto com a barca de pedra, desembarca e se coloca em segurança antes que o mar volte a se encher de fúria e cuspa a embarcação que se divide em três.

Tiago se prosta diante de sua tia, a mãe de Jesus, a Virgem Maria. Virgem da Barca de Pedra, como se torna conhecida na região. Ela se aproxima do apóstolo, que deita a cabeça no seu colo e ouve seus conselhos. A Virgem dá a ele a certeza de que sua missão de peregrino está cumprida. É hora de retornar a Terra Santa. Tiago é transportado num passe de mágica para Jerusalém, prega, torna-se bispo da Igreja Primitiva, mas acaba perdendo a cabeça, decapitado, porque o Herodes da vez entende que pregar na cruz dá muito trabalho e significa mais munição para os cristãos que depois da morte de Cristo passaram a andar com cruzes penduradas no pescoço. Os discípulos do apóstolo resgatam seu corpo, sem esquecer a cabeça, e se lançam com ele ao mar, em outra jangada de pedra, com destino a Galícia, a terra escolhida pelo apóstolo para evangelizar.

Para quem duvida, em Muxía se encontram os destroços do barco da Virgem, três grandes pedras, a laje maior, triangular, é a Pedra de Abalar, assoalho do barco, que tem poderes especiais. Abalando ou não, se uma pessoa se coloca sobre ela, há consequências. A pedra cura, salva, prende, solta, mata, é capaz de tudo, perde e ganha batalhas. A vela do barco é a Pedra dos Cadrís, relaciona-se com as enfermidades do corpo e com a fertilidade. Para receber a graça, é preciso se colocar por baixo dela, seu formato facilita a ação. O peregrino, se for magro, pode passar por baixo da pedra, renasce. A última peça do barco é a Pedra do Timón, esta orienta a vida, como orientou o próprio barco da Virgem. Já o outro barco, o do resgate, depois que os seguidores desembarcam com o corpo, parte-se em milhares de fragmentos para formar a fascinante montanha conhecida como Pedras Santas, um gigantesco milladoiro.

Como se não bastasse tantas pedras, chama a atenção uma escultura de pedra, raiada, colocada diante do santuário da Virgem, para relembrar o maior desastre ambiental ocorrido na Espanha, em 2002, o naufrágio do petroleiro Prestige, na Costa da Morte, que espalha 77.000 toneladas de petróleo, atingindo também a França, poluindo um total de 2.000 km de praia. Centenas de barcos e navios afundaram na região, mas os barcos de pedras, guiados pelos anjos, conseguem chegar ilesos, só depois se espatifam para formar um quebra-mar natural e extraordinário.     

Como Santiago esteve peregrinando por Muxía e Fisterra (em galego), aqui temos mais dois marcos zero. Você escolhe se quer visitá-los, mas lembre-se, é um combo, não faz sentido ir a um e deixar de visitar o outro, totalizando 120 km. Porém, como não somos colecionadores de Compostelas, fizemos a viagem de ônibus.  

O Caminho para Fisterra e Muxía começa em Santiago de Compostela e não o contrário, como os demais. Por isso se diz que o fim não é Santiago, mas Fisterra. O peregrino é levado a conhecer o Santo Cristo de Fisterra e o Santuário da Virgem da Barca, em Muxía, mas o encantamento vem das paisagens, da vastidão do mar visto do alto da montanha de Pedras Santas, da cultura, da história e dos mitos.

Como não fizemos o Caminho para Fisterra a pé, procurei mais detalhes no blog do peregrino Oswaldo Buzzo, ele nos conta detalhadamente, ilustrando com belas fotos, cada passo do Caminho. Vale a pena. Logo no primeiro trecho ele encontra um italiano de 83 anos caminhando com a filha e um padre brasileiro. Tem uma conversa agradável com os três e se despede certo de que não os verá mais. Na última etapa do Caminho, já chegando a Muxía, quem ele vê? O italiano de 83 anos. Lição do Caminho, não seja idadista. Um fato que confirma o que também observamos ocorre quando ele se encontra em dúvida sobre a direção a seguir, pede informação a um idoso que não se limita a indicar o caminho, segue ao lado dele até o colocar de volta na rota jacobeia.

O Caminho a pé, como mostra Oswaldo, é mil vezes mais rico do que uma viagem de carro, mesmo passando pelos mesmos lugares (o que é quase inviável). São dezenas de pequenas aldeias com poucos moradores, literalmente meia dúzia de casas, mas com ricas histórias.

Não reservamos hospedagem em Santiago de Compostela, mas em Ames, na região metropolitana, no Caminho para Fisterra. Quem sai de Santiago, ali tem sua primeira parada, em Negreira. O destaque é uma aldeia romana com menos de 50 habitantes. Fica do outro lado do rio Tambre e é impressionante como a ponte está conservada, ela e todo o mecanismo montado para gerar energia, um moinho de pedra. A ponte de cinco arcos, praticamente indestrutível, faz parte do mito de Santiago, pois aqui as pedras se manifestaram a favor dos cristãos. Vamos relembrar:

Os seguidores do apóstolo chegaram pelo mar em uma barca de pedra e estavam trazendo o corpo, seguindo a via láctea, a espera de um sinal para enterrá-lo, em um campo santo, estelar. Mas eis que uma guarnição romana descobre a movimentação e passa a persegui-los. Pois bem, chegando a Ponte Maceira, cruzam na frente e os romanos, quando se encontram sobre a ponte, ela desmorona e os soldados são arrastados pelas águas. A ponte ressurge depois como se nada tivesse acontecido. O rio, normalmente calmo, nesse dia se enche de fúria e arrasta tudo. Uns chamam de mito, outros de milagre, mas o santo-apóstolo não liga para o que falam.

Conta mais a beleza do local, a igreja de San Blas, a vista fantástica. Fora as pedras da igreja, da ponte e do moinho, herança romana, os 50 privilegiados moradores da aldeia não querem saber de turistas/peregrinos, não oferecem nada, ali não encontramos uma lanchonete, uma pensão, uma bica d’água sequer. É olhar a ponte, a igreja, as construções em pedra e seguir em frente.

Na etapa seguinte, de Negreira a Olveiroa, 33 km, vive-se todas as experiências oferecidas pelo Caminho, como descreve Oswaldo, minha sugestão é que descanse e, no dia seguinte, faça uma pausa, deixe o Caminho de lado e vá conhecer Ézaro, a fascinante queda d’água e todo o complexo em torno dela, única na Europa que se precipita direto no mar.

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Extasiado, siga até Carnota, se aloje e vá passear, conhecer a cidade, os hórreos gigantes, que estão entre os maiores da Espanha, comer na região do porto uma paella de marisco acompanhado de um albariño, vinho espetacular da região. No dia seguinte, conheça Muros, hospede-se, ande pelas ruas do centro histórico que tem nomes como Saúde, Esperança, Paciência etc. Você estará diante de um porto de pesca de mariscos. Não pense duas vezes em experimentá-los, fresquinho, em um dos restaurantes na entrada da cidade. Renovado, no dia seguinte volte cedo para Olveiroa e retome o Caminho.

A maioria, depois de andar seis quilômetros e encontrar uma bifurcação, opta por seguir primeiro para Muxía. Lá, diante da Costa da Morte, da visão impressionante dos penhascos, da capela da Virgem da Barca, das Pedras Santas e de todas as pedras milagrosas, se ainda não fez, pegue uma bem pequena, como faz todo o caminhante, para depositar em um altar de pedras, um milladoiro, que surgirá pelo Caminho. Garanta sua Muxiana e descanse, pois no dia seguinte tem mais uma dose de beleza e emoção.

O Caminho para Fisterra é pela costa, faça sem pressa, tem o dia todo, namore as praias, vale cada passo. Quando, por fim, alcançar o Cabo Fisterra, pule a mureta, vá até a bota do peregrino, passe a mão, agradeça, sente-se diante do mar e relaxe, pois como um bom  celta, se sentirá diante de muitos deuses, que na verdade é um só, se puder esperar o pôr do sol, garanta um bom lugar para assistir ao espetáculo, é único. Visite o farol, o Cristo, faça foto no marco zero, pegue sua Fisterrana e retorne de ônibus para Santiago. Agora, sim, fim da jornada… Será?

Esqueça, o Caminho seguirá com você, pois peregrino uma vez, peregrino sempre. No filme The Way você tem isso bem claro, assista. É possível que voltemos a fazer o Caminho a partir de outra rota? Sem dúvida. Talvez depois de fazermos as levadas da Madeira, há muito no nosso radar, possamos emendar com o Caminho Português pela Costa ou o Caminho Francês a partir de Sarria. O Caminho, a cada ano, bate recordes de peregrinos. Isso concorre para que em poucos anos a Espanha supere a França em número de turistas, até 2040 serão 110 milhões por ano, enquanto a França deve estacionar na faixa de 100 milhões.

O que observamos na Galícia é uma grande movimentação para melhorar o transporte, levando o trem de alta velocidade para mais cidades, que se encontram restauradas, cada vez mais acessíveis, lindas. No filme, você verá Pamplona, Leon e Burgos, passamos por todas, e mais, Vigo, San Sebastian e Bilbao, sem contar cidades históricas como Toledo, Ávila, Segóvia, Pontevedra etc. Todas em perfeito estado, restauradas, seguras, e algumas entre as melhores do mundo para se viver depois da aposentadoria.

Focamos apenas cidades do Caminho, mas na outra ponta, Catalunha e Andaluzia, as cidades são tão belas e bem preservadas quanto San Sebastian no país basco e La Corunha na Galícia. Cidades como Málaga, Barcelona, Valência e Alicante não precisam de apresentação. E na capital do país, Madri, convivemos com pessoas idosas nas ruas e praças, participando ativamente da vida do país.

Pós-escrito: Beltrina colocou sua pedrinha em um milladoiro, pequeno altar para receber pedras, no pátio do Centro Internacional de Acolhida ao Peregrino. Depois disso, seguimos para casa. No ponto de táxi, não aparece nenhum. Cansados, pergunto as horas, Beltrina descobre que está sem o relógio, que se desprendeu da pulseira. Dá de ombros, precisa mesmo comprar um novo. Saio pela Rua de São Francisco, olhando para o chão, mas não o encontro. Nosso anfitrião manda, via mensagem, o número de uma central de táxi. Chamamos um. Demora 15 minutos. Nesse tempo, sigo procurando o relógio na sarjeta e nas calçadas. Quando o táxi chega, uma mulher, enfermeira, pede pelo amor de Deus uma carona, está atrasada para o trabalho. Dividimos o táxi, ela se senta na frente e vamos os três atrás. Quando Amélia vai colocar o cinto, surge algo em sua mão. Acho que quebrei o cinto. Beltrina olha para a mão de Amélia e exclama: é o meu relógio! Como? Nada faz sentido. Tentamos de todas as formas justificar racionalmente as circunstâncias do relógio ter aparecido na mão de Amélia dentro do táxi, mas Beltrina está com uma blusa de manga comprida e nunca usa o relógio no braço esquerdo, tanto que a pulseira sem o relógio continua no direito, enquanto Amélia se encontra do seu lado esquerdo. A calça de Beltrina não tem bolsos. Nada faz sentido, nada tem lógica. Só nos resta pensar na pedrinha por ela ofertada no milladoiro, San Pelayo de Buscas, Santiago…

Conheça toda a trajetória do Caminho Inglês:
Bela é uma cidade velha – 19/06/24
Parte I – Publicada em 20/06/24
Parte II – Publicada em 21/06/24
Parte III – Publicada em 27/06/24
Parte IV – Publicada em 02/07/24
Parte V – Publicada em 14/07/24
Parte VI – Publicada em 28/07/24
Parte VII – Publicada em 11/08/24
Parte VIII, última! – Publicada em 18/08/24

Fotos: arquivo Portal do Envelhecimento


Mário Lucena

Jornalista, bacharel em Psicologia e editor da Portal Edições, editora do Portal do Envelhecimento. Conheça os livros editados por Mário Lucena.

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