Angeliena: enquanto sonhamos, a morte espera

Vamos viajar com Angeliena? Quem sabe. Diante de quem ousa sonhar, a morte pode perfeitamente esperar mais um pouquinho.    


Pronuncia-se Angelina, pois se a escrita fosse como aqui, Angelina, o sul-africano certamente iria pronunciar algo bem distinto. Aliás, que língua é falada nessa terra linda e colorida, sabe? São 11 línguas oficiais, sendo o zulu a mais falada. O inglês é a quarta língua, e é nela que este filme é falado, mas com um acento muito especial, com legendas em português e se encontra na Netflix.

O enredo é simples: Angeliena, 51 anos, é diagnosticada com uma doença neurológica rara, progressiva, sem cura, e ela pensa: em vez de ficar internada esperando a morte chegar, vou realizar meu sonho, viajar pelo mundo! Você logo deduz: vou pegar carona, viajar com Angeliena nesse filme incrível! Calma, espere e verá…

O sul-africano é um povo incrível, você sentirá esse gostinho no filme. Com tantas línguas oficiais, a maioria das pessoas domina pelo menos dois idiomas e se vira com outros tantos, um pouco de inglês, francês e holandês é de lei, afinal, é a mistura dessas línguas, e um pouco de cada uma das outras 10, que resulta no africâner, a terceira língua mais falada. Tiveram que inventá-la para que todos pudessem, de alguma forma, se comunicar entre si e com os colonizadores.

Mas a comunicação maior vem da alegria, da dança, da música que conhecemos por ocasião da copa do mundo, da chacrinha das vuvuzelas, lembra? O português também está presente na vida dessa gente colorida, pois tem uma colônia imensa da terrinha trabalhando no comércio. E o grande segredo do sorriso estampado no rosto é a filosofia do Hakuna Matata, emprestada da língua suaíli, que significa sem problema! Você ouvirá o hakuna, no filme, em vários contextos.

Terra coloridíssima! A começar pela bandeira, seis cores: preta, amarela, verde, branca, vermelha e azul! O filme vai refletir isso de maneira natural, mas você pensará que é tudo produção, feita para o cinema. Não, as cores são um colírio para os olhos, para a alma, para o espírito hakuna. Quando podem, pintam tudo com cores vibrantes. Assim, dão um up no astral. Nesse sentido, e só nesse sentido, pode chamar o sul-africano de gente de cor.

O visual é de cair o queixo. O filme vale pelo colorido. Tina (Kuli Roberts), por exemplo, tem um cabelo lindo, mas prefere cobrir a cabeça com sua coleção de perucas coloridas: roxa, amarela, vermelha, verde etc. E as camisas do dr. Alasa (Thapelo Mokoena)? Tirando a primeira, preta e branca, troca a segunda pele cada vez que aparece em cena e é chocante. Todos abusam das cores e estampas, porque é África, não porque é filme.

Esse colorido está em toda a cidade? Não. Existem favelas muito pobres, favelas de lata, sem pintura alguma, a não ser os grafites aqui e acolá. Mas quer ver bairros populares e vila de pescadores como quem admira um quadro? Bo-Kaap e St. James são exemplos incríveis. Mas vai de cada morador e, neste filme, a casa de Angeliena é de doer a vista.

A do Capitão, seu mentor, uma casa de lata tipicamente sul-africana, tem um charme e tanto no seu azulão. Ah, o Capitão, mr. Majaba (Tshamono Sebe), é a cara do Martinho da Vila, o mesmo sorriso, apaixonado por Mandela, quer inclusive levar Angeliena à Ilha de Robben, prisão que atualmente funciona como museu. É um mentor a altura da nossa heroína, porém, morre antes, mas deixa mensagens em forma de pílulas bem interessantes, exemplo: Tudo parece impossível até você conseguir realizar.

Vamos ao filme, ao argumento, a tudo o que rola, porque sem spoiler não tem graça. Angeliena toma conta, há 20 anos, do estacionamento de um hospital, em Ocean View. É como se ela tivesse recebido uma concessão do fundador da instituição para explorar o lugar do seu jeito a troco de gorjetas. E o seu jeito é o mais encantador possível, tanto que é amada por todos, funcionários, usuários etc. O espaço – comercialmente falando – é uma bagunça legal, o caos perfeito, pois Angeliena ama as plantas e os pássaros, que comem na sua mão, e pouco se preocupa em adequá-lo para ficar com a cara de um estacionamento como conhecemos (colunas, cimentos e faixas pretas e amarelas).

O herdeiro, que assume o hospital com a morte do pai, não deseja manter o estacionamento daquele jeito. Na visão dele, de empresário, não faz sentido deixar de explorar comercialmente e de forma profissional o local, colocando cancela, automatizando o pagamento e, consequentemente, expulsando Angeliena. Como bom vilão, promete passar o trator por cima de tudo e cimentar geral. O problema é que o povo, inclusive sua noiva, Lily (Nicole Amy Madell), ama a alegre, festeira, amável e carinhosa Angeliena. É nesse contexto que ela recebe o diagnóstico da doença degenerativa e decide viajar.

Viajar? Mas com que dinheiro? Com os rand, que economiza em 20 anos de trabalho (moedas e cédulas com imagens de animais, destaque para os big five: leão, elefante, rinoceronte, búfalo e leopardo, e o mais big de todos os five, Mandela e não Michel Jackson, graças a Deus). Guarda toda a dinheirama dentro de enormes matrioskas (bonecas russas), com as quais vai às compras como se fossem carteiras recheadas.

O filme é tão impressionante que a sensação é que estamos assistindo a um documentário, a uma história de vida real, e esse sentimento não passa, porque a atriz na pela de Angeliena (Euodia Samson) é absolutamente fantástica na sua jornada.

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Ocean View, onde o filme é ambientado, está situada em uma das mais bonitas e, portanto, mais visitadas cidades da África do Sul e do mundo, Cape Town (Cidade do Cabo). E que cabo é esse? Você sabe desde os primeiros anos de escola, é o famoso Cabo da Boa Esperança, ake (as know as – também conhecido como), Cabo das Tormentas. Brincadeiras com as línguas a parte, hakuna matata, essa fascinante cidade tem sightseeing de encher os olhos, mas no filme não são tão explorados, porém, as cores das águas, os cardumes de golfinhos, só vendo para crer.

Se você faz um passeio pela Chapman´s Peak Drive, ao longo do litoral do Cabo, impossível não parar para observar as montanhas de leões marinhos. Mas a montanha que encanta os turistas é a Montanha da Mesa, a subida no bondinho circular (cableway) é sensacional e, estando lá, a vista da cidade é simplesmente bárbara; Victoria & Alfred Waterfront é um lugar dos sonhos, é de onde partem os barcos para a Robben Island, tem shopping, marina, leões marinhos espichados ao sol pelas calçadas, museus, estádio, são muitas atrações concentradas nesse bairro com ar da californiana São Francisco; Boulders Bay, um santuário de pinguins, no qual, por meio de passarelas suspensas, você caminha entre eles e pode ouvir o seu canto é redundante dizer, mas é encantador; o local do encontro dos oceanos Atlântico e Índico, o famoso Good Hope Cape, é um dos mais procurados e não faltam lendas como a do gigante Adamastor; santuários de macacos que precisam ser constantemente vigiados para se manterem distantes dos turistas, especialmente aquele que desrespeitam o aviso de não ofereça comida, pois eles saem do controle e levam tudo, bolsas, óculos, chaves etc., são atrações a parte; o colorido da natureza você encontra no Jardim Botânico; da culinária, no Old Biscuit Mill; o da arte, no Zeitz MOCAA (Museu de Arte Contemporânea da África)…

Bom, a proposta é viajar o mundo com Angeliena e não deixamos a África do Sul, sequer saímos da Cidade do Cabo. Paciência. Essa é uma das lições do filme, paciência. Mas vamos viajar ou não? A primeira cena do filme é Angeliena entrando em uma agência para adquirir uma passagem promocional para dar a volta ao mundo. Compra, mas esquece de um detalhe, não tem passaporte. Para cortar a fila do passaporte, apela para a comunidade rastafari e um Bob Marley (olha o colorido aí) a ajuda. Depois tem a batalha dos vistos (são muitos países a visitar). As barreiras só aumentam. Suas aliadas, Tina, Lily e Auntie Dot (June Van Merche – atriz branca, de origem holandesa, que nos presenteia com cenas hilárias) procuram tornar essa batalha mais fácil.

Tem preconceito? Tem racismo? Sim, tem. A África do Sul, até outro dia, vivia sob o regime do apartheid, lembra? Preto pra cá; branco, pra lá. Segregação racial que recebia o nome de Lei de Áreas de Grupo. Um país de pretos com meia dúzia de branco dando as cartas, pode?

Ocean View, onde o filme está ambientado, surge em 1968 como um desses locais de confinamento de pretos. Passados mais de 50 anos, a cara do bairro é outra, é turístico, ótimos hotéis, hospitais como o Grand Freedom, no qual Angeliena explora o estacionamento. Mas ainda existem brancos olhando torto para pretos? A cena da compra das malas, por parte de Angeliena, e da farra no restaurante, por parte do dono do hospital, Lawrence Mitchell (Colin Moss), são exemplos que não estão no filme de graça. A convivência entre brancos e pretos ainda é tensa.

E a viagem? Preparem as malas porque Angeliena se submete a um tratamento experimental, tem boa melhora e, se não pode embarcar de avião, vai de cruzeiro. Então, vamos viajar? Quem sabe. Diante de quem ousa sonhar, a morte pode perfeitamente esperar mais um pouquinho.  

Fotos: Divulgação


  

Mário Lucena

Jornalista, bacharel em Psicologia e editor da Portal Edições, editora do Portal do Envelhecimento. Conheça os livros editados por Mário Lucena.

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