A vida é agora!

A vida é agora!

A DCJ (Doença de Creutzfeldt-Jakob), uma das mais de 60 demências conhecidas, é o pano de fundo do drama-cômico A Vida É Agora.


Billy Cristal, aos 72 anos, dá um show de interpretação no papel de um velho de 72 anos. Seria fácil se este velho não estivesse começando a esquecer coisas realmente importantes. Imagine o desespero de estar almoçando com uma pessoa e não saber quem é esta pessoa que se faz parecer tão íntima. Aí, quando o desespero já bate no pescoço, uma sinapse o faz lembrar que está diante do próprio filho! Terrível, não?!

Não sei indicar um filme sem dar spoiler, ou seja, antecipar uma coisinha ou outra, mas sem estragar a brincadeira, como sugere a palavra em inglês. A cena de abertura, ele diante do espelho, é dramática, mas quem na faixa dos 60/70 anos não viveu esse draminha particular de se contemplar e divagar à procura de uma mocidade que o espelho se recusa a mostrar? Meu Deus, este ser envelhecido sou eu? Quando isso aconteceu?

Me perdi, vou recomeçar: Billy Cristal, uma lenda da comédia, aos 72 anos interpreta um velho comediante de 72 anos. É isto o que acontece no filme A Vida É Agora. Billy Cristal, na maior parte do tempo, é ele mesmo. Aí, logo de cara, acontece o encontro improvável com Emma. Improvável por quê? São coisas que acontecem na vida da gente o tempo todo, encontros improváveis, especialmente com anjos da guarda.

Emma tem uma crise alérgica terrível e Charlie (Billy Cristal), corre com ela para o hospital, gasta quase dois mil dólares com atendimento médico e remédios, preocupa-se de verdade com a saúde da moça, cuida dela sem esperar nada em troca, daí surge uma amizade profunda que os dois vão chamar de quase amor. Chegam a dormir juntos! Mas no dia seguinte ele não lembra…

Vamos abrir um parênteses para a locação. O filme se passa em Nova Iorque, mas o diretor abusa das imagens a partir de Nova Jersey. Quem já fez um tour em NYC sabe que a melhor fotografia é a que tiramos a partir do outro lado do rio, no município vizinho, então é lá que a dupla improvável se encontra para conversar. Pena que na maior parte do tempo o Manhattan skyline esteja fora de foco, mesmo assim vale a pena, e fica bem mais em conta do que ir até lá. Aquela Nova Iorque com filas de táxi amarelos não há, e o diretor, na hora de pedir um táxi, chama um carro de aplicativo, preto. Ah, o diretor, produtor, roteirista, tudo é o mesmo cidadão, Billy Cristal.

Outro parênteses, vivemos ainda a transição do velho para o novo e do novo para o novíssimo. Pois bem, mesmo o filme sendo de 2021, Charlie (Billy Cristal) ainda prefere datilografar na sua Smith e não sabe como usar um celular. Aí, uma cena dele – um assédio moral ao vivo – viraliza e Twiter, Instagran, FaceBook, todas as tranqueiras estão se perguntando: quem é esse cara?! E os produtores se empolgam com o sucesso imediato e nem se dão conta que o velho roteirista surtou!

Tem uma coisa legal. Quando Emma procura por ele pela primeira vez – marcam encontro em um restaurante para almoçar – ela carrega no celular uma foto de divulgação do Charlie, tipo foto de político em santinho de campanha eleitoral, ou seja, o sujeito tem 72 anos e faz campanha com uma foto antiga, quando tinha seus 30/40 anos. No caso de Charlie, melhor, Billy Cristal, a foto é do tempo do clássico Harry e Sally, por isso Emma não o reconhece, procura um galã e encontra um velho meio descuidado e a decepção é do tamanho do mundo.

Ah, lembrei onde estava, ele gasta uma fortuna com ela, sem esperar nada em troca, mas ela o procura para pagar as despesas pouco a pouco. E assim a amizade vai se aprofundando. Ele ainda se preocupa com ela, cuida, e segue disfarçando muito bem seus problemas, pois não quer preocupar ninguém. Charlie tem um casal de filhos e uma neta, mas ninguém tem ideia de como anda sua saúde, pois vivem correndo com seus próprios problemas e preocupações.

Quando Charlie começa a esquecer as coisas, passa a anotar tudo com o propósito de escrever um livro sobre os momentos felizes que viveu ao lado de Carrie e das crianças. Aí vem os flashbacks dele com a mulher, de quando se conheceram na praia até decidirem viver juntos na casa do lago. Porém, o diretor se utiliza de um recurso bem interessante, Carrie atua sozinha o tempo todo, ou seja, não existe um Charlie jovem ou adulto, só a voz de Billy Cristal dialogando com a mulher, o que é muito interessante.

Mas vamos focar no Charlie atual, 72 anos, morando sozinho em Nova Iorque e com a demência se instalando tão rapidamente que já se perde facilmente na cidade se mudar o trajeto que costuma fazer entre a casa e o trabalho. Simplesmente entra em pânico se tiver que virar à direita e não à esquerda como sempre faz. Para não esquecer o nome dos filhos e seus rostos, mantém fotos na parede com legenda. Portanto, só consegue esconder seus problemas porque ninguém liga pra ele. Ops, Emma surge na sua vida e começa a ligar, só por isso percebe o problema ao assistir a uma homenagem dedicada a ele em um programa de TV.

Vale a pena destacar a cena. O apresentador chama ao palco três feras: o premiadíssimo diretor Barry Levinson; a atriz Sharon Stone; e o ator Kevin Kleine para falar sobre a importância da obra do Charlie. Não são atores, são os próprios fazendo uma ponta no filme. Cada qual dá um depoimento sobre a obra de Charlie e, por último, o próprio Charlie é convidado a falar e faz um papelão. Ele, não, a doença.

Barry acabara de dizer que ele e Charlie são velhos amigos, no minuto seguinte descobre que seu velho amigo não sabe quem ele é. Sharon Stone fica deslocada quando ele pede ajuda a ela porque não lembra seu nome. Ela, com cara de enfado, perguntando-se o que estou fazendo aqui, responde com desdém: sou Maryl Streep. Como Charlie é um premiadíssimo roteirista de comédias, o público acha tudo engraçado, como se ele estivesse representando, mas Emma percebe que o caso é dos mais sérios, como esquecer os nomes de Barry, Sharon e Kevin?! Inadmissível. A não ser que…

É quando ela o acompanha a uma consulta e descobrem, depois dos exames de imagem, que ele apresenta sintomas da DCJ (Doença de Creutzfeldt-Jakob)[1]. Charlie faz uma piada – fez piada a vida inteira, não seria diferente diante de um diagnóstico tão terrível que dá a ele no máximo um ano de lucidez – e a médica, por não conhecer sua trajetória, diz que não é hora de fazer piada. Charlie reage: se tirar meu senso de humor eu morro agora! E decide se divertir e dar risada, pois o que não quer é viver o medo.

A médica recomenda um cuidador, pois entende que ele já não tem condições de morar sozinho. Pergunta pela família. Charlie confessa que os filhos não sabem e nem desconfiam dos seus problemas, e a última coisa que deseja é causar preocupação. Emma abdica da sua vida, dos seus sonhos, para cuidar de Charlie. Aí o filme começa de verdade, vão se divertir pra valer no Bar-Mitzvá da neta, ou será que este é outro filme? A Vida É Agora é assim, uma comédia, um drama, uma comédia dentro de um drama, um drama-comédia.

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– Charlie, você fez uma carreira brilhante, por isso a homenagem.

– Sorte, Emma…

– Ser bom não tem nada a ver com sorte, Charlie!

Humildemente, Billy Cristal, neste filme, homenageia a si mesmo ao se dar o papel de Charlie Burnz e a oportunidade de contracenar com Tiffany Haddish e grande elenco.

Nota
[1] A DCJ (Doença de Creutzfeldt-Jakob) é uma doença neurodegenerativa, caracterizada por provocar distúrbios no raciocínio, perda de memória, prejuízos na fala, falta de coordenação de movimentos musculares e tremores. É de rápida evolução, e de forma inevitável, leva à morte. Cerca de 85% dos casos são esporádicos, afetam geralmente pessoas entre 55 e 70 anos, com uma incidência de 1 ou 2 casos para cada 1 milhão de habitantes.

Onde assistir: https://www.filmelier.com/br/film/15941/a-vida-e-agora

Fotos: divulgação

Atualizado em 21/2 às 21h21


http://A DCJ (Doença de Creutzfeldt-Jakob), uma das mais de 60 demências conhecidas, é o pano de fundo do drama-cômico A Vida É Agora.

Mário Lucena

Jornalista, bacharel em Psicologia e editor da Portal Edições, editora do Portal do Envelhecimento. Conheça os livros editados por Mário Lucena.

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