A ousadia como experiência

A ousadia como experiência

Por uma paixão fui à redação de um jornal para trabalhar como fotojornalista. Levava a ousadia como experiência jornalística, somente.


Quando desembarcamos em um novo “universo”, nossas reações químicas corporais, sensoriais e espirituais organizam-se para clamar a desobediência, questionar e desabilitar a nossa consciência, aprendizados, sentidos e sentimentos, abstrair a nossa inteligência e nos causar uma total desordem fisiológica e psicológica para sobrevivermos assim, nos preparando para suportar o “novo”. Quando tudo isso acontece, bem frequentemente desfazem-se os critérios lógicos do raciocínio e, acrescenta-se um pouco de pavor à alma de alguns.

Por muitas vezes, ao passarmos por tal desordem, vivos, travamos uma luta contra os resultados provocados por nossas reações químicas corporais e espirituais. O imaginário quase sempre domina e, assim, retomamos o controle. Ainda lembro de algumas passagens comigo. Uma de forte intensidade, marcante e duradoura foi quando, por uma paixão, deixei a graduação em química industrial e fui à redação de um jornal para trabalhar pela primeira vez como fotojornalista. Levava a ousadia como experiência jornalística, somente. Redação do jornal O Povo, principal informativo à época no Ceará. Choque e reações complexas aconteceram.

Naquele dia, a redação do jornal tocava uma “música” desconhecida para mim. Parecia pouco ritmada. Horas depois, já não mais. Eram os “telec tecs” das máquinas de escrever que, logo, descobri. Seguiam-se até se aproximarem as madrugadas, todos os dias. O mundo, vida e morte circulavam em folhas de papel riscados. Os gravadores K7 e o “boca a boca”, em falas e gritos simultâneas, comentavam em voz alta como aconteceu. Depois, tudo seria materializado em papel impresso: mais uma edição.

A redação estava sempre cinzenta pela fumaça de muitos cigarros. Havia fumantes em todas as mesas, chegava mais um, eu. Os olhares sobre as máquinas Olivetti acompanhavam indiscretamente a entrada e saída de estranhos, entrevistados e novatos contratados. Naquele momento senti-me transformado em alvo.

Iniciava-se uma reação química corporal, mais intensa do que as químicas, que aprendia em laboratórios e salas de aulas da faculdade, por exemplo. Na academia chegava-se a resultados mais previsíveis e, quando se seguiam as doutrinas, as fórmulas científicas, as reações terminavam quase sempre com resultados previstos, mas sempre complexos, todos, absolutamente todos. A nossa química reage a emoções não industriais. É uma reação que se altera em respostas psicológicas. Os resultados e a imprevisibilidade vêm a cada batimento do coração, a cada encontro, a cada carinho, toque.

Não há qualquer ponto, vírgula ou verbo, nas fórmulas químicas para alterar o resultado e levar uma “reação” a um sentimento ou desejo. Tudo chega ou aproxima-se da mais completa exatidão. Não há uma proposta emocional, um estímulo sensorial, ou prazer. Durante meu período em laboratórios, nenhum elemento reagiu emocionalmente para mim: a exatidão numérica desestimulava-me. Jamais seria um químico verdadeiro. Será?

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Como e quando atingiria a maturidade arruaceira e aventureira, como embalar as noites, como apaixonar-se de várias formas, com uma reação química tão exata, ou por meio de complexos algoritmos? Nunca encontrei a “fórmula” em pipetas ou provetas. “E um dia veio a bruxa má, muito má, muito má, muito má…” E elas, as bruxas, experientes alquimistas, fazem reações empíricas com as nossas vidas, usam nosso sentimento, alma, desejo e paixão como catalisadores. Logo, encontramos as fórmulas certas e secretas.

Criaram-se porções mágicas para transformar a exatidão concreta do químico, em emoção, aventuras, delírios e felicidade. Assim, por magia. nasci fotojornalista. Havia outra linguagem, diferentes sentimentos, milhares de histórias de vida e morte: contavam as imagens, fotojornalísticas. Uma comunicação que parecia seccionar o tempo, com a possibilidade de restabelecimento do passado. E, por ser atemporal, aguarda pacientemente o futuro para contar e recontar várias histórias de muitas vidas, muitas versões.

O fotojornalismo, como um “psicoativo” refaz histórias, reposiciona as nossas referências e denuncia. É a fotografia que grita, canta, fala e verseja. Coloca olhares nas distorções sociais praticadas por nós “Sapiens”. Questiona-se o antropocentrismo e, lá do alto, mostra que a Terra não é plana. Nunca foi. Macrofoto dos homens transformados em micros pelo estado mínimo. Fotografando guerra, o fotojornalismo fecha acordo com a paz. Vislumbra o espetáculo do mundo real, a visão de vários olhares, unifica idiomas e modifica fronteiras. Tudo pode ser contado através das lentes de um fotojornalista. Sabe também sobre prazer, cria-se uma visão do mundo balizado pelo inverso de uma guerra. Mostra o tanto que a fome dói. Chora a morte matada.

Assim, a fotografia colocou ousadia, tara e coragem dentro das minhas veias para eu dizer: tenho uma câmera fotográfica, sou um fotojornalista! Venha comigo tomar uns vinhos e viajar mais de 50 mil quilômetros por mundos e estradas desconhecidas. Mesmo parecendo ser loucura, irresponsabilidade, vamos fazer uma história e depois, a cada dia, a cada fotograma e, com uns bons vinhos, contá-la no futuro: era desejo. O “futuro” começou a chegar e, já se vão mais de 500 mil km percorridos, alguns vinhos já foram abertos, muitas das histórias já começaram a ser contadas, compartilhadas, outras, ainda, serão fotografadas. É muito bom ser fotojornalista: a química da vida agora em pixels.

Foto destaque de Min An/pexels.


https://edicoes.portaldoenvelhecimento.com.br/novo/courses/narrativas-cremilda/

Alcides Freire Melo

Repórter fotográfico e cronista em diferentes periódicos. No Portal colabora com crônicas e fotos. Email: [email protected]

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