A não escuta é uma forma de violência silenciosa e muitas vezes despercebida. Mas a escuta não precisa ser cansativa, ela pode ser criativa!
Existem várias formas de violência no mundo, cometidas aos outros, com várias denominações diferentes que estão além, ou paralelas, à violência física. Machismo, racismo, aporofobia, legbtfobia, xenofobia, misoginia, idadismo, etc. Assistimos, ou ouvimos, casos e mais casos dia a dia através das mídias jornalísticas e hoje também nas mídias sociais. A não escuta à pessoa idosa também é uma violência, pesada, cruel, pouco explícita, pois se passa no ambiente familiar, por isso mesmo pouco difundida como tal.
Darei um exemplo de um caso ao qual tive acesso (nomes imaginários). Adla é uma senhora de noventa anos, com caso de Alzheimer. A vida inteira trabalhou, criou suas filhas e ainda ajudou a irmã a cuidar da filha. Ensinou filhas e sobrinhas a arte da culinária. Com a idade avançada, filhas criadas e aposentada, foi morar com sua irmã em um confortável apartamento e a auxiliava no gerenciamento da casa e da família.
Sua situação se complicou um pouco com a chegada do Alzheimer, inicialmente leve, crescente ao longo do tempo. Solução escolhida pela família: interná-la em uma casa de repouso. Uma casa simples, não muito cara, bem cuidada, mas com muitos hóspedes.
A pergunta de Adla é: por que estou aqui se tenho uma casa grande, com jardim e quintal, onde mora minha filha e meus netos? Por que estou aqui se tenho dinheiro para sobreviver? Por que estou aqui se minha irmã, a quem servi boa parte de minha vida, também tem posses e uma casa de campo até maior que a minha?
CONFIRA TAMBÉM:
O fato é que ninguém a escuta. Ninguém a responde. Agora ninguém mais a visita, para não terem que inventar uma resposta inadequada. A não escuta migrou rapidamente para o abandono. A não escuta é uma forma de violência porque reduz a pessoa ao silêncio, cancela sua voz: se ninguém a escuta, por que falar? Esse caso é mais comum que a gente imagina.
Primeiro porque o diálogo intergeracional inexiste há muito tempo em muitas famílias. Aquele pai rigoroso e exigente, aquela mãe ranzinza, ambos sem muito diálogo com os familiares, tornaram-se pessoas idosas e não é agora que mudarão de comportamento e atitudes tão facilmente. Mudanças comportamentais e cognitivas acontecem quando casos emocionais ou ambientais mais drásticos acontecem. Ou com muita terapia.
Comportamentos e atitudes são qualidades aprendidas e, muito provavelmente, muitas pessoas se recusaram a aprender, ou nem tiveram oportunidade, ou pensaram não ser importante. A sabedoria não é um dom, é um aprendizado, para todas as pessoas de todas as gerações. Talvez essa pessoa idosa não tenha escutado seus filhos, o que também não justifica a não escuta dos filhos em relação aos pais.
Outro caso mais próximo a mim acontece com Jordelina. Noventa e sete anos completa este ano, anda com dificuldade, mesmo com o uso de um andador, e com demência não muito avançada e certa confusão mental. Lembra dos fatos mais antigos, esquece o que comeu no almoço ou quem a visitou pela manhã. Além disso, está um pouco surda.
Jordelina adora contar histórias. Sempre foi exímia contadora de casos descrevendo cada detalhe da narrativa. Se contava de novo para uma plateia nova repetia cada detalhe, até as vírgulas e as paradas para respiração. Como atriz amadora que foi, já idosa, decorava a peça inteira para não perder a entrada em cena e não esquecer o momento de sua fala. Hoje mistura os casos. Conta-os em sequência, como se tivessem acontecido no mesmo tempo e no mesmo lugar.
Um dia, ao visitá-la, contei-lhe um caso. Meia hora depois chegou alguém e ela iniciou um caso que eu já conhecia, de tanto ouvi-la contar. O mais surpreendente é que ela misturou o caso iniciado com aquele que eu lhe contara. Contou como se fossem um só e como se ela tivesse vivenciado os dois. Incrível. Perguntaram-me porque eu ria, não respondi por respeito.
Convivendo com ela aprendi uma tática interessante para praticar a escuta respeitosa, sem desmerecer a interlocução, sem perder a paciência da escuta e ainda ajudar a pessoa idosa a se lembrar de alguma coisa, mesmo se for difícil inicialmente. É o velho e eficiente método da pergunta socrática. Quando a conversa começa a ficar repetitiva e cansativa, faço uma pergunta que a faz pensar. Ou simplesmente dizer não sei. Nesse caso faço outra.
— Quando mesmo foi isso, Jordelina?
— Você se lembra de seu tempo de escola? Onde foi mesmo que estudou?
— Teve festa em seu casamento? Quem estava presente? Havia muitos convidados?
— O que você fazia em seu trabalho?
— Quantos vestidos de noiva costurou em sua vida?
— Que você fez na vida que mais gostou?
— Quem te ensinou a andar de bicicleta?
— Você disse que jogou vôlei. Na sua época os uniformes eram curtos? Jogava com as pernas de fora?
— Ainda sabe cantar aquela música do Sílvio Caldas? E do Nelson Gonçalves, seu cantor preferido?
— ???
A escuta não precisa ser cansativa. Pode ser divertida, mesmo sendo as respostas não confiáveis. A não escuta é uma forma de violência. Violência silenciosa e muitas vezes despercebida. A escuta pode ser criativa!
Foto destaque de cottonbro studio/pexels