A casa vazia

A casa vazia

Curiosa, Angélica olha ao redor e imagina a casa que certamente havia sido bela e mobiliada com objetos que contavam a história da família Nogueira.


Antônio tem esse nome, pois sua mãe era devota de Santo Antônio. Dizia que era um santo muito culto e desprovido de futilidades. O Antônio, personagem desta história, estudou até seus dezessete anos, quando se viu absorvido pelo trabalho que garantia seu sustento, sua moradia e alimentação. Lamentavelmente, não lhe sobrava tempo nem dinheiro para os estudos.

Agora, na meia idade, Antônio pensava que conseguiria ter sossego. Doce ilusão! Com a pandemia, ele perdeu o emprego, a casa de aluguel, a dignidade e até os sonhos.

Em compensação Angélica, nossa segunda personagem, era uma menina nojenta, sempre com fome de supérfluos. Queria a boneca mais cara da loja e seu pai a comprava. Escolhia vestidos de festa para parecer princesa e seu pai comprava.

Um dia, Angélica caminhava com a empregada pela rua da casa abandonada agora ocupada por Antônio, quando um cachorro vira-lata sai lá de dentro para fazer graça para a menina.

Mesmo sujo e pulguento, ele pareceu conquistar Angélica, menina sempre tão faminta do desnecessário.

Ele parecia falar com ela e ela parecia entender o que ele dizia.

O cachorro faminto de alimentos mostrava as costelas na sua magreza. Abanando o rabo, entra no casarão abandonado levando Angélica com ele.

O espaço é grande e empoeirado. No canto esquerdo do que parece ser a sala a menina percebe alguns cobertores sujos largados no chão.

Espaços vazios por todo canto são iluminados pelas janelas quebradas.

Os olhos da garota percorrem o ambiente até fixarem o olhar no único móvel ali existente: uma cadeira de balanço cujo movimento faz chorar o assoalho corroído pelo tempo e pela história de seus antigos moradores.

Antônio se balança, para frente e para trás, para frente e para trás.

Naquele instante, algo acontece com Angélica, sempre faminta do nada.

Faminta de objetos caros, raros, de vestidos luxuosos, finos, de brinquedos eletrônicos último tipo. Agora, um despertar raro de empatia a aflige e talvez a tire a tal fome de tudo e de tanto daquilo que não a alimenta.

Novos tempos parecem querer chegar. Novos tempos.

Curiosa, Angélica olha ao redor e imagina a casa que certamente havia sido bela e mobiliada com inúmeros objetos que contavam a história da família Nogueira.

Um casal, uma casa, dois filhos e três cachorros. Alegria mal contida nas paredes do tal casarão. Os filhos cresceram felizes e felizes foram viver suas vidas em um bairro distante. Um vazio logo se instalou por ali e pela vida que envelhecia.

Pedro vivia nervoso e se justificava pelas inúmeras responsabilidades que não lhe davam paz, já Maria era feliz com suas plantas, suas coisinhas e o aconchego do seu lar.

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Balançando-se na cadeira, Antônio cala a dor de não ser ninguém enquanto Angélica percebe-se diferente.

A Alegria de Maria teve seus dias contados naquele passado distante de Antônio e de Angélica.

Dores a jogavam ao chão, naquele mesmo chão que agora canta a dor do assoalho no balançar da cadeira.

Pedro não suportava vê-la assim e, nos momentos da dor que Maria sentia, afastava-se com olhares que a culpavam e a condenavam. A dor, então tornava-se insuportável.

O que a vida fez de Pedro? O que Pedro fez da vida?

Foto: Ahmet Cantürk/pexels

Antônio gosta de se sentar na cadeira que acomoda seu corpo fadigado. Faminta de compaixão, Angélica se aproxima para conversar e pela primeira vez sente uma fome diferente. Com apetite, devora esse novo sentimento. Escuta Antônio e aprende com ele. O cachorro abana o rabo enquanto cavouca o amontoado de cobertores empoeirados.

Antônio se fortalece nesta amizade e Angélica deixa de ser nojenta.

Num passado distante Pedro chorou a morte de Maria que morreu da dor e da culpa que não tinha.

A casa fica vazia. Esvazia-se a vida, as coisinhas, as plantas. Fica apenas a cadeira de balanço que conta a história da família Nogueira, de Antônio, de Angélica e de um cachorro pulguento e faminto de comida.

O assoalho segue cantando a dor do chão desta casa abandonada.

A empregada chama Angélica. É hora de ir para casa e a vida segue diferente.

A casa está vazia. Só restou o balançar e a cadeira de balanço.

Para frente e para trás, para frente e para trás, para frente e para trás.

Foto destaque de Monica Silvestre/pexels.


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Cristiane T. Pomeranz

Arteterapeuta, entusiasta da vida e da arte, e mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP. Idealizadora do Faça Memórias em Casa que propõe o contato com a História da Arte para tornar digna as velhices com problemas de esquecimento. www.facamemorias.art.br E-mail: [email protected].

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Arteterapeuta, entusiasta da vida e da arte, e mestre em Gerontologia Social pela PUC-SP. Idealizadora do Faça Memórias em Casa que propõe o contato com a História da Arte para tornar digna as velhices com problemas de esquecimento. www.facamemorias.art.br E-mail: [email protected].

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