Virei a Monalisa da pandemia

O interfone toca. Sim, pode deixar subir o técnico. Em tempo de quarentena, ficar sem TV é cruel. Mas cruel é também permitir a entrada de um estranho.

Marie Claire Blatt (*)


Em tempo de pandemia, após cento e vinte dias de confinamento, sem ter nenhum sapiens perto, me tornei a mulher das cavernas, a mulher de Neandertal. O cabelo cresceu, os lindos reflexos sumiram dando lugar ao aparecimento de uma cor espiga de milho madura, meio preta, meio branca,  meio nada , desbotada.  Usei um spray colorido que me recomendaram para esconder tudo aquilo.  Fiz isto no banheiro e o resultado foi que o banheiro verde passou a ser todo loiro.  Minhas unhas também cresceram. Uma coisa é certa, aprendi a cortar e lixar. Os cremes também estão acabando. Clarins deve estar chorando com a  minha visão. Virei a Monalisa da pandemia.

monalisa

E o blush, ah, este também está com um fiozinho. Não posso viver sem o ar puro das montanhas de Helena Rubinstein. Consolo-me com o pensamento de que as rugas significam vivência “one year older is one year wiser”. Será. Cada ruga significa uma emoção diferente,  às vezes profunda outras menos.  E a roupa então… Já imaginaram a economia. Cento e vinte dias sem ter que escolher a roupa, sem ter que se perguntar: que roupa usar hoje? Sem ir ao shopping para comprar uma nova saia ou vestido.  Sem gastar. Um mundo perfeito se não houvesse os empecilhos.

Hoje é dia da visita do técnico da Vivo. O controle da TV entrou em descontrole com o decodificador.  Houve briga entre os dois que ganharam vida própria. Quando um liga o outro desliga e quem sofre naturalmente sou eu. Sem falar da configuração da TV; uma tragédia que podia ser grega pelo nervoso que me dá.  Em tempo de quarentena, ficar sem TV é cruel. Mas cruel é também permitir a entrada de um estranho.  Rapidamente cubro o sofá e a poltrona,  coloco um plástico por cima dos controles, tiro o tapete do lugar. Enfim, limpo o caminho por onde o estrangeiro terá de passar.

A campainha toca. É o estrangeiro, o senhor técnico.  Já estou sentindo um leve mal estar.  Mais uma olhada  para ver se está tudo coberto  e, munida do álcool gel, máscara e luvas, ajeito a postura e vou abrir a porta. Lá está ele, com os pés quase no batente da porta, um gigante de mármore Black Star com um sorriso Colgate – Palmolive,  que deve ter um metro e noventa  e cinco de altura, se não for mais e que  por pouco não atropela a baixinha indefesa. Eu olho para ele de baixo para cima. Não pode ser; quase desmaio de pavor. As botas estão tão sujas que não dá para ver o tamanho. Se ele pensa que vai entrar no meu recanto assim está muito enganado.  Deve ter notado minha angústia, pois  imediatamente mostra as sapatilhas de tecido que trouxe e que coloca por cima das botas nojentas.

Aponto para o álcool gel que está na minha mão,  mas ele passa pela porta direto. Agora sim vou desmaiar ou ter um faniquito. Então, tira um minúsculo frasco do bolso e diz: estou sempre equipado. Passado o primeiro susto.  Ligo a TV e mostro a ele onde está o defeito. Eis que tem início a cena dos controles.  Ai, ai, ai, ele vai pegar no controle,  vai contaminar e é melhor você não deixar, diz a voz interior; não dê não.  Como não deixar pegar o controle. Se não pegar, não vai ver o que está acontecendo.

A voz interior continua: não dê não. Mas se não der o controle como é que ele vai encontrar o defeito.  Afinal, não vou ficar sem TV por tua causa, voz interior.  Passaram-se milésimos de segundos e lá está ele, com a mão de ogro estendida. Dou ou não dou. Finalmente volto à realidade e decido: o melhor é ceder.  Ele mexe daqui e mexe de lá e pronto, voltou tudo ao normal. Nem se passaram cinco minutos  que para mim foram séculos,  e ele já vai embora. Obrigada minha santinha.

Senti-me como a  chapeuzinho vermelho diante do lobo mau.

E você pensa que eu estava aliviada.   

Só que não.

Minha garganta estava seca, a palma das mãos úmida, o suor  quase pingando do rosto e mal respirava. Um quadro típico muito além do estressado. Tomei banho de álcool gel, recoloquei tudo nos seus devidos lugares e desabei na poltrona.

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Jamais poderia imaginar que um dia seria acometida deste “mal social” com medo da proximidade de outra pessoa.  Cento e vinte  dias de reclusão total, dentro de casa e longe  do convívio com outros humanos  tem um efeito bastante nefasto.  E querem saber, estou com medo sim.

Medo do medo que possa sentir  do desconhecido. Medo do medo que possa ter ao sair de casa.  Medo do medo de qualquer aglomeração e medo da avizinhação. Sinto um frio na espinha só de pensar que preciso abrir a porta e pavor de ver alguém se aproximar do batente da porta, seja ele quem quer que seja.

Enquanto eu estiver dentro do meu casulo estou protegida e tranquila. Nada mais confortante saber que estou no meu pedacinho de céu.

Sei que o retorno à sociedade não será fácil. Mas não será fácil para ninguém.  Na atual situação somos todos iguais,  porém em barcos diferentes.

E vamos torcer para que os sábios cientistas encontrem logo a nossa tranquilidade, a Santa Vacina e assim possamos retornar ao admirável novo mundo.

(*) Marie Claire Blatt – 80 anos, natural de Paris, França, entusiasta da vida e eterna estudante. É contadora de suas próprias histórias e crônicas, musicadas, que apresenta para proporcionar lazer às pessoas da terceira idade. E-mail: [email protected]

Foto destaque de Matilda Wormwood no Pexels


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