Vetustez colorida reúne idosos com demência e arteterapia

Vetustez colorida reúne idosos com demência e arteterapia

O programa objetiva inserir idosos com demência dentro de espaços culturais, mas quaisquer pessoas podem entrar no programa, independentemente da idade ou da condição cognitiva.

Carlos Augusto Ferraz Zulli e Carolina Barreto Rago (*)


O ano de 2022 foi marcado pela volta presencial das atividades acadêmicas na PUC SP após a pandemia do coronavírus. Contudo, o Faça Memórias(1) permaneceu ocorrendo de forma remota. Como o público-alvo são os velhos, entende-se que há um risco maior de expô-los nos museus ainda neste primeiro semestre de 2022, como anteriormente. O Faça Memórias foi fundado em 2009, sob os cuidados de Cristiane Pomeranz, oriundo do Arte Inclusão, que propunha a reabilitação de pessoas com deficiência. O Faça Memórias teve desde o início o objetivo de inserir idosos com demência dentro de espaços culturais. No entanto, quaisquer pessoas podem entrar no programa, independentemente da idade ou da condição cognitiva.

As atividades giram em torno da apresentação de obras, estimulando conversas sobre os artistas. Dessa forma, usa-se uma obra de arte como estímulo cognitivo. São feitas perguntas sobre a obra em si e sobre a vida dos participantes, pedindo detalhamento, visando a estimulação cognitiva

Tivemos a oportunidade de acompanhar o grupo durante doze semanas. Os encontros têm uma hora de duração, entre 15h50 e 16h50, toda segunda-feira. Já que ocorre de forma remota, os encontros se dão na plataforma Zoom. Neste artigo, selecionamos dois encontros para expor como se dá a participação dos velhos (2) neste contexto.

Por que velho?

Antes de nos aprofundarmos nas particularidades analisadas durante os encontros, explicitaremos o porquê do emprego do termo “velho”.

Por muito tempo, achou-se agressivo referirmo-nos aos velhos como tal, usando outras denominações como “idade de ouro”, “melhor idade” e afins. Contudo, outros termos podem abrigar sentidos amenizadores de realidades que fazem parte dos desafios desta faixa etária. Os velhos querem a palavra mais forte, porque se sentem fortes, conquistaram o posto de ser velho.

Eliane Brum (2014), no artigo “Me chamem de velha” aponta:

Idosos são incômodos porque usam fraldas ou precisam de ajuda para andar. Velhos incomodam com suas ideias, mesmo que usem fraldas e precisem de ajuda para andar. Acredita-se que idosos necessitam de recreacionistas. Acredito que os velhos desejam as recreacionistas. Idosos morrem de desistência, velhos morrem porque não desistiram de viver.

Confabulações em um cafezal

As reuniões são coordenadas por Carmesim, com o auxílio de Fúcsia, e elas decidem previamente qual é o tema a ser trabalhado em cada semana. É notável a sensibilidade da coordenadora ao pensar no tema trabalhado pela arte e como abordá-lo com cada um dos velhos, levando em conta suas individualidades ao mesmo tempo em que estimula a cognição e memória através de atividades no final de cada uma das sessões. Devido à questão da Covid-19, o instituto considerou arriscada a volta das atividades presenciais, portanto as obras de arte são expostas através de apresentações de slide.

Tendo o primeiro relato mais focado em Laranja, a sessão começa projetando slides sobre Cândido Portinari na chamada do Zoom. Justamente por conta da sensibilidade de Carmesim na escolha dos temas, o café foi o tema escolhido para a arteterapia do dia. A organizadora já tinha conhecimento do passado de Laranja, na Bahia e, por isso, escolheu tal temática para reviver memórias da terra natal.

Carmesim pergunta se o Laranja já esteve em plantações de café, e de fato o velho afirma também ter crescido brincando por elas, na Bahia. Conta que o pai tinha um sítio e ajudava batendo nos grãos para extrair seu pó. A organizadora tenta evocar-lhe os sentimentos que tinha durante aquela época, ao que afirma ter sido feliz.

Quando Carmesim compartilha a tela, frutos de café surgem em uma obra. Laranja rapidamente nota e identifica os frutos. Ficamos impressionados com a rapidez na evocação de lembranças, mesmo que já fosse de nosso conhecimento que ele não tem sinais manifestos de demência. Laranja é relativamente saudável no que concerne à mente, e estava apenas começando a ter alguns lapsos de memória.

Carmesim fez uma analogia entre a diversão que Laranja sentia enquanto batia as folhas com a diversão que presume Portinari ter vivenciado quando desenha as flores do cafezal. Analogias assim fazem com que os participantes também reconheçam a relação entre a própria história e a do artista apresentado.

Em um dado momento, a internet de Laranja começa a travar, ficando gradativamente pior. Carmesim tenta direcionar a atividade proposta, mas ele demora a entender, pelas interrupções da chamada. Esta situação evidencia um grande problema nas atividades online: depender do recurso tecnológico para que a atividade aconteça.

Muitos velhos não conseguem participar das reuniões online por falta de conhecimento de tecnologia ou até mesmo por não ter internet instalada em casa. Aqueles que participam atualmente do projeto o fazem com o acompanhamento de pessoas mais novas, como a filha ou a vizinha, que os ajudam a acessar a chamada. Esse modelo, porém, demanda uma rede de apoio que nem todos possuem.

Quando esta era a única opção, por conta do isolamento social necessário, foi preciso adaptar-se a esta realidade. Agora, com a volta gradual das atividades presenciais, é preciso ponderar se as vantagens do online – como a segurança dos envolvidos e a maior abrangência do projeto – se sobrepõem à dificuldade que os velhos têm de usar as tecnologias atuais.

Mais adiante, na atividade do dia, Carmesim perguntou ao participante se conseguiria desenhar um pé de café a partir de sua memória e imaginação, sem a imagem de Portinari espelhada na chamada. Laranja diz prontamente que sim, demonstrando uma confiança que nos anima. Tendo acesso às pinturas antigas de Laranja, podemos notar uma mudança drástica no estilo de pintura, o que pode inferir uma deterioração cognitiva; aparentemente, isso não desmotiva o participante, que segue com boa autoconfiança.

Nesta atividade, foi pedido que a filha preparasse uma mistura de café pronto, pó de café e tinta marrom, para que ficasse uma cor forte. O desenho ganha forma no canto superior esquerdo da folha, quase como se ignorasse o restante do espaço, mas Laranja logo diz que está faltando folha e fruto em seu cafezal.

Estimula-se também que o velho converse enquanto pinta, afinal, não é tão falante por si só. Carmesim pergunta se tem irmãos ao que responde com um breve sim. A partir desse ponto, as histórias de Laranja ficam contraditórias e um tanto grandiosas e é difícil distinguir a realidade da fantasia. Parecia abatido, mas se animou. Carmesim aproveita para incentivá-lo a preencher o resto da página com a casa na qual morava na época e volta a insistir no assunto da família.

Carmesim pergunta qual a primeira profissão. Aparentemente são duas. Respondeu que muito novinho já fazia desenhos e modelagem com biscuit, especialmente de animais, conseguindo diversos empregados que trabalhavam para ele em uma fábrica. Depois, afirma que a primeira profissão era fazer quebra-queixos, sendo muito conhecido nos municípios da região por isso. Dessas atividades, a que mais gostava era os desenhos que vendia na feira. 

Além disso, se confunde em relação à cidade em que estava em cada um de seus relatos; quantos anos tinha; como conseguiu fazer os cursos; ou quantos eram seus irmãos. Carmesim se mostra muito sensível novamente, pois apesar de perceber a falta de lógica nas narrações de Laranja, não o desmente, mas tenta fazê-lo perceber sozinho a conexão distorcida entre as histórias.

A importância do Faça Memórias na vida de Laranja se torna explícita. No passar do tempo, a influência da demência ganha uma representação visual, a distinção entre desenhos de meses atrás e recentes é nítida! Além do diagnóstico, a arteterapia se apresenta como um trabalho da memória, da cognição e da autoestima. Como a própria filha de sr. Laranja gosta de dizer: “Ele precisa ir ao médico, mas ele também precisa muito fazer arte“.

O curioso caso da velha que não é velha

O segundo encontro escolhido ressalta as diferenças entre os velhos participantes. Pode, à primeira vista, soar óbvio que dois participantes diferentes possam ter personalidades muito distintas, mas na realidade, é muito comum reduzirem a pessoa velha a este fato, sem considerar que se trata de um sujeito com qualidades e defeitos. Neste segundo dia, Laranja não estava presente, apenas Azul. Azul é uma velha, geniosa e divertida, que gosta de ler e de desenhar, mas só se for tudo do seu jeito, como ela mesma sempre diz.

Fúcsia é quem apresentou o tema dessa vez, ao invés de Carmesim; Mário Quintana surgiu no compartilhamento de tela. A temática era a velhice, na sua mais pura forma, com seus adjetivos diversos. Azul parecia não estar preparada para aquela conversa, e era justamente por isso que o tema parecia tão relevante e interessante de ser trabalhado.

A coordenadora, num tom bastante didático mostrou uma foto do artista e opinou que o autor parece simpático, mas Azul não concordou e disse:

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– Ele parece velho.

Quando disseram que ele é bonito, a velha não pareceu estar de acordo.

E velho não pode ser bonito? – perguntou Carmesim.

Azul respondeu:

Eu acho que não.

Magenta, a cuidadora que a acompanha neste dia, pergunta:

E você?

Ué, eu não sou velha! respondeu Azul, confiante de sua resposta.

Os próximos momentos se misturam entre uma discussão acalorada sobre a resposta de Azul ´à sensação de ser velha, provocada pela imagem do poema do artista escolhido. Identificamos uma mudança sutil de postura de Azul diante da velhice, graças, mais uma vez, ao planejamento prévio que as coordenadoras têm. Ao selecionar obras que evidenciam a parte poética da velhice, ajudam os velhos a perceber a parte bela que ainda permanece neles.

No meio dos slides, Fúcsia colocou uma foto de Azul com a irmã e a mãe. Mais uma vez, podemos ver a escolha minuciosa dos estímulos para as apresentações, focando no fato de que Azul era bonita na tenra idade e ainda o é, agora na velhice. Imediatamente, Azul reconheceu-se e aos familiares, nos apresentando todas as mulheres. Contudo, logo depois se refere às pessoas na foto como a Azul e eu, apenas.

Os slides traziam, também, fotos de Azul jovem. Ela ficou muito animada e disse olha que mulher bonita!, se reconhecendo. Explicou que estava de fraque e que ficava o dia inteiro se arrumando. Disse que se não ficasse bonita, ficava brava.

Depois de uma sessão de fotos antigas de Azul, surgiu mais uma foto de Mário Quintana. Dessa vez, Fúcsia pergunta se o artista parece simpático e Azul responde que sim. Nossa suposição é a de que a velha teve o coração amolecido através das imagens anteriores de si.

A atividade desta reunião consistiu em colorir as fotos apresentadas de Azul, que foram impressas para ela em preto e branco. Por causa de divergências entre como a coordenadora pediu para colorir e como Azul fez, uma discussão acalorada entre a velha e sua cuidadora teve início. O caos e a limitação da tecnologia do zoom tornaram as tentativas de Carmesim de tentar intervir com Azul quase ineficientes. Foi a intervenção da filha de Azul que garantiu uma certa ordem e garantiu que a coordenadora pudesse conversar com a velha.

Atividade do dia – colorir fotos de Azul jovem e Azul velha

Se destaca neste momento a importância que a rede de apoio dos velhos tem. Muitas vezes podem parecer irredutíveis e muito exigentes, mas é inegável que são essenciais ao auxiliar os velhos com a tecnologia, ao tentar ajudá-los a relembrar alguma memória ou mesmo explicando a tarefa de cada reunião quando os participantes esquecem ou desviam. Sem falar na cumplicidade emocional que desempenham junto à Azul ou Laranja. Sem estes cuidadores, o Faça Memórias online não seria possível, visto que desempenham um apoio estrutural ao projeto. 

Como em todos os encontros, não acompanhamos a resolução desse conflito no ambiente familiar de Azul. Não sabemos, também, como foi a conversa entre a filha de Laranja e o pai, após ouvir as histórias intercortadas do velho. A parte que nos cabe termina quando o relógio nos avisa que já são 16h50, e precisamos desconectar da chamada.

Mas nossos pensamentos sobre as situações vividas não se desconectam quando fechamos a tela do computador; nos importamos com os novos velhos amigos e com as organizadoras do projeto, e pensamos em tudo que aprendemos a cada dia, além de sermos gratos pelas memórias que criamos junto ao projeto. Foi um imenso prazer estar na companhia de todos os participantes, ainda que de forma remota, e foi decerto um grande aprendizado para nós.

Adendo – homenagem à Laranja

Seu Laranja faleceu dia 22/06/2022. Não conseguimos reunir as obras que ele realizou no Projeto Faça Memórias durante o nosso estágio, devido à instabilidade em sua saúde no período de preparação deste artigo.

No entanto, gostaríamos de ressaltar que foi de grande importância para o nosso aprendizado, como mostramos acima, e que suas obras merecem, também, visibilidade. Por isso, gostaríamos de deixar aqui duas obras que foram feitas antes de entrarmos no Projeto como estagiários:

Notas
(1) Faça Memórias é um programa que faz uso da história da arte, mestres da pintura universal, história pessoal, coletividade, memórias e afetos para potencializar o momento de viver a velhice. Ele é aberto ao público em geral. https://www.facamemoriasnomuseu.com.br/

(2) Os nomes utilizados neste artigo sob o título “Vetustez colorida…” são fictícios, em prol de manter o sigilo dos participantes. A palavra “vetustez”, segundo o dicionário eletrônico, é o estado ou atributo do que é vetusto; ancianidade, velhice. Por extensão, também é atributo do que merece reverência; respeitabilidade.

(*) Carlos Augusto Ferraz Zulli e Carolina Barreto Rago – Estudantes do curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Disciplina: Estágio Básico I, 5º Período, 1º semestre 2022, sob a supervisão da Ruth G. da C. Lopes. E-mail: [email protected].

Foto: Centre for Ageing Better/Pexels


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