Vamos turistar com responsabilidade?

Viajar traz muitos benefícios, enormes, mais ainda se for com responsabilidade. Ganhamos novos conhecimentos, temos novas experiências, conhecemos novas pessoas, culturas, lugares e suas histórias… Como dizem por aí, viajar faz a gente esquecer de tudo, até de nossas dores. Quer remédio maior e melhor? Não há. Turistar é o verbo da vez para os 60+.


Eu amo viajar. Minha primeira viagem se deu entre a Ribeira Brava e o Funchal na Ilha da Madeira, Portugal, quando era uma ‘miúda’.  Depois Funchal, Lisboa, Brasil aos 10 anos. E de lá para cá nunca mais parei. Ensinei às minhas filhas o gosto de viajar. Na minha casa nossa prioridade sempre foi educação e viagens. Chegamos a conhecer diversos países, culturas, pessoas e aprendemos a respeitar o diferente. Gostamos de viajar em família, mas com a chegada da crise, ficou difícil de continuar fazendo o que gostamos muito. Agora, as viagens nacionais e internacionais, para mim, só a trabalho, porque ainda há a outra prioridade, a educação das filhas. Fico imaginando como será meu longeviver sem as viagens caso a crise permaneça…

Funchal, Ilha da Madeira

Por que falo isso? Porque muita gente conseguiu fazer sua primeira viagem bem mais tarde, muitos só quando se aposentaram e com filhos criados e fora de casa. Outros ainda estão planejando. E há aqueles que nem sonham em planejar. Mas seja nas rodoviárias do país, nas estradas ou nos aeroportos e portos, o certo é que cada vez mais as pessoas descobrem a delícia que é viajar, e entre elas a faixa acima dos 60 anos. E fico muito feliz por isso, pois sei dos seus benefícios, enormes, a começar pelos novos conhecimentos que se adquire, as experiências vividas, a sociabilização, a gastronomia, o lugar… Como dizem por aí, viajar faz a gente esquecer de tudo, até de nossas dores. Quer remédio maior e melhor? Não há. Turistar é o verbo da vez para os 60+

E quem explica isso é Gastal e de Sá (2019), no artigo , publicado na revista mais60, n. 75, do Sesc São Paulo: “essa geração, nascida entre 1945 e 1955, tratada como geração baby boomer, tendo lutado pela reformulação dos direitos civis e pela qualidade de vida, vivenciou novas formas de ser e estar no mundo a cada nova faixa etária que adentrou. Na atualidade, ela está envelhecendo e o faz de forma diferenciada – são os neovelhos da pós-modernidade –, não só porque um número maior de sujeitos alcança idade mais avançada, considerando-se a população em geral, mas também porque eles não querem ser vistos à semelhança dos velhos de gerações anteriores ou dos que hoje estão na quarta idade” (p. 11).

É por isso que os jornais não cansam de apontar que a longevidade movimentará as ofertas e as práticas associadas ao lazer e ao turismo. Essa é a tendência que várias pesquisas vêm mostrando, porque a estabilidade financeira daqueles que já estão aposentados e com filhos criados e fora de casa (ainda não é o meu caso) e a disponibilidade de tempo, principais características do turista dessa faixa etária, foram descobertas recentemente pelo mercado. No final do ano passado li uma matéria que indicava isso já para este ano, 2020, afirmando que virou um nicho do mercado turístico, e que em sua maioria é formado por mulheres que têm flexibilidade de datas, querem comodidade e o máximo de serviços possível. Mas viajar envolve também uma mudança cultural e ao que parece os idosos do Brasil estão aprendendo rápido a viajar mais. Sabem que viajar é cuidar de si mesmos.

Todos os anos a plataforma global de turismo Booking.com, aponta as grandes tendências de viagem para o ano seguinte, e também para o futuro. Em sua última pesquisa, foram entrevistados 22 mil viajantes de 29 mercados, entre eles o Brasil. Mais de 195 milhões de avaliações verificadas de hóspedes foram analisadas para listar as principais projeções no universo do turismo. Como resultado a pesquisa indica a terceira idade como o grande destaque do turismo. Ou seja, pessoas a partir de 60 anos estarão viajando mais. A pesquisa assinala que cerca de 77% dos viajantes brasileiros nessa idade responderam que viajar será a melhor forma de aproveitar o tempo livre que terão com a aposentadoria; 65% dizem que pretendem ao se aposentar fazer viagens mais ousadas e 29% dos que já estão aposentados planejam viajar por meses sem interrupções. E há quem viaje para o exterior para intercâmbio cultural, ficando mais tempo fora.

A pesquisa do Booking traz outro dado, que é a viagem de avós acompanhados por seus netos. Não só com netos. Mas também com sobrinhos netos, como Lenina Pomeranz descreve em As lições de vida e de carinho, na relação entre avós e seus netos,matéria escrita para o Portal do Envelhecimento, na qual relata que sua viagem à Rússia, na companhia de um dos seus sobrinhos-netos, Bruno, lhe proporcionou a oportunidade de pensar na sua relação de avó com os seus netos.

A pesquisa do Booking revela ainda que cerca de 81% dos avós entrevistados concordam que se sentem rejuvenescidos ao passar mais tempo com os netos. A pesquisa não fala da relação dos avós com netos crescidos, já adultos, apenas relacionam netos quando na infância. Não é o caso de Lenina Pomeranz e Bruno, onde transmissão de conhecimento de um lado; curiosidade, interesse e apoio, por outro lado, marcaram para sempre o relacionamento entre eles. Como ela narra:

“Vou fixar-me, neste texto, no meu relacionamento com Bruno, sobrinho-neto com quem fiz a referida viagem. Antes dela, relacionamento cordial e amoroso igual em relação e ele e aos seus irmãos. Na viagem, a vivência diária, a troca das impressões, tornou-me mais próxima dele. Garotão aos 25 anos, foi meu protetor carinhoso em todo o percurso. Aproveitando-se do meu preparo físico – apesar dos 86 anos de idade – fez me percorrer com ele cerca de 10 quilômetros diários pelas ruas limpíssimas e pelos belíssimos e bem tratados jardins moscovitas, ladeados pelas frondosas berioskas – árvore nacional russa.”

Lenina Pomeranz e seu sobrinho-neto Bruno: arquivo pessoal

O mercado de turismo estará preparado?

Será que os hotéis, restaurantes e atrações espalhados pelo país afora e no exterior estarão preparados para receber um número crescente de cidadãos 60+, fazendo “jus aos históricos pessoais e coletivos daqueles que se empenharam, nos anos 1960, em reinventar modos de viver”, como apontam Gastal e de Sá? Investiram em infraestrutura, como acomodações – mais amplas, confortáveis, práticas e seguras – transporte próprio, elevadores, rampas, pisos antiderrapantes e vagas especiais no estacionamento? E treinamento de suas equipes para que pudessem atender esse público específico? E as agências, o que elas vêm oferecendo de pacotes, em termos de acomodação, transporte, passagens, ingressos, eventos, alimentação, e reconhecimento dos lugares como memória viva? Eu já presenciei em algumas de minhas viagens, especialmente nacionais, certa infantilização, falta de estrutura na rede hoteleira, transporte inadequado, eventos inapropriados, e total deslocamento com o local visitado, entre outros. O mercado haverá de se qualificar, tanto em recursos humanos quanto em infraestrutura de maneira geral e deverá ter maior responsabilidade quanto à construção das velhices e dos lugares.

Vale a pena trazer como exemplo o programa pioneiro de criado pelo Sesc há mais de 70 anos com o objetivo de democratizar o acesso à atividade turística na educação aos trabalhadores do comércio de bens, serviços e turismo a oportunidade de viajar a custos acessíveis. Trata-se de um programa que parte do princípio que “Passado, presente e futuro confundem-se não só em termos temporais, mas também em termos espaciais, porque a viagem, quando acontece, se dá tanto percorrendo lugares como também alimentando memórias”, assinalam Gastal e de Sá (2019, p. 12). Infelizmente, segundo Novak e Almeida (2019), o turismo social – apesar de sua importância para a inclusão social das pessoas acima de 60 anos nos movimentos turísticos e de lazer e de seu potencial como instrumento de educação não formal e de promoção da cidadania -, é, ainda, um fenômeno marginal se comparado ao turismo convencional oferecido pelo setor empresarial (p. 24).

Foto: Douglas Junior/MTur

Nesse mesmo número da revista mais60, é lembrado o programa “Viaja Mais Melhor Idade”, como política pública do Ministério de Turismo, que durou de 2007 a 2017, o qual tinha como objetivo “proporcionar aos idosos, aposentados e pensionistas oportunidade de viajar e de usufruir os benefícios da atividade turística como forma de fortalecimento do setor de turismo no Brasil” (MTUR, 2007). O Programa, que já estava em sua segunda edição e consistia em conceder descontos, condições especiais e serviços personalizados para conferir aos 60+ a chance de usufruir dos benefícios da atividade turística, foi extinto em 2016, no governo Temer. Mais uma vez Gastal e de Sá, escrevem que “os números alcançados pelo programa indicam não só sua importância sociocultural e turística, como também trazem à berlinda a necessidade de se discutir seu impacto sobre a construção da velhice no Brasil” (p. 17). Infelizmente, o viés econômico, que é predominante, não permite ver o turismo como uma “atividade humana com impactos importantes sobre os sujeitos (velhos) viajantes e sobre o grupo social com o qual convivem no cotidiano” (p. 17), apontam esses autores.

Encerro aqui com mais um trecho do artigo de Gastal e de Sá (2019, p. 18), por acreditar fielmente e vivenciar em carne e osso o que apontam:

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A mobilidade no e pelo território amplia horizontes e ressignifica a relação com os lugares, inclusive o próprio, o de origem do viajante. A viagem também obriga à presentificação da vivência, minimizando refúgios no passado.”

Vamos turistar então?

Referências

GASTAL, Susana de Araujo e DE SÁ, Felipe Zaltron. Mobilidade e Memória: Tecendo Interrelações entre Turismo e Envelhecimentos. In: Revista mais60: Estudos sobre Envelhecimento, v. 30, n.75, dez. 2019, p. 08-19.

MINISTÉRIO DO TURISMO. Programa Viaja Mais Melhor Idade. Disponível em: http://www.turismo.gov.br/sites/default/turismo/o_ministerio/ publicacoes/downloads_publicacoes/Viaja_Mais_Melhor_Idade.pdf. Acesso em: 20 out. 2019.

NOVAK, Patrícia Aparecida da Silva e ALMEIDA, Marcelo Vilela de. Turismo, Aprendizagem e Ativação de Memórias: O Caso da Oficina de Turismo Social – Viver São Paulo (UnATI/EACH/USP). In: Revista mais60: Estudos sobre Envelhecimento, v. 30, n.75, dez. 2019, p. 20-37


Serviço
A revista  é uma publicação multidisciplinar, editada pelo Sesc São Paulo, de periodicidade quadrimestral, e dirigida aos profissionais que atuam na área do envelhecimento. Tem como objetivo estimular a reflexão e a produção intelectual no campo da gerontologia. Seu propósito é publicar artigos técnicos e científicos nessa área, abordando os diversos aspectos da velhice (físico, psíquico, social, cultural, econômico etc.) e do processo de envelhecimento.
Caso você queira escrever para esta revista, saiba que ela aceita artigos de forma contínua. Para saber mais, envie e-mail para: [email protected]
ISSN 1676-0336


Será que as ações socioculturais que estão sendo propostas por diversas instituições realmente incentivam as pessoas acima dos 60 a se reinventarem? A lançarem-se em busca de seus desejos? A perceber-se em suas singularidades? A olhar em sua volta…? Quais e que tipos de ações, atualmente, são ofertadas ? O que de fato propõem? Estes temas serão trabalhados no curso que está com inscrições abertas: https://edicoes.portaldoenvelhecimento.com.br/produto/praticas-culturais-para-idosos-como-e-quais-propor/

Beltrina Côrte

Jornalista, Especialização e Mestrado em Planejamento e Administração do Desenvolvimento Regional, Doutorado e Pós.doc em Ciências da Comunicação pela USP. Estudiosa do Envelhecimento e Longevidade desde 2000. É docente da PUC-SP. Coordena o grupo de pesquisa Longevidade, Envelhecimento e Comunicação, e é pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE), ambos da PUC-SP. CEO do Portal do Envelhecimento, Portal Edições e Espaço Longeviver. Integrou o banco de avaliadores do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – Basis/Inep/MEC até 2018. Integra a Rede Latinoamericana de Psicogerontologia (REDIP). E-mail: [email protected]

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Beltrina Côrte

Jornalista, Especialização e Mestrado em Planejamento e Administração do Desenvolvimento Regional, Doutorado e Pós.doc em Ciências da Comunicação pela USP. Estudiosa do Envelhecimento e Longevidade desde 2000. É docente da PUC-SP. Coordena o grupo de pesquisa Longevidade, Envelhecimento e Comunicação, e é pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Envelhecimento (NEPE), ambos da PUC-SP. CEO do Portal do Envelhecimento, Portal Edições e Espaço Longeviver. Integrou o banco de avaliadores do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior – Basis/Inep/MEC até 2018. Integra a Rede Latinoamericana de Psicogerontologia (REDIP). E-mail: [email protected]

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