A Repercussão Geral é um instrumento fundamental para organizar o trabalho do STF, permitindo selecionar casos de impacto nacional e uniformizar entendimentos.
Mariana Moron Saes Braga (*)
O Supremo Tribunal Federal (STF) é o mais alto tribunal do Brasil e tem como principal função garantir que a Constituição Federal seja respeitada por leis, normas e decisões do Poder Judiciário. Composto por 11 ministros indicados pelo Presidente da República e aprovados pelo Senado, o STF julga tanto casos novos como recursos de decisões tomadas por outros tribunais, desde que envolvam questões constitucionais.
Diante da crescente demanda judicial e da multiplicidade de recursos submetidos à Corte, surgiu a necessidade de um mecanismo capaz de filtrar os casos a serem analisados. Foi nesse contexto que se consolidou, com a Emenda Constitucional nº 45/2004 (Reforma do Judiciário), o instituto da Repercussão Geral — um filtro processual voltado à seleção de recursos extraordinários cuja matéria ultrapasse o interesse das partes e possua relevância jurídica, social, política ou econômica para a coletividade (Didier Jr., 2015).
Embora prevista na Constituição desde 2004, a Repercussão Geral apenas se tornou efetiva com a promulgação da Lei nº 11.418/2006, que regulamentou o dispositivo e estabeleceu os critérios para sua aplicação. A partir de sua entrada em vigor, em fevereiro de 2007, o STF passou a admitir apenas recursos que tratem de questões com potencial de afetar um número significativo de processos semelhantes em todo o país. Esse mecanismo busca não apenas racionalizar o volume de processos, mas também garantir a uniformidade da jurisprudência constitucional e fortalecer a segurança jurídica (Marinoni; Mitidiero, 2012).
Por que o instituto da repercussão geral é importante?
Podemos pensar na Repercussão Geral como uma peneira que separa os processos que são só de interesse individual daqueles que impactam a sociedade como um todo. Os processos com repercussão geral são importantes porque evitam a multiplicação de julgamentos repetitivos, aceleram o trâmite do Judiciário e asseguram maior coerência na aplicação do Direito Constitucional.
A partir de uma única decisão do STF, milhares de casos semelhantes são resolvidos de forma uniforme pelas instâncias inferiores, promovendo economia processual e previsibilidade jurídica (Wambier; Dantas, 2016). Além disso, esse mecanismo assegura que temas de grande relevância nacional — como os direitos da população idosa — recebam a devida atenção da Corte e produzam efeitos amplos e estruturantes na sociedade brasileira.
CONFIRA TAMBÉM:
No caso de temas que envolvem os direitos da pessoa idosa, esse mecanismo revela-se especialmente relevante. Afinal, ao julgar com repercussão geral matérias que dizem respeito à aplicação da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto da Pessoa Idosa), o STF tem a oportunidade de consolidar entendimentos que fortalecem — ou, eventualmente, fragilizam — os direitos das pessoas idosas no Brasil.
Esses julgamentos são particularmente relevantes porque podem:
1 – Estabelecer precedentes obrigatórios para todas as instâncias judiciais e administrações públicas.
2 – Interpretar normas do Estatuto da Pessoa Idosa em temas como saúde, previdência ou proteção social, ampliando ou limitando seu alcance.
3 – Refletir a visão do STF sobre direitos fundamentais das pessoas idosas, revelando se a Corte prioriza a proteção integral dessa população ou adota restrições baseadas em outros princípios constitucionais, como equilíbrio orçamentário ou autonomia federativa (federalismo)
Processo de análise no STF
No Supremo Tribunal Federal (STF), os Recursos Extraordinários (RE) com Repercussão Geral passam por um processo dividido em duas fases fundamentais. A primeira fase, de admissibilidade, funciona como um mecanismo de triagem no qual o STF examina se a questão constitucional apresentada possui efetiva repercussão geral, conforme previsto no art. 102, §3º da Constituição Federal, avaliando se o tema ultrapassa o interesse das partes envolvidas e tem capacidade de influenciar políticas públicas e direitos coletivos em âmbito nacional (Didier Jr., 2015).
Quando o tribunal reconhece a existência dessa repercussão, o caso recebe uma numeração temática específica (exemplo: tema 27), é incluído na pauta de julgamentos do Plenário e sua futura decisão passa a ter efeito vinculante para todos os casos semelhantes em todo o país.
Superada essa fase preliminar, o processo avança para a etapa de mérito, onde os ministros do STF realizam uma análise profunda da matéria constitucional em questão. Nessa fase, o tribunal debate a interpretação adequada do tema sob a ótica da Constituição, estabelecendo ao final uma tese jurídica que servirá como parâmetro obrigatório para todos os demais casos análogos no sistema judiciário brasileiro (Marinoni; Mitidiero, 2012).
Um caso relevante de impacto nos direitos da população idosa:
Processo | Tema no STF | Artigo(s) do Estatuto da Pessoa Idosa | Impacto Principal |
RE 567985 | Tema 27 | Art. 34 | Flexibilizou regras para pessoas idosas em situação de carência econômica receberem o BPC |
Fonte: elaboração própria
Mas o que foi decidido neste processo? E como ele se relaciona com o Estatuto da Pessoa Idosa?
RE 567.985: BPC e renda familiar
No Recurso Extraordinário 567.985, o Supremo Tribunal Federal (STF) discutiu a exigência de renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo para que pessoas idosas e pessoas com deficiência tenham direito ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto no artigo 203, inciso V, da Constituição.
O INSS (autor do recurso) defendia que esse critério de renda deveria ser rigorosamente aplicado, conforme o §3º do artigo 20 da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) (Lei nº 8.742/1993). Porém, o STF decidiu, por maioria, que esse critério não pode ser aplicado de forma absoluta, porque não reflete mais a realidade socioeconômica do país.
Além disso, o STF declarou inconstitucional, de forma incidental, o parágrafo único do artigo 34 do Estatuto da Pessoa Idosa (Lei 10.741/2003), que determinava que o benefício recebido por uma pessoa idosa da família deveria ser considerado no cálculo da renda familiar. Essa regra acabava prejudicando outras pessoas idosas pobres da mesma família, que ficavam impedidos de receber o BPC.
O STF entendeu que essa regra violava a Constituição, pois impedia que pessoas idosas em situação de vulnerabilidade socioeconômica tivessem acesso ao benefício.
Como isso impactou o entendimento do artigo?
Essa decisão fortaleceu o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição) e trouxe um entendimento mais flexível e justo sobre a renda familiar exigida para concessão do BPC. Ou seja:
– O critério de ¼ do salário mínimo continua existindo, mas pode ser relativizado, caso se comprove, por exemplo, a miserabilidade por outros meios (como perícia social).
– A renda de outra pessoa idosa que receba BPC na família não deve ser considerada no cálculo da renda per capita, o que permite que mais de uma pessoa idosa em situação de carência econômica na mesma família possa receber o benefício.
Importante! STF tem na fila decisão crucial sobre planos de saúde e direitos das pessoas idosas!
O STF já reconheceu a existência da repercussão geral, mas ainda deve julgar o mérito do RE 630.852, que trata da aplicação do Estatuto da Pessoa Idosa a contratos de planos de saúde firmados antes de sua vigência.
A controvérsia central é se cláusulas de reajuste por faixa etária comuns em contratos antigos podem ser consideradas abusivas diante da proibição de discriminação etária prevista no Estatuto da Pessoa Idosa (art. 15, § 3º). O julgamento envolve o equilíbrio entre a proteção dos direitos adquiridos (art. 5º, XXXVI, da CF) e a eficácia normativa do Estatuto, e terá impacto direto na vida de pessoas idosas que enfrentam dificuldades para manter seus planos de saúde diante de aumentos expressivos. A decisão poderá fortalecer a função protetiva da norma e ampliar o acesso à saúde para um grupo social vulnerável.
A Repercussão Geral é um instrumento fundamental para organizar o trabalho do STF, permitindo selecionar casos de impacto nacional e uniformizar entendimentos. O julgamento do BPC (RE 567.985) mostra como o mecanismo contribui para a eficiência judicial e a segurança jurídica em temas sensíveis, como os direitos da pessoa idosa.
Entretanto, o modelo atual levanta questões importantes. A seletividade do processo pode deixar de fora demandas individuais relevantes, e o tempo e a discricionariedade na fase de admissibilidade exigem atenção.
O RE 630.852, que discute reajustes em planos de saúde, exemplifica o potencial transformador do instituto em casos de grande impacto social. Para manter sua efetividade, a Repercussão Geral deve equilibrar eficiência processual com sensibilidade temática, assegurando a coerência do sistema constitucional.
Referências
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário com Agravo 567.985/RS. Tema 27: Exigência de comprovação de miserabilidade para concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) a idosos e pessoas com deficiência. Relator: Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 20 set. 2011. Diário da Justiça Eletrônico, 28 out. 2011. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2166894. Acesso em: 17 abr. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 630.852/SP. Discussão sobre aplicação do Estatuto do Idoso a contratos antigos de planos de saúde. Relator: Min. Ricardo Lewandowski, pendente de julgamento. Portal STF. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5102345. Acesso em: 17 abr. 2025.
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. Salvador: Juspodivm, 2015.
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Repercussão geral no recurso extraordinário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; DANTAS, Bruno. Recurso especial, recurso extraordinário e a nova função dos tribunais superiores no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo Código de Processo Civil comentado. Salvador: Juspodivm, 2016.
(*) Mariana Moron Saes Braga – Docente do Departamento de Sociologia e Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia e Ciências – UNESP, Campus de Marília. Pesquisadora selecionada no 4º Edital Acadêmico de Pesquisa: Envelhecer com Futuro, promovido pelo Itaú Viver Mais e Portal do Envelhecimento e Longeviver, com a pesquisa “Suprema velhice: a aplicação do estatuto da pessoa idosa pela corte constitucional”. E-mail: [email protected].
Foto de Sora Shimazaki/pexels
