Crônica a despeito da mensagem trazida por uma pintura de um clássico artista português (Alves Cardoso), de quem o autor teve o privilégio de prestigiar o acervo em exposição num museu lisboeta. O tema abordado toca na relação dual entre senilidade e jovialidade, a qual é retratada nas mãos do pintor, em que avó aparece ensinando jovem a tear as vestimentas da festa.
Por Pedro Sampaio Minassa (*)
O título da presente crônica inspira-se na obra-prima de um pintor português pouco conhecido: Artur Alves Cardoso (Lisboa, 1882-1930). O estilo de Cardoso, que teve uma vida relativamente curta, finda na década de 30 do século passado, primou pelo chamado plen air, o modelo de pintura ar-livrista que preferia representar a paisagem rural em face da urbana.
Apesar do parco conhecimento atual de seu legado, suas ilustres obras obtiveram grande sucesso internacional à época, sendo um clássico exemplo disso, o incrivelmente rápido esgotamento de boa parte de seu acervo numa exposição ocorrida no Rio de Janeiro, já no desfecho de sua carreira. Cardoso morou um certo tempo na Bretanha, fugiu de Paris (cidade que também morou) e de seu burburinho urbano. E depois de uma longa expedição por campos bucólicos da Europa ocidental, voltou finalmente para casa, sua terra natal portuguesa, a qual lhe rendeu a maioria de suas inspirações.
Em uma de suas incursões para pintar seus preferidos cenários naturais, Alves Cardoso fora convidado por um latifundiário português, da região de Trás-os-Montes, no interior do país, admirador do trabalho do pintor, o qual o introduzira a um novo estilo de pintura, dando-lhe novos anseios representativos.
O latifundiário sugerira a Cardoso que tentasse retratar a vida campestre em alguns de seus quadros; o cotidiano dos humildes e esquecidos, que sobreviviam da economia de subsistência. Como resultado, o pintor deu vida a inúmeras obras que o desafiavam a colocar em primeiro plano o ser humano do campo, em detrimento do próprio campo.
Feita uma breve descrição histórica a fim de entendermos o mundo de Alves Cardoso, aportamos, agora, numa de suas obras mais fascinantes, intitulada “Uma lição antes da festa”. Nesta tela, duas personagens são postas em primeiro plano e a pintura de gênero, como é conhecida, fica bem perceptível: de longe, a obra parece um verdadeiro retrato fotográfico devido a sua precisão e definição nas pinceladas do artista.
O quadro, com porte relativamente grande, elege uma menina ainda na adolescência, que se põe sentada num degrau inferior de escada, com vestes típicas de sua região. A menina sorri e fixa o olhar nos movimentos que outra personagem faz. A outra personagem é uma senhora com aparência senil, sentada num degrau acima, com uma ferramenta na mão, ensinando a menina a fiar uma trouxa de algodão, presa na parte superior de um toco de madeira. Com os dedos já calejados de uma vida de trabalho árduo, a senhora vai criando um fio de algodão, e mostrando possivelmente a sua neta, o seu artesanal modo de trabalhar.
Para além da beleza estética da obra, o nome dado pelo pintor não poderia ser outro de tão grande significado. Alves deixa a critério de seus admiradores, imaginar a festa que ocorreria depois daquele dado momento, e prefere focar num momento prévio, que passa despercebido à maioria das pessoas: a lição na criação da roupa, antes da sua exposição na festa. O simbolismo e evocação desta obra são incontáveis. Aqui, porém e para concluir, nos ateremos somente a dois aspectos.
1) Não à toa que a suposta avó aparece ensinando a jovem a tear. Mais do que uma mera tradição popular ou familiar da época, o significado impresso é superior, de passagem de um conhecimento adquirido pelo mais vivido, e que em breve desaparecerá, para o mais novo, o qual, em tese, por mais tempo permanecerá. É, pois, o que se observa não só na posição em que se encontram as personagens (não propositalmente, a senhora aparece como mestre, alguns degraus acima da garota), mas também na carga metafórica que o fio de algodão vai sendo criado, com a experiência da avó. Vai-se formando a linha de uma possível futura roupa, e a linha deita ao colo da menina, como se representasse uma verdadeira linha histórica, onde a avó conta sua própria história no feixe de memória, que provavelmente vestirá sua neta.
2) Por fim, a festa que se aproxima será acompanhada pelos trajes que se colocam na pintura, mas, frise-se, tão somente pela menina! A avó, por sua vez, já terá desaparecido nas linhas e na roupa que a menina provavelmente vestirá. Tal festa será mais que um evento: será, de alguma forma, uma despedida da avó a sua neta, pois em sua última lição antes da festa, aquela haverá de ter desaparecido para sempre, na memória vestida da menina.
(*) Pedro Sampaio Minassa, 21 anos, graduando em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo e aluno em mobilidade pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. E-mail: [email protected]